Conto publicado no livro À sombra do cipreste, editado pela Global.
Adagio
apassionatto
Sua mão estremece sábia e
desconfiada após o afago. Corpo estranho, este corpo crescido, ela tateia: fora
de seu controle. Contorna com os dedos o lóbulo da orelha, flácida curva.
Definitivamente, com exceção do corpo, a mesma Estela que subia das ondas do
mar, aureolada de sol, e vinha correndo ao seu encontro, aspergindo areia e o
doce perfume de seu hálito infantil, e, cheia de inquietação, de longe, ainda,
perguntava mãe, foi mesmo Deus quem salgou a água do mar?, e ela respondia que
sim, minha filha, por saber que a menina em tudo dependia dela e isso a fazia
sentir-se forte. Vê-la era sempre como um susto, por gosto. Com uma ponta do
lençol, seca o rosto da filha, suavemente, porque mais que isso ela sabe que
não conseguirá fazer.
Conhecera-lhe o corpo,
saliências e reentrâncias, cada espaço, porque em si a tinha gerado. Apenas o
corpo, que estava em si controlar. Você, pensa Lígia quase envergonhada, vinha
correndo de dentro do mar, banhada de luz, respingada de água e areia e então
eu a reconhecia. Como era bom aquele tempo em que eu a sabia uma parte de mim.
Há
mais de meia hora a claridade azulada se esvai lenta e resig-nadamente pelas cortinas
cerradas, abandonando o quarto. A cama, colcha repuxada, perdeu a aspereza das
formas exatas: ninho de nuvens, agora. O Cristo da parede, coração exposto, não
aparece mais na paisagem que até há pouco o sustentava. Lígia olha para o
Cristo e para a janela, olhar duro e reto, irritada com a impotência dos dois. Então olha para o
vulto impreciso de Estela sem saber mais nada, seu mundo vazio.
Nada, então, a solução de
tudo? Por mais que se desespere tentando resolver a questão, apenas uma fina
camada de suor no buço e as palmas das mãos frias e úmidas. Não está preparada
para as transformações nem as deseja.
Às vezes tem a impressão de
que Estela dorme, por isso torce bruscamente os dedos, temendo o impasse.
Com a mão trêmula e gasta de
vida, sacode de leve o ombro da filha. Seu pai, Estela, daqui a pouco em casa. E a filha a encara,
os olhos vermelhos ainda. E inchados. E eu, que faço de mim, desorientada?
Lígia volta a olhar para a janela, em fuga, agora, para não se machucar
naquelas duas brasas que a perscrutam. A janela é mancha azulada que nada diz.
Aguda e travosa, uma coisa
arranhando o interior de sua garganta - a
consciência da perda. E antiga. Não pode desvencilhar-se da idéia de que
abdicara de alguma coisa sagrada no deserto instante em que recebia nos braços
o corpo molhado de Estela. Que sim, sua resposta invariável, que Deus. Que
outra coisa poderia responder, se ela era tão pequena e sua cabeleira loira
empastada de água salgada nada revelava sobre o futuro?
No ar morno do quarto
protegido, convidou Lígia. Assuntos de alcova. Estela estava tensa, o semblante
destruído. Mas então, o que é isso? Não que ignorasse totalmente por que
caminhos perigosos andava a filha. Não ignorava. Mas havia sempre a esperança
de que não passasse tudo de boatos. Essa maldade que nos faz destruir com certo
gosto. Mesmo, entretanto, tendo já tido notícias, precisava ouvir da própria
boca, a boca de Estela, com a força de
seu hálito, para então acreditar. Quando ouviu sua voz pelo telefone, logo
depois do almoço, meu Deus do céu, uma voz assim, e achou que havia fundamento
nas histórias.
No ar morno do quarto
protegido, Lígia pensa horrorizada que o silêncio a vai estrangular. Então não
eram mentiras, dizia o olhar com que recebeu na sala, logo depois do almoço, a
filha desesperada. No ar morno do quarto protegido, ela convidou, porque dividia
sua casa por assuntos. Tenta com afinco encontrar a Estela que emergia das
ondas, mas só a encontra perquiridora refazendo as significações. Sem auréola de sol - tenebrosa. Bem mais
fácil enlaçar-lhe o corpo quando molhado, apesar do sal e do frio.
Conhecia-lhe, então, todas as curvas existentes e as que apenas se prometiam.
