Viveu em Brasília de 1979 até 2007, quando se transferiu definitivamente para São Paulo. Trabalha na Caixa Econômica Federal desde 1982. Cagiano publica em diversos jornais e revistas do país e do exterior, dentre os quais Jornal do Brasil, Hoje em Dia, Jornal de Brasília, Correio Braziliense e revista Cult. Obteve o primeiro lugar no concurso Bolsa Brasília de Produção Literária 2001, com o livro de contos Dezembro indigesto. Organizou as coletâneas Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, Brasília, 2001), Poetas Mineiros em Brasília (Varanda Edições, Brasília, 2001) e Todas as Gerações - O Conto Brasiliense Contemporâneo (LGE Editora, Brasília, 2006).
(fonte: Wikipédia)
A Marca foi o conto escolhido pelo autor e que hoje publicamos.
A
marca
(Conto
de Ronaldo Cagiano)
Depois
fica a marca. Depois fica o medo.
E
depois fica a vida com seus dedos quebrados
tateando
um mapa na tentativa de esquecer.
Álvaro Alves de Faria
Lembrou-se de um sábado escuro e
malfazejo em que a vida tinha lhe preparado uma triste recepção.
Naquele
dia, havia recebido um telegrama: “Seu pai morreu de madrugada. Venha logo.
Enterro amanhã, às quatro horas”. Curta e grossa, a mensagem da mãe não tinha o
menor sinal de dor, como se cumprisse um dever social como outro qualquer. A
viuvez parecia um prêmio.
O
caminho entre a Capital e Santa Rita não passava de trezentos quilômetros, mas
a agonia o prolongava a um deserto intransponível e poeirento. O percurso
delineava uma paranóia: W parecia não ver terminada a película da vida que
rodava em sua cabeça. Seu rosto vagava e invadia o horizonte com olhar
perplexo.
A cada lembrança, era o susto na
descoberta do filho que poderia ter sido e não foi: a vida em si mesma
mostrando o lado improvável, o que deixou de ser e que agora era irrecuperável.
“É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã”. A música de Renato
Russo guilhotinava sua consciência. O trajeto multiplicava-se ao influxo de
migalhas de remorsos interiores.
A imensa sala do sobrado (estaria cheia de
gente velando o corpo do Seo Onofre?) não teria mais as tardes de crochê e
conversas em que a mãe falava sozinha e o pai, sempre ausente, com seu silêncio
e suas fugas psicológicas, fazia ouvidos moucos. As poucas lembranças do velho
levam-no à sapataria, onde via uma bíblia sempre fechada na prateleira dos
calçados reformados e o pai dando ordens e nenhum carinho. Só abria a boca para
reclamar de W e nunca um agrado ou um aperto de mão (quando muito, um sorriso
comercial); nunca um abraço a circular-lhe os ombros ou um beijo na face.
Sempre uma distância e um olhar difuso, em que o pai parecia gravitar em outro
mundo.
A
única companhia durante anos naquela infância insossa era a do papagaio do
verdureiro Eusébio, que fugia do quintal lindeiro para a laranjeira perto do
tanque dos fundos. Era lá que W conversava a perder horas com a pequena
criaturinha, ensaiando-lhe pequenas melodias que ele depois repetia em alto e
bom som. Esse papagaio parece uma
maritaca, tira isso daqui, menino, me deixa em paz.
A sua alegria estava fora de
casa, longe da mãe apagada, do pai omisso. De Corina, a empregada autoritária,
mesmo que de mau humor, ainda prestava-lhe alguma atenção. Da tia doente da
cabeça, que só tinha seu pai pra cuidar. Do irmão que não quis saber de nada e
vivia pelos cantos. Da mais velha que casou e foi viver em São Paulo com um
argentino que diziam ser filho de um nazista fugitivo e que veio após a guerra
para a América Latina.
O quintal da casa da tia Honorina,
no outro lado da cidade, que ia até a beira do rio, de onde contemplava as
canoas dos tiradores da areia, parecia dar-lhe lições de despedida. Lá ele
gostava de ficar, nas raras vezes em que a mãe ia visitar a irmã mais velha. Partir estava dentro dele. Coração partido,
corpo apartado, muitas vezes sentiu vontade de mergulhar no rio Pomba e deixar
que as águas o levassem leito abaixo: Aracaty, Vista Alegre, Santo Antônio de
Pádua, São Fidélis... o Atlântico. A imensidão o atraía e preferia perder-se no
mar continental a viver enclausurado e ocioso nos contrafortes de sua casa. Era
a oportunidade de fazer o que queria, como naquela manhã de 17 de dezembro de
1977, já adolescente e leitor compulsivo, quando sonhou ir ao Père Lachaise
para visitar o túmulo de Baudelaire, mas teve que se contentar em acompanhar o
amigo depressivo ao cemitério de Leopoldina, onde se sentaram na lápide de
Augusto dos Anjos e declamaram poemas. Paris parecia longe. Mas, se hoje
mergulhasse naquelas águas no fim do quintal sem as amoreiras de antigamente
(ah, nem o quintal era o mesmo: sem o chiqueiro, a casinha do Rex, os varais em que Zenaide , todas as
tardes pendurava as roupas para quarar, o canteiro de cebolinhas, onde urinava
com preguiça de ir até o banheiro, os pedaços de pneu velho em que a mãe
plantava rosas miúdas, o mofo e as heras cobrindo os muros...), ainda seria a
hora, poderia pelo menos duelar com seu
destino imposto e sair de braçadas contra ele.
