O conto a seguir está no livro inédito O peso da gravata e outros contos.
E o que é mesmo que o senhor está sentindo?, foi como a recepcionista me
assustou, porque aquilo, na frente dela, era uma ficha que ela estava
preenchendo, minhas respostas se era minha primeira consulta, meu nome completo
e onde poderia me encontrar em caso de necessidade, como se eles, todos eles da
clínica, pudessem ter um caso de necessidade. E também a quem deveriam avisar
em caso de, porque enfim, se eu vivia sozinho, nenhum parente?
A pergunta me pareceu fora de um contexto apropriado e ficou algum tempo sem resposta porque nome de rua e número de telefone não precisam de interpretação e têm enunciados prontos, bastando abrir uma boca automática e mover queixo e lábios, mas agora não, agora era preciso procurar atalhos na linguagem, veredas pouco usadas, agora eu dependia de invenção para enunciar uma realidade que a mim mesmo parecia extremamente escorregadia, podendo ser mais ou podendo ser menos, que os limites oscilam sem parar, dançando sobre a superfície das significações.
Uma dor atravessada no peito
A pergunta me pareceu fora de um contexto apropriado e ficou algum tempo sem resposta porque nome de rua e número de telefone não precisam de interpretação e têm enunciados prontos, bastando abrir uma boca automática e mover queixo e lábios, mas agora não, agora era preciso procurar atalhos na linguagem, veredas pouco usadas, agora eu dependia de invenção para enunciar uma realidade que a mim mesmo parecia extremamente escorregadia, podendo ser mais ou podendo ser menos, que os limites oscilam sem parar, dançando sobre a superfície das significações.
Minhas mãos, minhas duas mãos, apoiavam-se no tampo da escrivaninha, mas
de maneira muito leve, que é assim minha timidez: nunca me deixa usar
completamente qualquer conforto. Enquanto a recepcionista digitava meus dados,
eu permanecia sentado à frente de sua escrivaninha, o corpo teso e respeitoso
em ângulo de noventa graus, com as duas mãos, ou melhor, com as pontas dos
dedos das duas mãos apoiados no tampo envernizado da escrivaninha, eu era quase
um teorema pitagórico, bem rígido.
Mas então por que uma pergunta assim tão insólita quando feita por uma
recepcionista? Estávamos os dois envolvidos naquela conversa burocrática, uma
conversa que não me causava esforço algum, que de tão asséptica eu podia
dedilhar-me inteiro sem encontrar saliências ou reentrâncias, meu corpo envolto
por uma pele apaziguada. Por quê? A recepcionista falou sem levantar a cabeça
como se a pergunta estivesse registrada na ficha que ela preenchia. E o que é
mesmo que o senhor está sentindo? Não respondi logo, tendo chegado à conclusão
de que fora um ataque inesperado.
A sala da recepção era um quadrilátero com duas portas e duas janelas.
Por uma das portas, saía-se para a calçada, presumo que muitas vezes com o
veredicto na mão, adeus esperanças, projetos jogados no quarto de despejo,
adeus futuro. A segunda porta, que ficava ao lado da recepcionista, era o
início de um corredor um pouco escuro, talvez uma lâmpada muito velha tentando
cumprir até o último alento. A sala do médico ficava escondida atrás de uma
porta na parede do corredor. Havia cadeiras pretas, na sala da recepção, uma ao
lado da outra em duas fileiras perpendiculares à parede da frente e à
escrivaninha da recepcionista. Contei os quadros pendurados por cima das
cadeiras e eram sete, um número que nunca me assustou porque não sou
supersticioso e não acredito em
cabala. Eu apenas me sentia doente e vim em busca de auxílio.
Entre os quadros, os mais bonitos refrescavam a sala, pois eram montes cobertos
de neve. Suíça, pensei, sem muita convicção, de qualquer forma me senti muito
bem por achar que eram os Alpes.