De repente, aproveitando-se
de um dos muitos momentos de silêncio que se estabelecem no quase impossível
diálogo, Lígia arrepende-se de ter trazido a filha para seu quarto. E é com
horror que pensa nisso, porque aquela é a filha que criou, tentando todos os
dias educá-la, fazê-la igual a si mesma. Tê-la agora deitada em sua cama, com a
cabeça abandonada em seu regaço, é uma espécie de conivência indesejada. Há
pecados contagiosos como doenças. Mesmo sem vê-lo, ela sabe que o coração
exposto do Cristo vela acima da cabeceira. De súbito lhe vem à mente a palavra
violação: seu significado perigoso. Se já estava há algum tempo aflita com a
falta de progressão da entrevista, agora está convencida de que não deveria
tê-la começado. Pelo menos ali, no quarto do casal.
O que de certa maneira
abranda a cumplicidade entre mãe e filha, ela descobre, são as sombras que
silenciosamente foram diluindo todas as formas nítidas. Não ver alguma coisa
pode significar sua anulação. E Lígia, então, volta a sentir-se calma e segura.
Mesmo assim, contudo, é com alguma relutância que seu dedo desenha no escuro o
rosto de Estela, numa carícia tão antiga
quanto dissimulada.
Estela retrucava, às vezes, o
coração cheio de suspeitas, mas como é que você sabe?, querendo descobrir as
razões que se escondiam nas respostas da mãe. Ora, porque sempre foi assim.
Cansada ou incrédula, sentava-se na areia e construía castelos de curta vida.
Mas eles eram reais e decifráveis. Às vezes espichava os beiços e enrugava a
testa, significando sua discordância. Era assim que costumava encarar os
adultos, seu modo de ser insolente, de os considerar sempre culpados.
Ao fecharem sem ruído a porta
do quarto, apesar da penumbra em que imergiam, por causa das cortinas, Lígia
percebeu que era ainda dia claro. Examinou a janela, sem muita atenção,
entretanto, pois sabia que a tarde vagava ainda entre sexta e noa. Antes que pudesse
proferir uma única palavra, Estela jogara-se na cama, de bruços, engasgada em
seu próprio choro. E assim ficara, por mais de meia hora. Entre soluços e suspiros,
ao final de muito tempo, contou indignada a decisão do marido. Irrevogável.
Ele, um advogado com seu vocabulário. Assim mesmo dissera: irrevogável. Afinal,
quais são os limites do amor?, fitando a mãe, a interrogação naquela mesma cara
com expressão de areia e mar. Por que há de ser o coração tão estreito que nele
caiba apenas um amor?
Horrorizada, Lígia fizera o sinal
da cruz. Que Deus, o mesmo que salgara o mar, perdoasse aquela menina pelo
nonsense do que dizia. E tentou afastar-se, mas era-lhe impossível sem que
empurrasse a cabeça da filha em
prantos. E apesar do horror, e do suor, e do olhar manso e puro
do Cristo de coração exposto, afagou com suavidade a cabeça jogada em seu colo.
Que Deus nos perdoe a todos nós, humildes pecadores.
Volta-lhe o sentimento da violação, cujo zumbido, aliás, não tinha
deixado de ouvir num espaço por baixo da consciência. E observa, então, como
naquele momento se arrependera de ter trazido a filha para seu quarto. Nunca se
pensara capaz de sentimento tão mesquinho.
E este arrependimento do arrependimento anterior, que é negação por fechar o
círculo, ele é que a impulsiona a curvar-se e, lábios tateantes, procurar a
face da filha. Difícil entender a vida, minha filha. Há muito renunciei a
qualquer entendimento. E no escuro do quarto, sente-se por momentos
enternecida. Estela, ao jogar-se em seus braços - encharcado, seu maiô azul
salpicado de estrelas - está entanguida de frio, a pele arrepiada. Ao enlaçá-la
pela cintura, aquela mesma sensação de que a está perdendo. Já não sei quem
foi, minha querida, não sei quem foi que salgou a água do mar. Mas onde foi
isso, quando? Lígia olha para o Cristo de coração exposto, olha para a janela,
como seAdagio
apassionatto
Sua mão estremece sábia e
desconfiada após o afago. Corpo estranho, este corpo crescido, ela tateia: fora
de seu controle. Contorna com os dedos o lóbulo da orelha, flácida curva.
