sexta-feira, 19 de setembro de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

* O conto a seguir integra o livro À sombra do cipreste, escolhido como Livro do ano do Prêmio Jabuti 2000, editado inicialmente pela Palavra Mágica e reeditado pela Global Editora.

Pequeno coração álgido 


Nem fui trabalhar hoje, o homem repete em seu favor, ofegante ainda,  e na esperança de que pelo menos a mãe o encare. Não fui. Também, maior susto, aquele bilhete debaixo da xícara. E vocês, mas então, o que é isso?  Uma dificuldade encontrar as duas aqui, ele se queixa, uma das mãos no bolso, fingindo naturalidade, a outra girando agitada acima de sua cabeça.
Silenciosas, mãe e filha achegam-se ainda mais uma à outra, acuadas, e acompanham com olhar medroso o gesto exagerado daquele braço, que desenha um círculo no ar e abrange o amplo saguão da rodoviária: uma dificuldade encontrar vocês duas aqui. A menina, maravilhada, distrai-se algum tempo admirando  os letreiros coloridos e as vitrinas iluminadas que parecem de repente rodopiar ao redor de sua cabeça, espargidas por aquela mão poderosa.

Quando chegaram, ainda escuro, havia muitos bancos vagos e um silêncio de cochichos pelos cantos, porque era ainda praticamente noite e a noite não se deve acordá-la falando alto demais. A mãe escolhera aquele lugar por ser isolado e protegido: onde o vento frio não chegava. De vez em quando um cachorro de pêlo áspero e cauda caída cruzava em diagonal o saguão; de vez em quando um homem maldormido e de sapatos ressecados vinha trôpego ocupar um dos bancos vazios, dispondo em sua volta sacos e sacolas onde resumia sua história. Os relógios, todos parados, dormiam também.
De pé, na frente das duas, pernas abertas fechando as saídas, opressivo, o homem sacode a cabeça, inconformado, tanta coisa com que se preocupar, nesta época do ano, justo agora. Faltando o quê, em casa, que saíam assim a procurar pelo mundo? A menina descobre a estufa de pastéis sobre o balcão de um bar, do outro lado do saguão, e sente fome.  Então não se matava no trabalho para supri-las de todo o conforto? Os olhos silenciosos da menina apontam com insistência para a estufa, mas ninguém percebe o que eles dizem. Sua mãe, muda, suporta aquelas perguntas já tão conhecidas, que ele repete, de pé, parado na frente das duas, indiferente ao desconforto causado por sua presença. A mãe nada responde, tantas pessoas passando por perto, atentas, querendo saber por que um homem aparece assim, de repente, reclamando o que julga seu de direito.
De vez em quando o alto-falante anuncia uma partida e deseja boa viagem. O coração da mulher se agita, impaciente, e ela pára os olhos claros, presa a respiração, para ouvir melhor, mesmo sabendo que ainda não é  sua hora, que o dia não tarda, mas  que ainda não chegou.
Faltando o quê, em casa, o que mais podem querer para não fugir?  Flagrada, assim, em sua impotência, ela vira o rosto, encolhe-se um pouco,  procura esconder os olhos no rastro deixado pela fome da filha. Como explicar este vazio sem nome, definir o vago desejo de um espaço há tanto perdido? Faltando o quê? Seus olhos, então, cruzam com os dele, que não lhe desmentem a voz. Sua estatura, do alto da qual tinha chegado fazendo perguntas, quase aos gritos, agora a ponto de ruir. Sente-se comovida com os estragos causados por sua decisão. E abalada. Sabe que nem ela mesma sairá incólume, mas não sabe como nem se quer retroceder. Sua vontade fraqueja, sem rumo e sem razão. Você quer um pastel?, ela pergunta à filha para se ver livre do desconforto, mas não chega a entender a resposta.
Ele se aproxima um pouco mais, empurrado pelos passantes: multidão sobre a qual jorram feixes da luz multicolorida que começa a descer em catarata da clarabóia. Nem assim é possível aquele diálogo, já tão difícil de suportar. A mulher ameaça arrancar a pele dos braços, exasperada. Difícil, no meio daquela confusão,  até mesmo  conservar intactas as emoções. Um pastel?, ela oferece novamente, começando já a esquecer o tom magoado da voz com que ele há pouco repetia suas perguntas. A filha então desabrocha um sorriso estúpido e cheio de esperança.
De pé junto ao balcão, hirta e atônita, a mãe espera ser atendida. Seu pequeno coração álgido tropeça em sombras desconhecidas e sua coragem parece falecer. Ela se demora, indecisa sobre o que levar, demora o quanto pode para pagar e muito mais gostaria de demorar, o resto de sua vida, quem sabe, não fosse a filha à sua espera. Olha algumas vezes para trás, sabendo que lá ele está e que de lá, tão cedo, não pretende sair. Isso a inquieta, mas não a amedronta, pois sabe que o homem nada fará além de se entregar ao sofrimento.
A mulher atravessa de volta o saguão, em ziguezague, para evitar a confusão dos passageiros e suas bagagens. De longe enquadra a cena da filha conversando animadamente com o pai, muito membros da mesma família. Então sorri para a menina,  acenando com o saco de papel engordurado. Não compreende bem, mas sente que alguma porta de seu passado acaba de ser fechada.
Entrega os pastéis para a filha e, inteiramente descolorida, junta do chão suas malas, que entrega ao marido. Vamos embora, ela murmura, sem esperar o anúncio do alto-falante.













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