quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto a seguir está no livro inédito O peso da gravata e outros contos.

Uma dor atravessada no peito

 E o que é mesmo que o senhor está sentindo?, foi como a recepcionista me assustou, porque aquilo, na frente dela, era uma ficha que ela estava preenchendo, minhas respostas se era minha primeira consulta, meu nome completo e onde poderia me encontrar em caso de necessidade, como se eles, todos eles da clínica, pudessem ter um caso de necessidade. E também a quem deveriam avisar em caso de, porque enfim, se eu vivia sozinho, nenhum parente? 

A pergunta me pareceu fora de um contexto apropriado e ficou algum tempo sem resposta porque nome de rua e número de telefone não precisam de interpretação e têm enunciados prontos, bastando abrir uma boca automática e mover queixo e lábios, mas agora não, agora era preciso procurar atalhos na linguagem, veredas pouco usadas, agora eu dependia de invenção para enunciar uma realidade que a mim mesmo parecia extremamente escorregadia, podendo ser mais ou podendo ser menos, que os limites oscilam sem parar, dançando sobre a superfície das significações.

Minhas mãos, minhas duas mãos, apoiavam-se no tampo da escrivaninha, mas de maneira muito leve, que é assim minha timidez: nunca me deixa usar completamente qualquer conforto. Enquanto a recepcionista digitava meus dados, eu permanecia sentado à frente de sua escrivaninha, o corpo teso e respeitoso em ângulo de noventa graus, com as duas mãos, ou melhor, com as pontas dos dedos das duas mãos apoiados no tampo envernizado da escrivaninha, eu era quase um teorema pitagórico, bem rígido. 

Mas então por que uma pergunta assim tão insólita quando feita por uma recepcionista? Estávamos os dois envolvidos naquela conversa burocrática, uma conversa que não me causava esforço algum, que de tão asséptica eu podia dedilhar-me inteiro sem encontrar saliências ou reentrâncias, meu corpo envolto por uma pele apaziguada. Por quê? A recepcionista falou sem levantar a cabeça como se a pergunta estivesse registrada na ficha que ela preenchia. E o que é mesmo que o senhor está sentindo? Não respondi logo, tendo chegado à conclusão de que fora um ataque inesperado.

A sala da recepção era um quadrilátero com duas portas e duas janelas. Por uma das portas, saía-se para a calçada, presumo que muitas vezes com o veredicto na mão, adeus esperanças, projetos jogados no quarto de despejo, adeus futuro. A segunda porta, que ficava ao lado da recepcionista, era o início de um corredor um pouco escuro, talvez uma lâmpada muito velha tentando cumprir até o último alento. A sala do médico ficava escondida atrás de uma porta na parede do corredor. Havia cadeiras pretas, na sala da recepção, uma ao lado da outra em duas fileiras perpendiculares à parede da frente e à escrivaninha da recepcionista. Contei os quadros pendurados por cima das cadeiras e eram sete, um número que nunca me assustou porque não sou supersticioso e não acredito em cabala. Eu apenas me sentia doente e vim em busca de auxílio. Entre os quadros, os mais bonitos refrescavam a sala, pois eram montes cobertos de neve. Suíça, pensei, sem muita convicção, de qualquer forma me senti muito bem por achar que eram os Alpes.

Então, sem levantar a cabeça, a moça da recepção perguntou e o que é mesmo que o senhor está sentindo? Ela já sabia minha profissão, meu estado civil desolado de homem com muito mais solidão do que idade. Eu precisava ganhar tempo, por isso perguntei como?, e ela repetiu e o que é mesmo que o senhor está sentindo? Não que eu seja mais agressivo do que a normalidade dos humanos, mas a primeira coisa que pensei em dizer foi que aquela era, se eu não estava equivocado e com idéias inteiramente quadradas, que aquela era uma pergunta pertinente ao exame clínico a que me submeteria o médico. Talvez me tenha salvado minha timidez porque não disse nada do que pensei. Apenas perguntei como? Foi então que ela ergueu a cabeça e perguntou pela segunda vez.