Definitivamente, com exceção do corpo, a mesma Estela que subia das ondas do
mar, aureolada de sol, e vinha correndo ao seu encontro, aspergindo areia e o
doce perfume de seu hálito infantil, e, cheia de inquietação, de longe, ainda,
perguntava mãe, foi mesmo Deus quem salgou a água do mar?, e ela respondia que
sim, minha filha, por saber que a menina em tudo dependia dela e isso a fazia
sentir-se forte. Vê-la era sempre como um susto, por gosto. Com uma ponta do
lençol, seca o rosto da filha, suavemente, porque mais que isso ela sabe que
não conseguirá fazer.
Conhecera-lhe o corpo,
saliências e reentrâncias, cada espaço, porque em si a tinha gerado. Apenas o
corpo, que estava em si controlar. Você, pensa Lígia quase envergonhada, vinha
correndo de dentro do mar, banhada de luz, respingada de água e areia e então
eu a reconhecia. Como era bom aquele tempo em que eu a sabia uma parte de mim.
Há
mais de meia hora a claridade azulada se esvai lenta e resig-nadamente pelas cortinas
cerradas, abandonando o quarto. A cama, colcha repuxada, perdeu a aspereza das
formas exatas: ninho de nuvens, agora. O Cristo da parede, coração exposto, não
aparece mais na paisagem que até há pouco o sustentava. Lígia olha para o
Cristo e para a janela, olhar duro e reto, irritada com a impotência dos dois. Então olha para o
vulto impreciso de Estela sem saber mais nada, seu mundo vazio.
Nada, então, a solução de
tudo? Por mais que se desespere tentando resolver a questão, apenas uma fina
camada de suor no buço e as palmas das mãos frias e úmidas. Não está preparada
para as transformações nem as deseja.
Às vezes tem a impressão de
que Estela dorme, por isso torce bruscamente os dedos, temendo o impasse.
Com a mão trêmula e gasta de
vida, sacode de leve o ombro da filha. Seu pai, Estela, daqui a pouco em casa. E a filha a encara,
os olhos vermelhos ainda. E inchados. E eu, que faço de mim, desorientada?
Lígia volta a olhar para a janela, em fuga, agora, para não se machucar
naquelas duas brasas que a perscrutam. A janela é mancha azulada que nada diz.
Aguda e travosa, uma coisa
arranhando o interior de sua garganta - a
consciência da perda. E antiga. Não pode desvencilhar-se da idéia de que
abdicara de alguma coisa sagrada no deserto instante em que recebia nos braços
o corpo molhado de Estela. Que sim, sua resposta invariável, que Deus. Que
outra coisa poderia responder, se ela era tão pequena e sua cabeleira loira
empastada de água salgada nada revelava sobre o futuro?
No ar morno do quarto
protegido, convidou Lígia. Assuntos de alcova. Estela estava tensa, o semblante
destruído. Mas então, o que é isso? Não que ignorasse totalmente por que
caminhos perigosos andava a filha. Não ignorava. Mas havia sempre a esperança
de que não passasse tudo de boatos. Essa maldade que nos faz destruir com certo
gosto. Mesmo, entretanto, tendo já tido notícias, precisava ouvir da própria
boca, a boca de Estela, com a força de
seu hálito, para então acreditar. Quando ouviu sua voz pelo telefone, logo
depois do almoço, meu Deus do céu, uma voz assim, e achou que havia fundamento
nas histórias.
No ar morno do quarto
protegido, Lígia pensa horrorizada que o silêncio a vai estrangular. Então não
eram mentiras, dizia o olhar com que recebeu na sala, logo depois do almoço, a
filha desesperada. No ar morno do quarto protegido, ela convidou, porque dividia
sua casa por assuntos. Tenta com afinco encontrar a Estela que emergia das
ondas, mas só a encontra perquiridora refazendo as significações. Sem auréola de sol - tenebrosa. Bem mais
fácil enlaçar-lhe o corpo quando molhado, apesar do sal e do frio.
Conhecia-lhe, então, todas as curvas existentes e as que apenas se prometiam.
