sexta-feira, 19 de dezembro de 2014

UM CONTO PARA SEU FIM DE SEMANA

* Conto inédito.

Anoitecendo 
Mais de duas horas aqui sentados neste barranco de rio sem qualquer sinal de vida, qualquer mensagem, as boias ali à toa na superfície da água, nos encaramos desistentes. As promessas não se cumpriam, apesar de nossa paciente insistência. O sol, estilhaçado e frio, cai sobre o remanso de onde esperávamos alguma notícia. É um momento meio triste, pois o dia definha irreversível e com alguma lentidão: morrente.

Sabe o quê, a gente, pra não perder a viagem, ainda pode nadar um pouco. E as roupas começam a voar para cima dos arbustos. Mas eu não sei nadar muito bem, alega meu amigo para justificar sua relutância em se jogar na água. Mesmo assim, já está pelado, a pele branca arrepiando-se com a brisa que desce das copas escuras, então arroja seu corpo de pele branca na direção da água e levanta um turbilhão de pingos que aproveitam os restos do dia para brilhar no espaço antes de se misturar novamente ao sorvedouro. A água é quase sempre uma alegria do corpo: o prazer despudorado.


Soltei os braços puxando o rio para trás, com a velocidade de quem quer chegar: o fingimento dos músculos. A cabeça ora afundava ora emergia acima da correnteza, os pés em movimentos rápidos, um ritmo só. Atravessei o remanso e o sorvedouro, e de lá, do outro lado, aonde o mato vem molhar os pés, grito para meu amigo que não tente a mesma reta. O caminho mais longo pode ser o mais seguro. Volto na mesma velocidade pela parte mais funda do rio, atravesso a correnteza e subo a uma pedra escura em função de plataforma. Do alto, aonde cheguei em poucos segundos, solto um berro de vitória: guerreiro. Então me jogo novamente no rio.  
 

    Os primeiros movimentos do meu amigo, ainda hesitantes, mantêm a margem a duas, três braças de distância. Dali, de perto do barranco, também solta gritos alegres e agudos enquanto bate com as

mãos abertas na superfície do rio, orgulhando-se dos pingos que seus gestos criam, parecendo fogos de artifício. Seus cabelos, em pasta, lhe caem sobre a testa, escorrentes, e o brilho dos olhos, sóis de sombras, contrastam com o branco das duas fileiras de dentes fortes, canibais. A vida oferece prazeres que muitas vezes jazem escondidos à beira da simplicidade, disfarçados. Mas é preciso descobri-los para poder sugar a seiva que nos sustenta. Por isso a volúpia dos desafios: as vertigens.

A noite vem descendo pelas encostas dos morros mais próximos.

Nós dois nos encontramos em águas mais rasas, de pé com nossos corpos molhados, e brincamos ainda de respingar pedaços de rio um no outro, com gargalhadas de brilho idêntico ao da água com que nos divertimos.  E assim é que vai nascendo o entusiasmo e a coragem: nós dois nos sentimos vivos em cada gesto e em cada riso gorgolejado com que afastamos todas as preocupações.

Cansado de tanta brincadeira infantil, por fim, me jogo novamente de peito na água e com braçadas ágeis e fortes atravesso o sorvedouro, que tenta sugar tudo para seu estômago, fruindo até o fundo o poder de meus braços. Existe algo de exibicionismo em meus movimentos, causa da satisfação que me dá a demonstração deste meu poder.

A noite parece mais próxima e agora tenho a impressão de que ela sobe das pedras que apenas imagino cobrindo o leito do rio.

Já me apetece voltar à terra  e enxugar com vento meu corpo. E procuro a mancha clara de meu amigo, mas apenas vejo dois braços erguidos descrevendo a grande circunferência do sorvedouro, lutando por manter-se na superfície. Então percebo a noite que se deita sobre o rio e, com três braçadas que me arranco dos ombros, consigo segurar meu amigo pelos cabelos.

Disponho agora de somente um braço com que enfrentar o movimento das águas, mas não posso abrir a mão esquerda, onde está presa a mecha de cabelos. Vamos os dois sendo arrastados dentro do círculo do sorvedouro.
   
     Ao sentir-se ajudado, meu amigo usa os dois braços para se salvar usando minha força. Tolhidos  seus movimentos, não resistimos mais à fúria do rio. Consigo finalmente liberar o braço direito e faço a única coisa que se pode fazer nas circunstâncias: dou um murro na cabeça de meu amigo para desacordá-lo. Mas ele já está com os dentes cravados no meu braço esquerdo e me vejo forçado a um segundo murro.

Seus braços me soltam, flácidos, e, na boca fechada, ele carrega um pedaço de meu corpo. Não tenho tempo de pegá-lo novamente e mal vejo que meu amigo afunda, desaparecendo quase instantaneamente.  Já é noite. Noite sem lua. 

Consigo voltar ao barranco, mas alguma coisa de mim sumiu no abismo.

 

 

 

 
 
 
 
 
 
 

 

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