segunda-feira, 15 de setembro de 2014

CARTA CAPITAL| QUESTÃO DE VOCABULÁRIO


Caramba, nós temos parede, muro, muralha e cada uma dessas palavras dá uma ideia bem diferente uma da outra. E eles têm wall? 
por Menalton Braff —  publicado 12/09/2014 18:11 

Tenho um amigo  cujos conhecimentos da língua inglesa, que, para usar a medida de sua modéstia, é apenas razoável. Ter um amigo, nestes tempos sombrios em que o mundo se contorce com suas dores (e principalmente sua dor de barriga), já é uma grande vantagem. Pois tenho um amigo. Mas ter um amigo que se comunica na língua de William Shakespeare, bom, isso já é coisa para poucos. Sou um deles.

Este amigo, que me pediu para não revelar seu nome, disse que tinha vontade de traduzir um livro meu. Além de um amigo, a quem muito prezo, tenho um romance de minha própria lavra, como se dizia no tempo dos meus avós, e o romance, por uma série de razões, que não cabe aqui discutir, acabou levando o pomposo título de A muralha de Adriano. Vocês já devem estar imaginando que essa muralha é aquela que o imperador Adriano, não o brasileiro que já teve pés inteligentes, mas o romano, o imperador de verdade, pouco mais de cem anos de nossa era, construiu para isolar os pictos, também chamados de caledônios, por serem excessivamente selvagens. Vejam só, e hoje os tais, que passaram a se chamar apenas de escoceses, andam querendo se separar da Grã-Bretanha. Vê se pode. A muralha tem cerca de cento e vinte quilômetros de extensão, fechando o gargalo da Inglaterra inteiramente. Tinha, naqueles tempos, de três a cinco metros de altura. Razão para que eu julgue tratar-se de uma senhora muralha.

Pois bem, meu amigo desistiu da tradução e isso por uma razão muito simples. Ousei, com palavras nem tão ácidas, debochar de sua tradução do título.

Um dia depois de minha anuência para que traduzisse, me chegou com uma folha de papel, que logo de cara chamei de estúpida, porque, em letras enormes (metalinguisticamente?) trazia o título traduzido: The wall of Adriano. Quando me parei a rir de seu título, concordou que poderia mudar, talvez para Adriano’s wall. Agora já me deu vontade de chorar. Piorou, gritei, piorou muito.

Meu amigo, a quem muito prezo, quis saber a causa de meu riso. Expliquei a ele que wall, em inglês, significa parede. Seu olhar perdeu-se, passando acima de minha cabeça, indo chocar-se na parede bem atrás de mim. Tem razão, ele concordou depois de certo tempo, wall é parede. Comecei a ficar irritado, porque a muralha de que estava falando não podia ser posta ao lado de algo tão desprezível como uma reles parede. Perguntei se não havia palavra melhor e ele, meu amigo a quem tanto prezo, expulsou um pigarro, pensou um pouco, e me respondeu que não, era wall mesmo.

Estávamos perto da janela, e apontei para o fundo do quintal, perguntando a ele como designaria em inglês a construção que limitava o terreno de minha casa. Muito esperto, meu amigo, que já começava a me desprezar, disse que era isso mesmo, o que eu estava pensando. Wall!?, gritei. Ele confirmou sacudindo a cabeça.

Caramba, exclamei, nós temos parede, muro, muralha e cada uma dessas palavras dá uma ideia bem diferente uma da outra. Nossos muros jamais serão confundidos com paredes ou muralhas. E eles têm wall?

Meu amigo dobrou a folha de papel, enfiou-a num dos bolsos, e a tradução parou por ali mesmo.

E agora, meu caro leitor, se você disser que eu não sei o que é polissemia, vai errar, pois conheço também em nossa língua uma carrada de termos polissêmicos. Mas chamar a muralha de wall, num título, ah, não, isso deixa meu romance meio xinfrim.

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