De repente, aproveitando-se
de um dos muitos momentos de silêncio que se estabelecem no quase impossível
diálogo, Lígia arrepende-se de ter trazido a filha para seu quarto. E é com
horror que pensa nisso, porque aquela é a filha que criou, tentando todos os
dias educá-la, fazê-la igual a si mesma. Tê-la agora deitada em sua cama, com a
cabeça abandonada em seu regaço, é uma espécie de conivência indesejada. Há
pecados contagiosos como doenças. Mesmo sem vê-lo, ela sabe que o coração
exposto do Cristo vela acima da cabeceira. De súbito lhe vem à mente a palavra
violação: seu significado perigoso. Se já estava há algum tempo aflita com a
falta de progressão da entrevista, agora está convencida de que não deveria
tê-la começado. Pelo menos ali, no quarto do casal.
O que de certa maneira
abranda a cumplicidade entre mãe e filha, ela descobre, são as sombras que
silenciosamente foram diluindo todas as formas nítidas. Não ver alguma coisa
pode significar sua anulação. E Lígia, então, volta a sentir-se calma e segura.
Mesmo assim, contudo, é com alguma relutância que seu dedo desenha no escuro o
rosto de Estela, numa carícia tão antiga
quanto dissimulada.
Estela retrucava, às vezes, o
coração cheio de suspeitas, mas como é que você sabe?, querendo descobrir as
razões que se escondiam nas respostas da mãe. Ora, porque sempre foi assim.
Cansada ou incrédula, sentava-se na areia e construía castelos de curta vida.
Mas eles eram reais e decifráveis. Às vezes espichava os beiços e enrugava a
testa, significando sua discordância. Era assim que costumava encarar os
adultos, seu modo de ser insolente, de os considerar sempre culpados.
Ao fecharem sem ruído a porta
do quarto, apesar da penumbra em que imergiam, por causa das cortinas, Lígia
percebeu que era ainda dia claro. Examinou a janela, sem muita atenção,
entretanto, pois sabia que a tarde vagava ainda entre sexta e noa. Antes que pudesse
proferir uma única palavra, Estela jogara-se na cama, de bruços, engasgada em
seu próprio choro. E assim ficara, por mais de meia hora. Entre soluços e suspiros,
ao final de muito tempo, contou indignada a decisão do marido. Irrevogável.
Ele, um advogado com seu vocabulário. Assim mesmo dissera: irrevogável. Afinal,
quais são os limites do amor?, fitando a mãe, a interrogação naquela mesma cara
com expressão de areia e mar. Por que há de ser o coração tão estreito que nele
caiba apenas um amor?
Horrorizada, Lígia fizera o sinal
da cruz. Que Deus, o mesmo que salgara o mar, perdoasse aquela menina pelo
nonsense do que dizia. E tentou afastar-se, mas era-lhe impossível sem que
empurrasse a cabeça da filha em
prantos. E apesar do horror, e do suor, e do olhar manso e puro
do Cristo de coração exposto, afagou com suavidade a cabeça jogada em seu colo.
Que Deus nos perdoe a todos nós, humildes pecadores.
Volta-lhe o sentimento da violação, cujo zumbido, aliás, não tinha
deixado de ouvir num espaço por baixo da consciência. E observa, então, como
naquele momento se arrependera de ter trazido a filha para seu quarto. Nunca se
pensara capaz de sentimento tão mesquinho.
E este arrependimento do arrependimento anterior, que é negação por fechar o
círculo, ele é que a impulsiona a curvar-se e, lábios tateantes, procurar a
face da filha. Difícil entender a vida, minha filha. Há muito renunciei a
qualquer entendimento. E no escuro do quarto, sente-se por momentos
enternecida. Estela, ao jogar-se em seus braços - encharcado, seu maiô azul
salpicado de estrelas - está entanguida de frio, a pele arrepiada. Ao enlaçá-la
pela cintura, aquela mesma sensação de que a está perdendo. Já não sei quem
foi, minha querida, não sei quem foi que salgou a água do mar. Mas onde foi
isso, quando? Lígia olha para o Cristo de coração exposto, olha para a janela,
como se fossem mais do que apenas duas direções, suas formas desfeitas na
escuridão, e lhe pudessem sugerir alguma resposta.
Lígia não sabe mais se a filha vela - debruçada sobre sua dor - ou dorme,
finalmente aliviada. Sacode-a com delicadeza e cheia de medo do que poderá
estar acordando.
- Estela, minha filha. Agora temos de levantar. Já ouço os passos de seu
pai.
Adagio
apassionatto
Sua mão estremece sábia e
desconfiada após o afago. Corpo estranho, este corpo crescido, ela tateia: fora
de seu controle. Contorna com os dedos o lóbulo da orelha, flácida curva.
