O conto a seguir integra a coletânea "Gente em conflito" editada pela Ática.
Vento nas bananeiras
No começo da
rua apareceu Marcão. Como nuvem que se aproxima. ao chegar da feira, o vizinho
parava sempre no bar da esquina: campeão de bilhar. Subiu lento, crescente e
sonado, plantou-se no meio da rua e falou:
– Olha aqui,
avisa a dona Idalina que se ela não largar mão de se meter com a vida da minha
mulher eu acabo com vocês dois.
Arlindo
perplexo. O gosto de ainda há pouco, escorrendo pela sarjeta abaixo, só deixava
tremor de frio, tonteira descendo pelo corpo todo. Seus olhos nublados mal
retinham a figura enorme.
– O senhor
me desculpe, mas da minha mulher eu não sei. A vida pra mim se resume em
trabalho, que pra outra coisa não tenho tempo.
– Pois
arranja um jeito qualquer e toma conta daquela língua. Eu gosto de avisar
primeiro.
Nas janelas
do sobrado, a mulher e as filhas de Marcão.
– Amarrar
dentro de casa eu não posso!
Marcão
aproximou-se, olhou a calçada nova e pisou fundo, pesado de corpo inteiro. E
riu.
– Pode sim.
Arlindo se
afastou. A tarde escurecia.
– Isso não
rpeciava, Marcão.
Aluvião de
gargalhadas despejaram-se desde o sobrado. O vizinho afundou mais o pé: o rosto
iluminado de ferocidade atávica.
– Não é
direito!
– Você cala
esta boca, velho safado. Você não é homem.
Mães e
filhos surgiram nos portões. O pé pesado de cimento, Marcão avançou na direção
de Arlindo. Rubro, suado, ar de furiosa felicidade. Arlindo afastou-se, fechou
atrás de si o portão de madeira, frágil símbolo de proteção.
– Você é um
bêbado irresponsável.
– Bêbado
velho cornudo, eu já te mostro quem é.
Sem largar a
colher de pedreiro, Arlindo retrocedeu tropeçando nos degraus. Na porta da sala
virou-se. Marcão mantinha as mãos presas no alto do portão, os braços cabeludos
formando um arco possante, escurecendo a tarde.
– Isso não é
coisa que se faça, Marcão. Você não deve mexer com quem está quieto nos eu
canto.
– Aqui eu
faço o que quero.
Dois
moleques, depois de apreciarem de longe, saíram correndo para o fim da rua.
– Tem briga
hoje, minha gente!
O alarma
ricocheteava nos quintais.
– No sobrado
do Marcão!
Os gritos
acordaram a tarde. Um leve sopro de morte agitou as folhas das bananeiras.
Idalina chegou da cozinha enxugando as mãos.
– O que é
isso. Arlindo?
Melhor nem
tivesse tirado férias, como fazia outros anos.
– O Marcão,
esse bêbado sem-vergonha;
– Vem aqui
pra fora que eu te mostro quem é bêbado sem vergonha. Vem, velho, safado. Você
não é homem pra mim. Vem! Cai aqui pra baixo que eu acabo com a tua raça!
Dois
companheiros de bilhar engrossaram a multidão.
– Se
precisar de ajuda conta com a gente, Marcão.
Ninguém riu
mais da brincadeira que as mulheres do sobrado.
– O senhor
vai cuidar da sua vida!
– Olha só, a
velha, como é corajosa. Manda o traste do teu marido descer daí! Vem pra rua,
vem! Se é homem desce daí.
Arlindo
ensaiou desaforo maior, e seus lábios tremeram. Não, melhor fechar a porta e
deixar o Marcão gritando sozinho. Idalina, porém não permitiu. Estava
furiosa.
– Vai cuidar
da tua mulher, cafajeste. Vai! Vai perguntar pra ela com quem que ela dorme tudo
que é madrugada.
Os podres,
ah! como são divertidos os podres familiares! A rua toda estrugiu em gargalhada
satisfeita. Animada, Idalina teve um gesto de ousadia masculina, mas
retrocedeu.
– Cala esta
boca imunda, velha cadela. Pensa que eu não te passo também na lenha? Velha
puta. Manda o veado do teu marido até aqui que eu te mostro quem é o corno.
Velha fedida!
Idalina
desceu dois degraus.
– Tá vendo,
Arlindo. Ele ta dizendo que você não é homem.
– Deixa esse
bêbado sem-vergonha, dalina. Vem pra dentro e fecha a porta.
Ele chamou
você de veado, Arlindo. Bota esse cara pra correr daí da frente.
– Pra
dentro, dalina.!
– Você não é
homem mesmo. Você é um corno manso. Se é homem, vai lá e bota aquele cafajeste
pra correr.
A tarde era
um melado quente a escorrer, escorrer: pegajosa, irremediável.
– Se é
homem, desce aqui! –
o convite persistente.
Arlindo foi
até o quarto e se armou. E esta colher? Jogou-a sobre a colcha florida.
Hesitou. Saída nenhuma? Um susto já estava bom. Atravessava a sala, na mão
trêmula, a pistolinha antiga de dois canos traste inútil jamais utilizado. Deus do céu, disfarçando, pelo menos,
até o meio da rua. Por que férias?
Calasse a boca, chegava. Uma tarde azul, grudada num céu azul. Tanto tempo. Se
nem chuva. Fecho a porta, resto do dia. Ver ninguém. Tanta gente, por que?
Tropeçou na mesa. Densa nuvem, imensa, escondendo a tarde. Se um milagre, ao
menos: um raio, uma rádio-patrulha.
Chegou á
porta ostentando o artefato avorengo, ridículo arremedo de segurança. Deus do
céu será que vendo, pelo menos?
Marcão riu.
Dentes enormes, brancos demais. A ruiva bigodeira bateu asas.
– Quem não é
homem? –
vagido a custo arrancado dos intestinos,
vontade pânica de que o outro se afastasse para o meio da rua.
– Você tá se
borrando de medo, velho cagão. Vem pra cá que eu mijo no cano desta bosta.
Pernas sem
governo, Arlindo desceu alguns degraus. Amargor na boca. Tentou o equilíbrio
num mundo oscilante, oscilou também e parou.
– Vai! –
ordenou Idalina.
E era um
dado real, uma voz conhecida. Ele desceu mais dois degraus. Pelo amor de Deus, o mundo tem de se acabar?
Melhor não tivesse bala. Será que não? Um homem nunca na vida sente medo, nem
apontando? Uma falha: a vida sem conserto.
– Vem, velho
cagão!
Deu mais um
passo e atirou.
Sem parar de
rir, Marcão encolheu o corpo, a cabeça pendeu, e caindo arrancou um pedaço do
portão. Ora, mas o que foi que me aconteceu?
No fundo do
quintal, as bananeiras agitavam os braços na direção do céu. Sacola cheia de
roupa, Arlindo procurava o buraco na cerca. Idalina chegou correndo e o segurou
pela manga, mas os olhos que viu eram de fundo de caverna: um vazio negro
luminoso. Arlindo conseguiu desprender-se e sumiu no mato.
– Você
desgraçou nossa vida, ela ainda gritou.
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