* O conto a seguir integra o livro À sombra do cipreste, escolhido como Livro do ano do Prêmio Jabuti 2000, editado inicialmente pela Palavra Mágica e reeditado pela Global Editora.
Pequeno
coração álgido
Nem fui trabalhar hoje, o homem repete em seu favor, ofegante ainda, e na esperança de que pelo menos a mãe o
encare. Não fui. Também, maior susto, aquele bilhete debaixo da xícara. E
vocês, mas então, o que é isso? Uma
dificuldade encontrar as duas aqui, ele se queixa, uma das mãos no bolso,
fingindo naturalidade, a outra girando agitada acima de sua cabeça.
Silenciosas, mãe e filha achegam-se ainda mais uma à outra, acuadas, e
acompanham com olhar medroso o gesto exagerado daquele braço, que desenha um
círculo no ar e abrange o amplo saguão da rodoviária: uma dificuldade encontrar
vocês duas aqui. A menina, maravilhada, distrai-se algum tempo admirando os letreiros coloridos e as vitrinas iluminadas
que parecem de repente rodopiar ao redor de sua cabeça, espargidas por aquela
mão poderosa.
Quando chegaram, ainda escuro, havia muitos bancos vagos e um silêncio de
cochichos pelos cantos, porque era ainda praticamente noite e a noite não se
deve acordá-la falando alto demais. A mãe escolhera aquele lugar por ser
isolado e protegido: onde o vento frio não chegava. De vez em quando um
cachorro de pêlo áspero e cauda caída cruzava em diagonal o saguão; de vez em
quando um homem maldormido e de sapatos ressecados vinha trôpego ocupar um dos
bancos vazios, dispondo em sua volta sacos e sacolas onde resumia sua história.
Os relógios, todos parados, dormiam também.
De pé, na frente das duas, pernas abertas fechando as saídas, opressivo,
o homem sacode a cabeça, inconformado, tanta coisa com que se preocupar, nesta
época do ano, justo agora. Faltando o quê, em casa, que saíam assim a procurar
pelo mundo? A menina descobre a estufa de pastéis sobre o balcão de um bar, do
outro lado do saguão, e sente fome.
Então não se matava no trabalho para supri-las de todo o conforto? Os
olhos silenciosos da menina apontam com insistência para a estufa, mas ninguém
percebe o que eles dizem. Sua mãe, muda, suporta aquelas perguntas já tão
conhecidas, que ele repete, de pé, parado na frente das duas, indiferente ao
desconforto causado por sua presença. A mãe nada responde, tantas pessoas passando
por perto, atentas, querendo saber por que um homem aparece assim, de repente,
reclamando o que julga seu de direito.
De vez em quando o alto-falante anuncia uma partida e deseja boa viagem.
O coração da mulher se agita, impaciente, e ela pára os olhos claros, presa a
respiração, para ouvir melhor, mesmo sabendo que ainda não é sua hora, que o dia não tarda, mas que ainda não chegou.
Faltando o quê, em casa, o que mais podem querer para não fugir? Flagrada, assim, em sua impotência, ela vira
o rosto, encolhe-se um pouco, procura
esconder os olhos no rastro deixado pela fome da filha. Como explicar este
vazio sem nome, definir o vago desejo de um espaço há tanto perdido? Faltando o
quê? Seus olhos, então, cruzam com os dele, que não lhe desmentem a voz. Sua
estatura, do alto da qual tinha chegado fazendo perguntas, quase aos gritos,
agora a ponto de ruir. Sente-se comovida com os estragos causados por sua
decisão. E abalada. Sabe que nem ela mesma sairá incólume, mas não sabe como
nem se quer retroceder. Sua vontade fraqueja, sem rumo e sem razão. Você quer
um pastel?, ela pergunta à filha para se ver livre do desconforto, mas não
chega a entender a resposta.
Ele se aproxima um pouco mais, empurrado pelos passantes: multidão sobre
a qual jorram feixes da luz multicolorida que começa a descer em catarata da
clarabóia. Nem assim é possível aquele diálogo, já tão difícil de suportar. A
mulher ameaça arrancar a pele dos braços, exasperada. Difícil, no meio daquela
confusão, até mesmo conservar intactas as emoções. Um pastel?,
ela oferece novamente, começando já a esquecer o tom magoado da voz com que ele
há pouco repetia suas perguntas. A filha então desabrocha um sorriso estúpido e
cheio de esperança.
De pé junto ao balcão, hirta e atônita, a mãe espera ser atendida. Seu
pequeno coração álgido tropeça em sombras desconhecidas e sua coragem parece
falecer. Ela se demora, indecisa sobre o que levar, demora o quanto pode para
pagar e muito mais gostaria de demorar, o resto de sua vida, quem sabe, não fosse
a filha à sua espera. Olha algumas vezes para trás, sabendo que lá ele está e
que de lá, tão cedo, não pretende sair. Isso a inquieta, mas não a amedronta,
pois sabe que o homem nada fará além de se entregar ao sofrimento.
A mulher atravessa de volta o saguão, em ziguezague, para evitar a
confusão dos passageiros e suas bagagens. De longe enquadra a cena da filha
conversando animadamente com o pai, muito membros da mesma família. Então sorri
para a menina, acenando com o saco de
papel engordurado. Não compreende bem, mas sente que alguma porta de seu
passado acaba de ser fechada.
Entrega os pastéis para a filha e, inteiramente descolorida, junta do
chão suas malas, que entrega ao marido. Vamos embora, ela murmura, sem esperar
o anúncio do alto-falante.
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