Definitivamente, com exceção do corpo, a mesma Estela que subia das ondas do
mar, aureolada de sol, e vinha correndo ao seu encontro, aspergindo areia e o
doce perfume de seu hálito infantil, e, cheia de inquietação, de longe, ainda,
perguntava mãe, foi mesmo Deus quem salgou a água do mar?, e ela respondia que
sim, minha filha, por saber que a menina em tudo dependia dela e isso a fazia
sentir-se forte. Vê-la era sempre como um susto, por gosto. Com uma ponta do
lençol, seca o rosto da filha, suavemente, porque mais que isso ela sabe que
não conseguirá fazer.
Conhecera-lhe o corpo,
saliências e reentrâncias, cada espaço, porque em si a tinha gerado. Apenas o
corpo, que estava em si controlar. Você, pensa Lígia quase envergonhada, vinha
correndo de dentro do mar, banhada de luz, respingada de água e areia e então
eu a reconhecia. Como era bom aquele tempo em que eu a sabia uma parte de mim.
Há
mais de meia hora a claridade azulada se esvai lenta e resig-nadamente pelas cortinas
cerradas, abandonando o quarto. A cama, colcha repuxada, perdeu a aspereza das
formas exatas: ninho de nuvens, agora. O Cristo da parede, coração exposto, não
aparece mais na paisagem que até há pouco o sustentava. Lígia olha para o
Cristo e para a janela, olhar duro e reto, irritada com a impotência dos dois. Então olha para o
vulto impreciso de Estela sem saber mais nada, seu mundo vazio.
Nada, então, a solução de
tudo? Por mais que se desespere tentando resolver a questão, apenas uma fina
camada de suor no buço e as palmas das mãos frias e úmidas. Não está preparada
para as transformações nem as deseja.
Às vezes tem a impressão de
que Estela dorme, por isso torce bruscamente os dedos, temendo o impasse.
Com a mão trêmula e gasta de
vida, sacode de leve o ombro da filha. Seu pai, Estela, daqui a pouco em casa. E a filha a encara,
os olhos vermelhos ainda. E inchados. E eu, que faço de mim, desorientada?
Lígia volta a olhar para a janela, em fuga, agora, para não se machucar
naquelas duas brasas que a perscrutam. A janela é mancha azulada que nada diz.
Aguda e travosa, uma coisa
arranhando o interior de sua garganta - a
consciência da perda. E antiga. Não pode desvencilhar-se da idéia de que
abdicara de alguma coisa sagrada no deserto instante em que recebia nos braços
o corpo molhado de Estela. Que sim, sua resposta invariável, que Deus. Que
outra coisa poderia responder, se ela era tão pequena e sua cabeleira loira
empastada de água salgada nada revelava sobre o futuro?
No ar morno do quarto
protegido, convidou Lígia. Assuntos de alcova. Estela estava tensa, o semblante
destruído. Mas então, o que é isso? Não que ignorasse totalmente por que
caminhos perigosos andava a filha. Não ignorava. Mas havia sempre a esperança
de que não passasse tudo de boatos. Essa maldade que nos faz destruir com certo
gosto. Mesmo, entretanto, tendo já tido notícias, precisava ouvir da própria
boca, a boca de Estela, com a força de
seu hálito, para então acreditar. Quando ouviu sua voz pelo telefone, logo
depois do almoço, meu Deus do céu, uma voz assim, e achou que havia fundamento
nas histórias.
No ar morno do quarto
protegido, Lígia pensa horrorizada que o silêncio a vai estrangular. Então não
eram mentiras, dizia o olhar com que recebeu na sala, logo depois do almoço, a
filha desesperada. No ar morno do quarto protegido, ela convidou, porque dividia
sua casa por assuntos. Tenta com afinco encontrar a Estela que emergia das
ondas, mas só a encontra perquiridora refazendo as significações. Sem auréola de sol - tenebrosa. Bem mais
fácil enlaçar-lhe o corpo quando molhado, apesar do sal e do frio.
Conhecia-lhe, então, todas as curvas existentes e as que apenas se prometiam.
