Luiz Ruffato é um escritor brasileiro. Seu Romance Eles eram muitos cavalos, de 2001,
ganhou o Troféu APCA oferecido
pela Associação Paulista de Críticos de Arte e o Prêmio Machado de
Assis da Fundação Biblioteca Nacional.
Esse livro o tornou um escritor reconhecido no país. Em 2011 concluiu o projeto
Inferno Provisório, composto por cinco livros sobre o operariado
brasileiro, com a publicação do romance Domingos Sem Deus.
Nascido em Cataguases, Minas Gerais em 1961,
é filho de um pipoqueiro e de uma lavadeira de roupas. Formou-se em
tornearia-mecânica pelo Senai e trabalhou como operário
da indústria têxtil, pipoqueiro e atendente de armarinho durante a juventude1 . Graduou-se em Comunicação pela Universidade
Federal de Juiz de Fora e trabalhou em diversos jornais mineiros até
se mudar para São Paulo1990.
Na capital paulista trabalhou no Jornal da Tarde . Em 2003 abandonou
a carreira de jornalista para se tornar escritor em tempo integral.
Abaixo, o conto que nos enviou.
A voz
Para Eloésio
Paulo
A
rouquidão romântica de Naílson Pedreira se espraiava pelos campos de café e
laranja da região do Lago de Furnas, levada pelas ondas da Rádio Corinto FM. O
seu De coração a coração começava
logo depois de A voz do Brasil e se
estendia noite adentro, sem prazo para terminar. Àquela hora, quase sem
patrocínio, contava com escassos ouvintes, apenas os porteiros dos poucos
prédios residenciais, os seguranças do distrito industrial, os plantonistas da
Santa Casa, alguns bêbados desgarrados em botequins da periferia e os insones
que, dispensando a companhia da televisão, aguardavam ansiosos o efeito do tranquilizante.
Nem mesmo o diretor-proprietário da emissora, doutor Éder Valenti, dono de
metade da cidade, prefeito por vários mandatos, que lustrava com zelo seu nome inscrito
em prata de lei, se preocupava com aquela grade necessária, mas dispensável, da
programação.
E Naílson Pedreira
aproveitava-se, há pouco mais de um ano, desse estranho anonimato. Vindo de São
Paulo, empregara-se de imediato na vaga que Washington Lopes ocupava
provisoriamente, um turno indesejado, porque a parte substancial do ordenado dos
locutores provinha das propagandas que coletavam no comércio local – e ninguém
queria anunciar naquela hora morta. Naílson, no entanto, aceitou o encargo sem
reclamar, apossou-se do microfone e, junto com Julinho “Prancheta”, que cuidava
do som, atendia o telefone, fazia o café e varria o estúdio ao final do
expediente, divertia-se na solidão da noite interiorana. Criou para isso um espaço
onde dava conselhos inúteis, lia cartas imaginárias, inventava predições
astrológicas, divagava sobre banalidades e tocava as músicas de sua preferência.
Toda noite, após chegar
cansado da faculdade, eu me martirizava, enquanto tomava banho, colocava o
pijama, desarrumava a cama, acendia o último cigarro, pensando no quanto me
distanciara dos planos ambiciosos da juventude. Eu, que imaginara fama e
sucesso, me contentava agora em repetir medíocres lições de língua portuguesa
que não interessavam a nenhum aluno, aguardando como um cão abobalhado a ração,
suficiente apenas para pagar as contas do mês, as dívidas de cerveja acumulando
no bar da Praça da Matriz, a barriga crescendo, os cabelos caindo, os sonhos
apodrecendo.
Certa quarta-feira, o
pior dia da semana, passava da meia-noite, entrei meio bêbado no Chevette velho
e cheirando a morrinha quando, ao girar a chave de ignição, meu punho, escapulindo,
pressionou o botão do rádio, cujo dial há muito emperrara sintonizado na emissora
da cidade. Então, a voz rouca de Naílson Pedreira explodiu dentro do carro,
evocando tempos idos, infâncias inalcançáveis, memórias perdidas. Ao invés de me
conduzir para a casa silenciosa e melancólica onde morava, acelerei rumo ao pequeno
prédio de pintura desbotada no final da Avenida Presidente Vargas, que, tornando
mais à frente rodovia, nos levava para longe bem longe, Belo Horizonte, Rio de
Janeiro, São Paulo.
