quinta-feira, 18 de setembro de 2014

QUESTÕES DE ESTÉTICA DA LITERATURA (111)

Jacques Derrida



  Pág. 242 - "3.6.5. A supressão do emissor/autor na poética contemporânea
O princípio formalista da transcendência do texto literário em relação ao seu autor, com a sua força polémica contra o biografismo e o psicologismo de raiz romântica, continua a exercer uma ponderosa influência na poética contemporânea, mesmo quando, como no caso do ensaio 'The intentional fallacy' de Wimsatt e Beardsley, a sua fundamentação racional e científica é manifestamente débil e vaga. É este princípio que justifica, para um pensador da estatura de H.-G. Gadamer, que a hermenêutica do texto literário deva deixar à margem, como irrelevante, a problemática do autor: 'O que é literatura adquiriu uma simultaneidade de um género adequado a qualquer presente. Compreendê-la não significa principalmente retroceder a uma vida passada, mas representa uma participação presente no que é dito. Não se trata propriamente de uma relação entre pessoas, por exemplo entre o leitor e o autor (que é talvez inteiramente desconhecido), mas de uma participação no que é comunicado pelo texto. É aí que nós compreendemos, o sentido do que é dito está aí, independentemente do facto de que possamos ou não, por intermédio da tradição, ter uma ideia do autor [...]'
Esta afirmação da transcendência do texto literário em relação ao seu autor apresetna inequívocas motivações anti-românticas e tem decerto raízes neokantianas - Jürgen Habermas lembra justamente que Gadamer é um filósofo que (p.243) provém da escola neokantiana de Marburgo -, mas tem subjacentes sobretudo as ideias de Heidegger de que a linguagem é a 'mansão do Ser' e de que o homem fala uma linguagem de que efectivamente não dispõe, pois é antes a linguagem que dispõe do homem, que fala o homem, que pré-conforma as suas experiências das coisas e que configura as suas possíveis escolhas. No colóquio (Gespräch) hermenêutico com os textos, em especial com os textos dos poetas, o hermeneuta 'dialoga' com um presente-ausente, com um 'Outro', que é o Ser . à luz desta 'ontologia hermenêutica' heideggeriana, compreende-se que Gadamer afirme que 'O verdadeiro significado de um texto, tal como se apresenta ao intérprete, não depende desses factores ocasionais que representam o autor e o seu primeiro público' e que 'O sifnificado de um texto ultrapassa o seu autor, não ocasionalmente, mas sempre'.
Quando Gadamer se refere a 'literatura', a 'texto' e a colóquio hermenêutico, pensa na 'literatura escrita' e no 'texto (p. 244)escrito', pois é na escrita (Schriftlichkeit) que 'a língua adquire a sua verdadeira espiritualidade', alcançando o significado do texto escrito perfeita autonomia, 'inteiramente dissociado dos factores emocionais da expressão e da comunicação, e atingindo a consciência, face ao texto escrito, a sua plena soberania. O princípio formalista da autonomia e da autotelicidade do texto literário, transformado pela 'ontologia hermenêutica' de Heidegger, converte-se assim no princípio da autonomia e da impositividade radicais da escrita, em relação à qual o autor assume apenas a função de 'factor ocasional'.
Derrida, em cuja obra algumas ideias de Gadamer se repetem e se repercutem em sortílega eflorescência metafórica, imagina este 'factor ocasional' como uma aranha que urde involuntária e inscientemente uma teia que a transcende e na qual o aracnídeo se anula - urdidura que acaba por funcionar por si mesma, em cujos fios ardilosos se enlearão outros animais à procura de um sentido e cujo nome é escrita . Se, na matáfora derridiana, a teia ainda necessita da presença e do labor iniciais da aranha, que na sua urdidura se aniquila sem talvez nunca a compreender, em Jean-Louis Baudry, por exemplo, a transcendência e a a-causalidade da escrita dispensam qualquer simulacro de autor, pois todo o fragmento textual é uma parcela actualiizada do texto infinito que não cessa de se escrever, uma manifestação particular da escrita universal e ilimitada: 'Dans cette perspective, le sujet, cause de l'écriture, s'évanouit et l'auteur, l'''écrivain', avec lui. L'écriture ne 'represente' pas la 'création' d'un individu isolé; elle ne peut pas être considérée comme sa propriété, mais bien au contraire à travers un nom qui n'est déjà que fragment textuel, elle apparaît comme (p. 245) une des manifestations particulières de l'écriture générale. [...] Pleynet l'a bien montré à propos de Lautréamont, ce n'est pas un 'auteur' qui signe une 'oeuvre', mais un texte qui signe un nom'. A lógica da supressão do emissor/autor, ínsita na poética formalista e potenciada pela 'ontologia hermenêutica' de Heidegger e Gadamer, alcança assim o seu clímax nas posições teóricas do grupo da revista Tel Quel.

(CONTINUA)






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