De repente, aproveitando-se
de um dos muitos momentos de silêncio que se estabelecem no quase impossível
diálogo, Lígia arrepende-se de ter trazido a filha para seu quarto. E é com
horror que pensa nisso, porque aquela é a filha que criou, tentando todos os
dias educá-la, fazê-la igual a si mesma. Tê-la agora deitada em sua cama, com a
cabeça abandonada em seu regaço, é uma espécie de conivência indesejada. Há
pecados contagiosos como doenças. Mesmo sem vê-lo, ela sabe que o coração
exposto do Cristo vela acima da cabeceira. De súbito lhe vem à mente a palavra
violação: seu significado perigoso. Se já estava há algum tempo aflita com a
falta de progressão da entrevista, agora está convencida de que não deveria
tê-la começado. Pelo menos ali, no quarto do casal.
O que de certa maneira
abranda a cumplicidade entre mãe e filha, ela descobre, são as sombras que
silenciosamente foram diluindo todas as formas nítidas. Não ver alguma coisa
pode significar sua anulação. E Lígia, então, volta a sentir-se calma e segura.
Mesmo assim, contudo, é com alguma relutância que seu dedo desenha no escuro o
rosto de Estela, numa carícia tão antiga
quanto dissimulada.
Estela retrucava, às vezes, o
coração cheio de suspeitas, mas como é que você sabe?, querendo descobrir as
razões que se escondiam nas respostas da mãe. Ora, porque sempre foi assim.
Cansada ou incrédula, sentava-se na areia e construía castelos de curta vida.
Mas eles eram reais e decifráveis. Às vezes espichava os beiços e enrugava a
testa, significando sua discordância. Era assim que costumava encarar os
adultos, seu modo de ser insolente, de os considerar sempre culpados.
Ao fecharem sem ruído a porta
do quarto, apesar da penumbra em que imergiam, por causa das cortinas, Lígia
percebeu que era ainda dia claro. Examinou a janela, sem muita atenção,
entretanto, pois sabia que a tarde vagava ainda entre sexta e noa. Antes que pudesse
proferir uma única palavra, Estela jogara-se na cama, de bruços, engasgada em
seu próprio choro. E assim ficara, por mais de meia hora. Entre soluços e suspiros,
ao final de muito tempo, contou indignada a decisão do marido. Irrevogável.
Ele, um advogado com seu vocabulário. Assim mesmo dissera: irrevogável. Afinal,
quais são os limites do amor?, fitando a mãe, a interrogação naquela mesma cara
com expressão de areia e mar. Por que há de ser o coração tão estreito que nele
caiba apenas um amor?
Horrorizada, Lígia fizera o sinal
da cruz. Que Deus, o mesmo que salgara o mar, perdoasse aquela menina pelo
nonsense do que dizia. E tentou afastar-se, mas era-lhe impossível sem que
empurrasse a cabeça da filha em
prantos. E apesar do horror, e do suor, e do olhar manso e puro
do Cristo de coração exposto, afagou com suavidade a cabeça jogada em seu colo.
Que Deus nos perdoe a todos nós, humildes pecadores.
Volta-lhe o sentimento da violação, cujo zumbido, aliás, não tinha
deixado de ouvir num espaço por baixo da consciência. E observa, então, como
naquele momento se arrependera de ter trazido a filha para seu quarto. Nunca se
pensara capaz de sentimento tão mesquinho.
E este arrependimento do arrependimento anterior, que é negação por fechar o
círculo, ele é que a impulsiona a curvar-se e, lábios tateantes, procurar a
face da filha. Difícil entender a vida, minha filha. Há muito renunciei a
qualquer entendimento. E no escuro do quarto, sente-se por momentos
enternecida. Estela, ao jogar-se em seus braços - encharcado, seu maiô azul
salpicado de estrelas - está entanguida de frio, a pele arrepiada. Ao enlaçá-la
pela cintura, aquela mesma sensação de que a está perdendo. Já não sei quem
foi, minha querida, não sei quem foi que salgou a água do mar. Mas onde foi
isso, quando? Lígia olha para o Cristo de coração exposto, olha para a janela,
como se fossem mais do que apenas duas direções, suas formas desfeitas na
escuridão, e lhe pudessem sugerir alguma resposta.
Lígia não sabe mais se a filha vela - debruçada sobre sua dor - ou dorme,
finalmente aliviada. Sacode-a com delicadeza e cheia de medo do que poderá
estar acordando.
- Estela, minha filha. Agora temos de levantar. Já ouço os passos de seu
pai.
