sexta-feira, 18 de abril de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

Conto do livro "A coleira no pescoço", publicado pela Bertrand Brasil.
O caso das digitais perdidas


 Meu nome?, perguntei espantado, porque me pareceu uma exigência descabida, uma cilada que eu deveria evitar. Talvez uma curva perigosa, escorregadia. Mesmo assim, como não tivesse escolha, olhei para o teto baixo da sala mal iluminada e percebi que havia teias de aranha nos quatro cantos. Eu continuava pensando no que poderia significar tudo aquilo, se é que podia significar alguma coisa. Já bem perto do pânico, voltei a encarar o Escrivão. Minhas mãos, apoiadas nas coxas, começaram a verter um suor esverdeado e quente, um azinhavre pegajoso. Sou assim: cada vez que enfrento uma situação difícil, me desmancho um pouco. Ao sentir as mãos grudando na calça, respirei fundo como em preparação para um grande esforço, um gesto de verdadeira ferocidade. Meu nome?, repeti mais baixo, como pergunta que não espera resposta, porque apenas tenta protelar o desfecho. Uma pergunta que não é propriamente uma pergunta, é um marco no chão, um rego escuro entre os canteiros de uma horta. Ou na testa. Com a mão esquerda abri mais a gola da camisa quente. Abafado sim, concordou o Escrivão, piscando olhos impacientes. Suas mãos trêmulas pareciam duas aranhas muito brancas mal roçando frementes o teclado. Por fim, não tendo mais como ganhar tempo, sorri constrangido e comentei, Não é mesmo incrível?, há tanto tempo ninguém usa meu nome que já não me lembro mais dele.    