Então, sem levantar a cabeça, a moça da recepção perguntou e o que é
mesmo que o senhor está sentindo? Ela já sabia minha profissão, meu estado
civil desolado de homem com muito mais solidão do que idade. Eu precisava
ganhar tempo, por isso perguntei como?, e ela repetiu e o que é mesmo que o
senhor está sentindo? Não que eu seja mais agressivo do que a normalidade dos
humanos, mas a primeira coisa que pensei em dizer foi que aquela era, se eu não
estava equivocado e com idéias inteiramente quadradas, que aquela era uma
pergunta pertinente ao exame clínico a que me submeteria o médico. Talvez me
tenha salvado minha timidez porque não disse nada do que pensei. Apenas
perguntei como? Foi então que ela ergueu a cabeça e perguntou pela segunda vez.
Enquanto a recepcionista repetia sua pergunta, consegui ver seus olhos,
consegui vê-los completamente, pois ela não estava usando máscara nenhuma. Seus
olhos, como descrever uns olhos que me fizeram mudo, tão mudo como se estivesse
à beira de um susto? Ela piscou, escondendo-os um leve instante e suas longas
pestanas moveram-se para mim. Ah, bem percebi, naquele instante, que as
pestanas me acenavam prometendo alguma coisa que era necessário buscar, com
urgência, sem medir distâncias ou obstáculos. Seus olhos tinham uma sombra
fresca que oferecia repouso e paz.
Depois dos olhos, passei aos lábios, ao rosto todo, e subi para os
cabelos, que brilhavam de tanta seda que eles eram. No meio da pergunta que ela
fazia pela segunda vez, a recepcionista sorriu sem que os outros pacientes, que
esperavam nas cadeiras pretas, percebessem o calor que emanava de nossos olhos.
Quando suas pestanas baixaram pela segunda vez, em pura oferta de veludo,
não retive mais as palavras e respondi que sentia uma dor atravessada no peito.
Um pouco pálida, a recepcionista, querendo saber. Uma dor? Então, confirmei que
sim, que sofria de coração vazio e nem sabia se minha doença tinha cura.
Aproximei a cadeira ainda mais de sua escrivaninha, meus olhos de seus
lábios e minha voz de seus ouvidos, e em progressão, por fim, apoiei os
antebraços, com mãos e pulsos, no tampo envernizado, pois a história era longa,
e em seu rosto, os sinais eram de quem precisava conhecê-la. Na sala de espera,
todos esperavam com paciência entre ruídos secos de tosse e pedaços de palavras
que não se cosiam. O sol que entrava pelas janelas já iluminava de ouro em pó
as pontas da samambaia de metro que servia de moldura à recepcionista. Ela já
perdera a consciência do ambiente, alheia a tudo que não fossem meus lábios.
Toda ela.
Não tentei dramaticidade em minha narrativa nem quis fazer melodrama, ao
contar-lhe como chegava todas as noites do serviço e acendia uma a uma as
lâmpadas do apartamento, que dormia totalmente imóvel em sua sombra. Nem um
cachorro e tampouco um papagaio à minha espera. Apenas cômodos silenciosos e
escuros guardando móveis taciturnos a que, com muito esforço, eu ia
distribuindo um pouco de vida entre um pigarro e outro. Ah, e os domingos. Os intermináveis
domingos, quando sentia vontade de morrer por algumas horas. Sozinho no parque
ou sozinho no quarto, que diferença fazia?
Neste ponto, a recepcionista estava com as duas mãos aninhadas nas
minhas, dizendo que minha doença tinha cura, sim, e que só ela poderia fornecer
o medicamento. Ela falava com urgência e voz grave, e eu percebi que havia
traços de ansiedade na forma como inflectia as palavras. Confesso que não me
senti muito à vontade com todos aqueles pacientes testemunhando minha cura, por
isso meu corpo encolheu-se um pouco, mas tão sutilmente que ninguém além de mim
percebeu o movimento.
O primeiro beijo, que, apesar de minha relutância, aconteceu por cima da
escrivaninha, provocou murmúrios de desaprovação na sala, por isso a recepcionista
pegou sua bolsa e me convidou, Vamos embora?
Bom dia, Menalton. Andei no encalço de uma foto em consultório médico. Achei-a no seu blog, em "Uma dor atravessada no peito". "Pedi emprestada" para ilustrar uma publicação. Se não concordar, é só denunciar que removerei imediatamente. Está em http://cadikimdicadacoisa.blogspot.com.br/2013/03/uma-cuidadora-de-idosos-acompanhou.html.
ResponderExcluirGostei muito e voltarei.