Sua mão estremece sábia e
desconfiada após o afago. Corpo estranho, este corpo crescido, ela tateia: fora
de seu controle. Contorna com os dedos o lóbulo da orelha, flácida curva.
Definitivamente, com exceção do corpo, a mesma Estela que subia das ondas do
mar, aureolada de sol, e vinha correndo ao seu encontro, aspergindo areia e o
doce perfume de seu hálito infantil, e, cheia de inquietação, de longe, ainda,
perguntava mãe, foi mesmo Deus quem salgou a água do mar?, e ela respondia que
sim, minha filha, por saber que a menina em tudo dependia dela e isso a fazia
sentir-se forte. Vê-la era sempre como um susto, por gosto. Com uma ponta do
lençol, seca o rosto da filha, suavemente, porque mais que isso ela sabe que
não conseguirá fazer.
Conhecera-lhe o corpo,
saliências e reentrâncias, cada espaço, porque em si a tinha gerado. Apenas o
corpo, que estava em si controlar. Você, pensa Lígia quase envergonhada, vinha
correndo de dentro do mar, banhada de luz, respingada de água e areia e então
eu a reconhecia. Como era bom aquele tempo em que eu a sabia uma parte de mim.
Há
mais de meia hora a claridade azulada se esvai lenta e resig-nadamente pelas cortinas
cerradas, abandonando o quarto. A cama, colcha repuxada, perdeu a aspereza das
formas exatas: ninho de nuvens, agora. O Cristo da parede, coração exposto, não
aparece mais na paisagem que até há pouco o sustentava. Lígia olha para o
Cristo e para a janela, olhar duro e reto, irritada com a impotência dos dois. Então olha para o
vulto impreciso de Estela sem saber mais nada, seu mundo vazio.
Nada, então, a solução de
tudo? Por mais que se desespere tentando resolver a questão, apenas uma fina
camada de suor no buço e as palmas das mãos frias e úmidas. Não está preparada
para as transformações nem as deseja.
Às vezes tem a impressão de
que Estela dorme, por isso torce bruscamente os dedos, temendo o impasse.
Com a mão trêmula e gasta de
vida, sacode de leve o ombro da filha. Seu pai, Estela, daqui a pouco em casa. E a filha a encara,
os olhos vermelhos ainda. E inchados. E eu, que faço de mim, desorientada?
Lígia volta a olhar para a janela, em fuga, agora, para não se machucar
naquelas duas brasas que a perscrutam. A janela é mancha azulada que nada diz.
Aguda e travosa, uma coisa
arranhando o interior de sua garganta - a
consciência da perda. E antiga. Não pode desvencilhar-se da idéia de que
abdicara de alguma coisa sagrada no deserto instante em que recebia nos braços
o corpo molhado de Estela. Que sim, sua resposta invariável, que Deus. Que
outra coisa poderia responder, se ela era tão pequena e sua cabeleira loira
empastada de água salgada nada revelava sobre o futuro?
No ar morno do quarto
protegido, convidou Lígia. Assuntos de alcova. Estela estava tensa, o semblante
destruído. Mas então, o que é isso? Não que ignorasse totalmente por que
caminhos perigosos andava a filha. Não ignorava. Mas havia sempre a esperança
de que não passasse tudo de boatos. Essa maldade que nos faz destruir com certo
gosto. Mesmo, entretanto, tendo já tido notícias, precisava ouvir da própria
boca, a boca de Estela, com a força de
seu hálito, para então acreditar. Quando ouviu sua voz pelo telefone, logo
depois do almoço, meu Deus do céu, uma voz assim, e achou que havia fundamento
nas histórias.
No ar morno do quarto
protegido, Lígia pensa horrorizada que o silêncio a vai estrangular. Então não
eram mentiras, dizia o olhar com que recebeu na sala, logo depois do almoço, a
filha desesperada. No ar morno do quarto protegido, ela convidou, porque dividia
sua casa por assuntos. Tenta com afinco encontrar a Estela que emergia das
ondas, mas só a encontra perquiridora refazendo as significações. Sem auréola de sol - tenebrosa. Bem mais
fácil enlaçar-lhe o corpo quando molhado, apesar do sal e do frio.
Conhecia-lhe, então, todas as curvas existentes e as que apenas se prometiam.