Estacionei no meio-fio,
empurrei a porta que dava para a rua, apenas encostada, e subi devagar a escada
escura. Percorri um comprido corredor até me deparar com uma sala bastante bagunçada,
onde Julinho, sentado numa cadeira giratória, controlava o equipamento de som, a
estante de discos, o telefone e a garrafa térmica. Por trás do vidro, curioso, Naílson
me viu e avisou o assistente, que virando-se bruscamente quase despencou no
chão. Descalço, a camisa vermelha de manga comprida deslizando por sobre a
calça jeans apertada, Nailson deixou o aquário. Sem graça, disse meu nome,
expliquei que nos conhecíamos de vista, fôramos apresentados em alguma das
festas que o doutor Valenti promovia em seu rancho à beira da represa, e ele
estendeu-me a mão frágil, estranhamente fria, mas cálida, como se aconchegasse pássaros
ainda sem penas. A sensação de embriaguez de súbito cessara e lamentei estar
ali, naquele estúdio abafado, frente a um sujeito de cabelos pretos
desgrenhados, roupa amarfanhada de muitas tardes, dentes amarelados, sem saber o
que falar.
Naílson me pediu um
cigarro e encaminhou-se ao quintal. Descemos alguns degraus e nos instalamos no
breu que o perfume doce das damas-da-noite asfixiava. Ao longe, avistávamos as lâmpadas
esmaecidas da cidade mergulhada na cerração. Os faróis dos carros que passavam
na estrada iluminavam intermitentes as árvores trêmulas de frio. As águas do
riacho que devia haver ali por perto escorriam preguiçosas, escoltadas por uma
anarquia de sapos e grilos. Então, a voz rouca de Naílson insinuou displicente
por trás da brasa, Afinal estou morrendo. Assustado, engasguei com a fumaça,
Quê?! Ele continuou, calmo e distante, Tenho cagado sangue... Já não consigo
comer nada... Meu estômago não aceita... Nervoso, joguei a guimba no chão e
esmaguei com a ponta do tênis, Não deve ser nada sério, comentei, patético. Não
durmo mais, a voz prosseguiu, alheada, Minha cabeça não para de pensar...
Parece uma cachoeira... O rosto adolescente do Julinho entreabriu uma fresta na
porta, estendendo um facho de luz sobre o corpo arruinado de Naílson, No ar, em
trinta segundos! Então, perguntei, Você não vai lutar contra isso? E ele,
escalando rápido a escada, Não, estou lutando a favor.
Na semana seguinte,
viajei de férias, cismando, por todo o mês de julho esfuziante de estrelas, sobre
o brejo em que me afundava mais e mais. Voltei desanimado em agosto, certo de
que algo deveria ser feito com urgência, embora não atinasse com o quê.
Passaram-se ainda uns quarenta dias, até que uma madrugada, em torno de uma
mesa no bar da Praça da Matriz, alguém comentou sobre o Naílson Pedreira, um fulano
esquisito, conhece não?, que dorme ao relento no quintal da rádio onde trabalha
e toma banho no posto de gasolina em frente, porque ninguém mais quer fiar para
ele, O cara injeta nas veias todo o mísero salário de locutor. Imediatamente me
levantei, corri para casa, peguei o telefone e liguei para o estúdio. Julinho
atendeu e perguntei pelo Naílson. Voltou para São Paulo, não soube?, contou, Faz
uma semana já! Abandonou o emprego em pleno ar, falou assim: Não aguento mais, amigos
ouvintes, e declamou uma poesia cheia de palavrões que não acabava mais... Ele
deixou algum endereço?, indaguei, ansioso. Não, disse que se alguém quisesse
encontrar ele, que procurasse no cemitério... E riu, Uma figura aquele Naílson,
não é não? É, uma figura, respondi, desligando.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças