sexta-feira, 1 de agosto de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

O conto a seguir integra a coletânea "Gente em conflito" editada pela Ática.


Vento nas bananeiras


Colher de pedreiro na mão, Arlindo namorava sua obra: trabalho feito com esmero, seu trecho de calçada o mais liso, medidas de conhecedor. Tarde mole de sol quente dorminhando a rua quieta. Sossego. No quintal, bem no fundo, bananeiras paradas pedindo socorro. Tarde sem pressa, de férias pela metade. Arlindo alagou com os olhos um céu todo azul: tão cedo não chove, tempo de secar o cimento.

No começo da rua apareceu Marcão. Como nuvem que se aproxima. ao chegar da feira, o vizinho parava sempre no bar da esquina: campeão de bilhar. Subiu lento, crescente e sonado, plantou-se no meio da rua e falou:

– Olha aqui, avisa a dona Idalina que se ela não largar mão de se meter com a vida da minha mulher eu acabo com vocês dois.

Arlindo perplexo. O gosto de ainda há pouco, escorrendo pela sarjeta abaixo, só deixava tremor de frio, tonteira descendo pelo corpo todo. Seus olhos nublados mal retinham a figura enorme.


– O senhor me desculpe, mas da minha mulher eu não sei. A vida pra mim se resume em trabalho, que pra outra coisa não tenho tempo.

– Pois arranja um jeito qualquer e toma conta daquela língua. Eu gosto de avisar primeiro.

Nas janelas do sobrado, a mulher e as filhas de Marcão.

– Amarrar dentro de casa eu não posso!

Marcão aproximou-se, olhou a calçada nova e pisou fundo, pesado de corpo inteiro. E riu.

– Pode sim.

Arlindo se afastou. A tarde escurecia.

– Isso não rpeciava, Marcão.

Aluvião de gargalhadas despejaram-se desde o sobrado. O vizinho afundou mais o pé: o rosto iluminado de ferocidade atávica.

– Não é direito!

– Você cala esta boca, velho safado. Você não é homem.

Mães e filhos surgiram nos portões. O pé pesado de cimento, Marcão avançou na direção de Arlindo. Rubro, suado, ar de furiosa felicidade. Arlindo afastou-se, fechou atrás de si o portão de madeira, frágil símbolo de proteção.

– Você é um bêbado irresponsável.

– Bêbado velho cornudo, eu já te mostro quem é.

Sem largar a colher de pedreiro, Arlindo retrocedeu tropeçando nos degraus. Na porta da sala virou-se. Marcão mantinha as mãos presas no alto do portão, os braços cabeludos formando um arco possante, escurecendo a tarde.

– Isso não é coisa que se faça, Marcão. Você não deve mexer com quem está quieto nos eu canto.

– Aqui eu faço o que quero.

Dois moleques, depois de apreciarem de longe, saíram correndo para o fim da rua.

– Tem briga hoje, minha gente!

O alarma ricocheteava nos quintais.

– No sobrado do Marcão!

Os gritos acordaram a tarde. Um leve sopro de morte agitou as folhas das bananeiras. Idalina chegou da cozinha enxugando as mãos.

– O que é isso. Arlindo?

Melhor nem tivesse tirado férias, como fazia outros anos.

– O Marcão, esse bêbado sem-vergonha;

– Vem aqui pra fora que eu te mostro quem é bêbado sem vergonha. Vem, velho, safado. Você não é homem pra mim. Vem! Cai aqui pra baixo que eu acabo com a tua raça!

Dois companheiros de bilhar engrossaram a multidão.

– Se precisar de ajuda conta com a gente, Marcão.

Ninguém riu mais da brincadeira que as mulheres do sobrado.

– O senhor vai cuidar da sua vida!

– Olha só, a velha, como é corajosa. Manda o traste do teu marido descer daí! Vem pra rua, vem! Se é homem desce daí.

Arlindo ensaiou desaforo maior, e seus lábios tremeram. Não, melhor fechar a porta e deixar o Marcão gritando sozinho. Idalina, porém não permitiu. Estava furiosa. 

– Vai cuidar da tua mulher, cafajeste. Vai! Vai perguntar pra ela com quem que ela dorme tudo que é madrugada.

Os podres, ah! como são divertidos os podres familiares! A rua toda estrugiu em gargalhada satisfeita. Animada, Idalina teve um gesto de ousadia masculina, mas retrocedeu. 
– Cala esta boca imunda, velha cadela. Pensa que eu não te passo também na lenha? Velha puta. Manda o veado do teu marido até aqui que eu te mostro quem é o corno. Velha fedida!

Idalina desceu dois degraus.

– Tá vendo, Arlindo. Ele ta dizendo que você não é homem. 

– Deixa esse bêbado sem-vergonha, dalina. Vem pra dentro e fecha a porta.

Ele chamou você de veado, Arlindo. Bota esse cara pra correr daí da frente.

– Pra dentro, dalina.!

– Você não é homem mesmo. Você é um corno manso. Se é homem, vai lá e bota aquele cafajeste pra correr.

A tarde era um melado quente a escorrer, escorrer: pegajosa, irremediável.

– Se é homem, desce aqui! –
  o convite persistente.

Arlindo foi até o quarto e se armou. E esta colher? Jogou-a sobre a colcha florida. Hesitou. Saída nenhuma? Um susto já estava bom. Atravessava a sala, na mão trêmula, a pistolinha antiga de dois canos traste inútil jamais utilizado.  Deus do céu, disfarçando, pelo menos, até  o meio da rua. Por que férias? Calasse a boca, chegava. Uma tarde azul, grudada num céu azul. Tanto tempo. Se nem chuva. Fecho a porta, resto do dia. Ver ninguém. Tanta gente, por que? Tropeçou na mesa. Densa nuvem, imensa, escondendo a tarde. Se um milagre, ao menos: um raio, uma rádio-patrulha.

Chegou á porta ostentando o artefato avorengo, ridículo arremedo de segurança. Deus do céu será que vendo, pelo menos?

Marcão riu. Dentes enormes, brancos demais. A ruiva bigodeira bateu asas.

– Quem não é homem? –
  vagido a custo arrancado dos intestinos, vontade pânica de que o outro se afastasse para o meio da rua.

– Você tá se borrando de medo, velho cagão. Vem pra cá que eu mijo no cano desta bosta.
Pernas sem governo, Arlindo desceu alguns degraus. Amargor na boca. Tentou o equilíbrio num mundo oscilante, oscilou também e parou.

– Vai! – ordenou Idalina.

E era um dado real, uma voz conhecida. Ele desceu mais dois degraus.  Pelo amor de Deus, o mundo tem de se acabar? Melhor não tivesse bala. Será que não? Um homem nunca na vida sente medo, nem apontando? Uma falha: a vida sem conserto.

– Vem, velho cagão!

Deu mais um passo e atirou.

Sem parar de rir, Marcão encolheu o corpo, a cabeça pendeu, e caindo arrancou um pedaço do portão. Ora, mas o que foi que me aconteceu?

No fundo do quintal, as bananeiras agitavam os braços na direção do céu. Sacola cheia de roupa, Arlindo procurava o buraco na cerca. Idalina chegou correndo e o segurou pela manga, mas os olhos que viu eram de fundo de caverna: um vazio negro luminoso. Arlindo conseguiu desprender-se e sumiu no mato.


– Você desgraçou nossa vida, ela ainda gritou.

  

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