Enquanto a recepcionista repetia sua pergunta, consegui ver seus olhos, consegui vê-los completamente, pois ela não estava usando máscara nenhuma. Seus olhos, como descrever uns olhos que me fizeram mudo, tão mudo como se estivesse à beira de um susto? Ela piscou, escondendo-os um leve instante e suas longas pestanas moveram-se para mim. Ah, bem percebi, naquele instante, que as pestanas me acenavam prometendo alguma coisa que era necessário buscar, com urgência, sem medir distâncias ou obstáculos. Seus olhos tinham uma sombra fresca que oferecia repouso e paz.

Depois dos olhos, passei aos lábios, ao rosto todo, e subi para os cabelos, que brilhavam de tanta seda que eles eram. No meio da pergunta que ela fazia pela segunda vez, a recepcionista sorriu sem que os outros pacientes, que esperavam nas cadeiras pretas, percebessem o calor que emanava de nossos olhos.

Quando suas pestanas baixaram pela segunda vez, em pura oferta de veludo, não retive mais as palavras e respondi que sentia uma dor atravessada no peito. Um pouco pálida, a recepcionista, querendo saber. Uma dor? Então, confirmei que sim, que sofria de coração vazio e nem sabia se minha doença tinha cura.

Aproximei a cadeira ainda mais de sua escrivaninha, meus olhos de seus lábios e minha voz de seus ouvidos, e em progressão, por fim, apoiei os antebraços, com mãos e pulsos, no tampo envernizado, pois a história era longa, e em seu rosto, os sinais eram de quem precisava conhecê-la. Na sala de espera, todos esperavam com paciência entre ruídos secos de tosse e pedaços de palavras que não se cosiam. O sol que entrava pelas janelas já iluminava de ouro em pó as pontas da samambaia de metro que servia de moldura à recepcionista. Ela já perdera a consciência do ambiente, alheia a tudo que não fossem meus lábios. Toda ela.

Não tentei dramaticidade em minha narrativa nem quis fazer melodrama, ao contar-lhe como chegava todas as noites do serviço e acendia uma a uma as lâmpadas do apartamento, que dormia totalmente imóvel em sua sombra. Nem um cachorro e tampouco um papagaio à minha espera. Apenas cômodos silenciosos e escuros guardando móveis taciturnos a que, com muito esforço, eu ia distribuindo um pouco de vida entre um pigarro e outro. Ah, e os domingos. Os intermináveis domingos, quando sentia vontade de morrer por algumas horas. Sozinho no parque ou sozinho no quarto, que diferença fazia? 

Neste ponto, a recepcionista estava com as duas mãos aninhadas nas minhas, dizendo que minha doença tinha cura, sim, e que só ela poderia fornecer o medicamento. Ela falava com urgência e voz grave, e eu percebi que havia traços de ansiedade na forma como inflectia as palavras. Confesso que não me senti muito à vontade com todos aqueles pacientes testemunhando minha cura, por isso meu corpo encolheu-se um pouco, mas tão sutilmente que ninguém além de mim percebeu o movimento.

O primeiro beijo, que, apesar de minha relutância, aconteceu por cima da escrivaninha, provocou murmúrios de desaprovação na sala, por isso a recepcionista pegou sua bolsa e me convidou, Vamos embora?

                                                                 

Um comentário:

  1. Bom dia, Menalton. Andei no encalço de uma foto em consultório médico. Achei-a no seu blog, em "Uma dor atravessada no peito". "Pedi emprestada" para ilustrar uma publicação. Se não concordar, é só denunciar que removerei imediatamente. Está em http://cadikimdicadacoisa.blogspot.com.br/2013/03/uma-cuidadora-de-idosos-acompanhou.html.
    Gostei muito e voltarei.

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