O
cortejo já estava chegando à Ponte Velha, quando W desceu do ônibus perto do
Clube do Remo. A maleta com poucos pertences parecia vacilar em suas mãos
trêmulas, ele estacado ali, olhando como um estranho, e não sendo visto, o
séqüito passando silencioso, aquelas cabeças sob guarda-chuvas solenes
protegendo-se do sol da tarde tórrida. O som dos passos entreverados dos
acompanhantes parecia impingir-lhe uma melodia surda. A sensação de impotência
caminha com ele no breve e angustiante trajeto entre a calçada e o centro da
rua, onde o caixão avança em marcha fúnebre, conduzido por umas pessoas
desconhecidas. (W tinha ojeriza a papa-defuntos, necrológios, panegíricos,
encomendas religiosas, missas de réquiens, orações à beira do túmulo). Ainda
não tinha sido reconhecido. A mãe enlutada, enfeixada por uma roupa escura,
apertava o lenço contra o nariz, limpava os olhos que marejavam debaixo do véu.
Contemplava, de braços dados com a empregada de três décadas, o carrinho da
funerária com seus pneus que dançavam sobre os paralelepípedos. Não tinha visto
o filho. Decerto, em seus pensamentos, amargava a possível ausência. Enquanto
isso, cenas turbilhonavam em sua cabeça que procurava alcançar sobre as outras
um ponto de fuga. Lembrou-se das poucas vezes em que ele e o pai foram juntos à
matinê no Cine Machado assistir às incontáveis reprises de Peter Pan e
Mazaroppi, seu primeiros e inesquecíveis filmes. Depois, o carrinho de pipoca
numa das pontas da praça, a volta para a casa, descendo a rua da Estação até a
fábrica velha, depois subindo a rua do Senai até o fim e no meio do caminho o
jogar piço-piço com o Vasquinho da dona Euterpina. Não se recorda de nada mais
ameno, porque, fora isso, eram as ranhetices de dona Aurora, as cobranças de
seu pai, a proibição de brincar com o vizinho (filho da Leninha, a
desquitada). Cuidado, que a mãe dele
não é boa bisca, o que vão falar da gente? cansou de ouvir. Não, não
queria ficar se remoendo, mas, inevitavelmente, as lembranças vinham,
resistentes, apesar de tudo, como se algo tivesse detonado os arquivos secretos
de tantas coisas esmiuçando-se de forma desagradável num momento daqueles.
Quando o acompanhamento estava
subindo o morro da Industrial, W foi notado, entre frieza e distância.
Primeiro, a descrença, a palidez, a muda troca de olhares entre parentes e
circunstantes. Tristes e desérticas, as pessoas diziam palavras convencionais.
Depois, o abraço em soluços da mãe, sob as vistas ressabiadas dos mais
próximos. Não disseram nada, apenas os mútuos braços inermes que se envolviam,
no último adeus a quem chega ao seu momento, sem que nele despertassem outras
sensações, senão a óbvia tristeza da partida, da perda e nenhuma outra menor
comoção. Dever cristão – era isso o que sentiam mãe, filho, empregada, e o
irmão, sempre alienado e ainda sem esboçar uma mínima crispação na face.
Diante
da via estreita que divide a longa esplanada de sepulcros, um quadro de
geométricas solidões. Seus olhos abismam por aquela realidade que nos espera um
dia, além das frivolidades da alma, das lutas insondáveis do espírito. O choro
não vem, a angústia encalacrada, o movimento lento de sua cabeça contorna em
derredor da campa, onde dois coveiros entrelaçam as correntes para descer o
esquife, entre movimentos das mãos para expulsar as moscas e o cheiro de cravo
de defunto. Hora derradeira. De crepúsculo selvagem. De solidão e inércia da
carne morta e agora encubada numa gaveta fria e numérica. De perguntas não
respondidas. De nós não desatados. Do perdão que nunca foi construído. A vida
nada diferente dela mesma, pensou.
Alguém fuma um cigarro, enquanto
o caixão desce esbarrando nas laterais e pequenos tufos de terra vão sujando a
tampa, que não foi aberta para as últimas despedidas. Ao ver a fumaça
circunavegar sobre as cabeças paralisadas no último ato, ele imagina a vida se
evolar sem deixar vestígios. Aos poucos,
as pás de terra e cal vão se misturando às flores quase murchas atiradas na
cova. Lembra-se da única vez em que em o pai o abraçou na vida: quando o irmão
caçula foi enterrado naquela mesma sepultura, depois de ter sido esmagado pelo
caminhão de areia do Agenor, que adentrou o portão da obra enquanto ele, em
meio aos tapumes, vergalhões e restos de concreto, brincava de engenheiro
e construía uma cordilheira com
tampinhas de refrigerantes, quando ainda moravam na pracinha do Rosário, numa
casa cuja construção se interrompeu para sempre, solitário esqueleto na praça
difusa a lembrar um dia que ninguém esquece.
Até hoje a mancha de sangue no
cimento é uma marca que não se diluiu. Dói-lhe com uma angústia crescente,
redundante, a inscrever-lhe uma culpa irremediável. Foi ele quem mandou
Serginho ir brincar nos fundos, para não incomodar a mãe que preparava o almoço
para os peões.
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