De repente, aproveitando-se
de um dos muitos momentos de silêncio que se estabelecem no quase impossível
diálogo, Lígia arrepende-se de ter trazido a filha para seu quarto. E é com
horror que pensa nisso, porque aquela é a filha que criou, tentando todos os
dias educá-la, fazê-la igual a si mesma. Tê-la agora deitada em sua cama, com a
cabeça abandonada em seu regaço, é uma espécie de conivência indesejada. Há
pecados contagiosos como doenças. Mesmo sem vê-lo, ela sabe que o coração
exposto do Cristo vela acima da cabeceira. De súbito lhe vem à mente a palavra
violação: seu significado perigoso. Se já estava há algum tempo aflita com a
falta de progressão da entrevista, agora está convencida de que não deveria
tê-la começado. Pelo menos ali, no quarto do casal.
O que de certa maneira
abranda a cumplicidade entre mãe e filha, ela descobre, são as sombras que
silenciosamente foram diluindo todas as formas nítidas. Não ver alguma coisa
pode significar sua anulação. E Lígia, então, volta a sentir-se calma e segura.
Mesmo assim, contudo, é com alguma relutância que seu dedo desenha no escuro o
rosto de Estela, numa carícia tão antiga
quanto dissimulada.
Estela retrucava, às vezes, o
coração cheio de suspeitas, mas como é que você sabe?, querendo descobrir as
razões que se escondiam nas respostas da mãe. Ora, porque sempre foi assim.
Cansada ou incrédula, sentava-se na areia e construía castelos de curta vida.
Mas eles eram reais e decifráveis. Às vezes espichava os beiços e enrugava a
testa, significando sua discordância. Era assim que costumava encarar os
adultos, seu modo de ser insolente, de os considerar sempre culpados.
Ao fecharem sem ruído a porta
do quarto, apesar da penumbra em que imergiam, por causa das cortinas, Lígia
percebeu que era ainda dia claro. Examinou a janela, sem muita atenção,
entretanto, pois sabia que a tarde vagava ainda entre sexta e noa. Antes que pudesse
proferir uma única palavra, Estela jogara-se na cama, de bruços, engasgada em
seu próprio choro. E assim ficara, por mais de meia hora. Entre soluços e suspiros,
ao final de muito tempo, contou indignada a decisão do marido. Irrevogável.
Ele, um advogado com seu vocabulário. Assim mesmo dissera: irrevogável. Afinal,
quais são os limites do amor?, fitando a mãe, a interrogação naquela mesma cara
com expressão de areia e mar. Por que há de ser o coração tão estreito que nele
caiba apenas um amor?
Horrorizada, Lígia fizera o sinal
da cruz. Que Deus, o mesmo que salgara o mar, perdoasse aquela menina pelo
nonsense do que dizia. E tentou afastar-se, mas era-lhe impossível sem que
empurrasse a cabeça da filha em
prantos. E apesar do horror, e do suor, e do olhar manso e puro
do Cristo de coração exposto, afagou com suavidade a cabeça jogada em seu colo.
Que Deus nos perdoe a todos nós, humildes pecadores.
Volta-lhe o sentimento da violação, cujo zumbido, aliás, não tinha
deixado de ouvir num espaço por baixo da consciência. E observa, então, como
naquele momento se arrependera de ter trazido a filha para seu quarto. Nunca se
pensara capaz de sentimento tão mesquinho.
E este arrependimento do arrependimento anterior, que é negação por fechar o
círculo, ele é que a impulsiona a curvar-se e, lábios tateantes, procurar a
face da filha. Difícil entender a vida, minha filha. Há muito renunciei a
qualquer entendimento. E no escuro do quarto, sente-se por momentos
enternecida. Estela, ao jogar-se em seus braços - encharcado, seu maiô azul
salpicado de estrelas - está entanguida de frio, a pele arrepiada. Ao enlaçá-la
pela cintura, aquela mesma sensação de que a está perdendo. Já não sei quem
foi, minha querida, não sei quem foi que salgou a água do mar. Mas onde foi
isso, quando? Lígia olha para o Cristo de coração exposto, olha para a janela,
como se fossem mais do que apenas duas direções, suas formas desfeitas na
escuridão, e lhe pudessem sugerir alguma resposta.
Lígia não sabe mais se a filha vela - debruçada sobre sua dor - ou dorme,
finalmente aliviada. Sacode-a com delicadeza e cheia de medo do que poderá
estar acordando.
- Estela, minha filha. Agora temos de levantar. Já ouço os passos de seu
pai.
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