Foi então a vez de o Escrivão olhar espantado. Levantou-se e andou até a porta da sala ao lado. Pode uma coisa destas?, cochichou para outro escrivão, o cara aí não se lembra do próprio nome. 
O Colega enrugou a testa e disse que não, caso nenhum para espanto, pois há mais pessoas do que nomes sobre a Terra. Isso, disse o Colega em tom de segredo, tem causado grandes transtornos. E voltou a suas fichas. Ele, muito experiente e com tendência à filosofia, caráter incompatível com sua função. Pelo menos foi o que me pareceu. 
O Delegado passou pelo corredor, a camisa toda manchada de pressa, com sua gravata muito correta. Ao vê-lo, o Escrivão esgueirou-se para seu lugar porque era exatamente hora de trabalho. Destampou a caneta com uma precisão exagerada, provavelmente desnecessária porque apenas fez alguns rabiscos em uma folha de papel. Fixou em mim seu olhar severo e perguntou-me, E então?, vamos terminar logo com isso? Completamente mudo, apenas sacudi a cabeça concordando.
Não há ninguém para quem possa telefonar pedindo ajuda? Em minha náusea grossa e tépida os números em remanso, quase uma valsa. Os pares rodopiavam cada vez mais rápidos até sumirem na poeira. Minhas sobrancelhas ergueram-se como asas em vôo, fingindo-se em busca de uma lembrança, o nome de alguém que nos pudesse ajudar. Era um trejeito estúpido, pois eu já sabia o resultado, mas fazia de tudo para parecer disposto à colaboração.
Confesso que nunca cheguei a esquecer inteiramente meu nome. O que me impedia de dar uma resposta imediata era o medo de que meu nome estivesse envolvido em qualquer assunto ilícito. Há sempre alguma culpa escondida em um nome e eu já supunha que meu caso tivesse agravos. Há muito venho tentando pôr-me em dia, mas estou invariavelmente perdido no meio de senhas e códigos. Não consigo mais lembrar a quem devo nem o quê. 
Depois de muita relutância, enfim, declarei meu nome, omitindo, contudo, o sobrenome com todos os seus detalhes. Mesmo que me lembrasse dele, acho que não teria coragem de o revelar. Qualquer biografia tem necessidade de pontos cegos, porque a vida, com as janelas escancaradas, é simplesmente impossível. Os dedos silenciosos do Escrivão caíram sobre o teclado e registraram meu nome na ficha da tela. Profissão? Todos nós sabemos que depois da primeira resposta não há mais salvação. Acaba-se a resistência no exato momento em que se abre a boca para entregar a vida, por mínima que seja. Da minha, havia tão-somente revelado o nome, mas para um escrivão experiente podia ser o bastante. A origem, as muitas peripécias familiares, boa parte da biografia, tudo isso pode ser revelado sem que se perceba. Então não havia mais como permanecer escondido e respondi que era pintor. Ele olhou-me com curiosidade e o sorriso bem curto que enrugou seus lábios me deixou um pouco embaraçado. Tenho certeza de que duvidava, porque me examinou minucioso durante muito tempo. É bem provável que minha profissão não correspondesse ao perfil previamente traçado por eles: suas necessidades inventando explicações. Sei que me senti mal ao perceber que até minha profissão, por seu conteúdo ambíguo, poderia ser comprometedora. Não ousei, todavia, declinar o tipo de pintor que eu era. Haveria embaraços dos quais é improvável que conseguisse libertar-me.
A esse jogo dedicamos nossa tarde. Bem que percebi quando as teias de aranha começaram a sumir do teto e a mancha de sol desapareceu do ladrilho encardido. De tudo o que mais tenho medo é das sombras porque nunca se sabe o que podem estar escondendo. E a noite já vinha subindo os primeiros degraus. Nem assim consegui abreviar minha confissão. Finalmente o Escrivão mandou minha ficha para a impressora e se levantou para acender a luz. Parecia muito cansado e aborrecido. Acho que não tive culpa, nem por isso deixei de me sentir levemente ameaçado.
O Escrivão leu a ficha em voz alta e aprovei todos os dados com movimentos de cabeça, que são menos perigosos do que as palavras.
Estendeu-me então a ficha, apontando para o primeiro retângulo e dizendo que aquele era do polegar. Sujei a polpa de meu dedo e borrei o lugar para onde ele apontava. Com gesto brusco o Escrivão levou a ficha até perto dos olhos. Encarou-me com uma ruga na testa suada.
- Por que você fez isso? - ele me perguntou rispidamente e com alguma agressividade.
Pronto, pensei, agora que parecia tudo terminado, vem mais complicação ainda. O que foi que eu fiz?, quase cheguei a perguntar porque estava tremendo, não sei se de cansaço ou pânico. Ele parece ter entendido minha pergunta pensada e apontou para o borrão preto. Isso, ele insistiu, isso, essa mancha sem identidade nenhuma. Por que você fez isso?
Respirei aliviado. Só isso?, pensei, pouco menos que feliz. Sim, como foi? Não existe gesto inocente, meu caro. Tudo que fazemos reveste-se de culpa, ele disse enfático, porque tudo significa. Quis retrucar, dizendo que tinha opinião contrária, que me parecia tudo sem grande sentido, mas calei-me com medo. Tive a impressão de que o Colega, da outra sala, chegou fechando nossa porta com o corpo. O Escrivão tomou-me das mãos e examinou meus dois polegares.  O que você está escondendo?, ele gritou, talvez com a intenção de avisar aos outros que tinha nas mãos um problema difícil.
O esforço para vencer minha timidez grudou-me a camisa nas costas, o modo de me desmanchar um tanto mais. Fingi que examinava minhas mãos para não encará-lo enquanto explicava que desde adolescente trabalho com pintura. Foi sempre o que fiz em troca da comida e do aluguel, a despeito de nunca me reconhecer no que tenho feito. Sim, ele gritou, mas e daí? Seu nome não aparece nas paredes que pinta? Não, respondi categórico, nada do que faço é meu, e a própria cal, que tão cedo aprendi a usar, é alheia, não é minha, é inimiga, e por isso aos poucos me descasca os dedos e o nome.  
O Escrivão saiu da sala para confabular com o Colega, que nos observava da porta. Passado algum tempo, em que os dois pareciam estar cochichando, ele dirigiu-se à sala do Delegado, onde ficou por cerca de dez minutos. Os três vieram muito sérios para me examinar. Incrível, eles diziam, olhando-se incrédulos. Incrível, repetiam sacudindo a cabeça.
Então, não sei bem por quê, eles pararam na minha frente ostentando suas gargalhadas sem controle, completamente alegres. Apontavam para mim sem conseguir dizer nada porque as gargalhadas ocupavam toda a extensão de sua surpresa. Torciam-se de tanto rir, com aqueles risos cada vez mais idênticos, em cor e tamanho. Pegavam minha mão direita para olhar melhor a polpa de meu polegar, e as lágrimas de seu riso molhavam-me os dedos. De repente, suas fisionomias começaram a transformar-se de maneira assombrosa, até que se misturaram tão completamente que nem eles mesmos se diferenciavam uns dos outros. Por isso, muito acabrunhados, pararam de rir e assumiram o mesmo ar de funcionários zelosos.   
Finalmente minha ficha borrada de preto ficou com um dos três, que me disse:
- O expediente já terminou. O senhor me volte aqui amanhã.
                                                                  *


2 comentários:

  1. a própria cal, que tão cedo aprendi a usar, é alheia, não é minha, é inimiga, e por isso aos poucos me descasca os dedos e o nome. Há sempre alguma culpa escondida em um nome .....

    Muito bom!! atemporal!

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