sábado, 6 de fevereiro de 2016

ESPIANDO POR DENTRO

Esta coluna reúne análises de textos literários preparadas por Menalton Braff e publicadas originalmente no site do escritor.


Livro Analisado: O Crime do Padre Amaro
Preparação: Prof. Menalton Braff

A Obra

Segundo Benjamin Abdala Junior, da Universidade de São Paulo, "O Crime do Padre Amaro" é a primeira produção de um vasto inquérito sobre os problemas da sociedade portuguesa, que o escritor pretendia realizar. Seu objetivo era criticar para corrigir. Foi também o mais esquemático de seus romances, o mais enquadrado mecanicamente nas diretrizes teóricoideológicas do Realismo-Naturalismo europeu."

O professor Ernesto Guerra da Cal, no Dicionário de Literatura organizado pelo professor Jacinto do Prado Coelho, discorrendo sobre "O crime do padre Amaro", assim se manifesta: "Romance de tese dirigido contra o celibato do clero, constituía, na frase de Ramalho Ortigão, o primeiro exemplo em
Portugal de 'uma obra de arte sugerida pela consideração dum problema social'." E adiante o mesmo autor continua: "O poder da obra reside no movimento subjectivo e objectivo das personagens, na lógica dos incidentes, na viva descrição do ambiente, no conhecimento profundo dos recursos do diálogo."

Personagens

- Amaro Vieira - o Padre Amaro, filho de um criado de certo marquês, depois de ter perdido os pais, é encaminhado (sem consulta e sem vocação) para a vida eclesiástica. Jovem, saudável, não resiste aos apelos do corpo.

- Amélia - filha da senhora Joaneira, viúva que aluga um quarto ao padre, é bela e cobiçada por muitos. Noiva, apaixona-se pelo padre. Sua educação pela mãe, beata como todas suas amigas, uma educação de falsa religiosidade propicia a crença em Amaro - um deus libidinoso e insaciável.

- Senhora Joaneira - viúva de alguns recursos, dona da casa da Rua da Misericórdia, onde Amaro se hospeda. Beata e amante de um cônego da cidade. Em sua casa reúne-se diariamente, à noite, um bando de padres e de beatas para comer, jogar, fofocar.

- Cônego Dias - antigo mestre de Amaro, no seminário, gordo e ocioso, desfruta dos prazeres da vida (mesa e cama, principalmente). É o amante da Senhora Joaneira.

- Libaninho - beato muito ativo e afeminado.

- As irmãs Gansosos - duas proprietárias carolas e fofoqueiras, que visitam a Rua da Misericórida.

- Dona Josefa Dias - presença constante na Rua da Misericórdia. É irmã do Cônego Dias, uma das personagens centrais do romance.

- Dona Maria da Assunção - rica proprietária, beatíssima, frequentadora do mesmo ambiente.

- João Eduardo - jovem pobre, trabalhador (escrevente de cartório), noivo de Amélia. Acusado de heresia por causa de um artigo de jornal, é abandonado pela noiva, que só pensa em Amaro.

- Tio Esguelhas e sua filha Totó - sineiro da igreja onde Amaro é o pároco.
Em sua casa vão dar-se os encontros amorosos entre o padre e Amélia. A filha entrevada, não sai da cama, é o pretexto utilizado: Amélia vai lá para ensinar leitura e catecismo à menina. Odeia Amélia e percebe o que ocorre no quarto de seu pai, mas nada pode fazer.

- Abade Ferrão - velho abade, verdadeiro sábio, representa a verdadeira religião, oposição ao ambiente degenerado da Rua da Misericórdia, mora numa vila afastada da cidade. Sob sua orientação Amélia, pouco antes do parto e da morte, repudia sua vida de amante de padre.

- Outros - personagens comuns de uma cidade: farmacêutico, prefeito, médico, advogado, redator de um jornal, etc.

- Dionísia - mulher de maus costumes, já envelhecida, é quem mais ajuda o padre Amaro, quando ele precisa de Amélia ou quando esta descobre-se grávida.

- Carlota - ama de aluguel, tecedeira de anjos, a quem Amaro entrega seu filho recém-nascido.

Espaço

As principais ações dão-se na pequena cidade de Leiria, onde Eça de Queiroz fora secretário de concelho por seis meses, ocasião em que observa a vida local e faz anotações para seu romance.

Na cidade, o sobrado da Rua da Misericórdia, propriedade da Senhora Joaneira, acolhe diariamente o bando que forma as personagens principais.

A casa do Tio Esguelhas, sineiro da matriz, é o local dos encontros amorosos. Grande parte das ações se dá neste local.

A chácara do Cônego Dias, na Ricoça, onde os últimos lances e também os mais dramáticos da história vão ocorrer.

Tempo

A história acontece contemporaneamente, ou seja, por volta de 1875, quando o romance foi publicado pela primeira vez na Revista Ocidental.

O tempo narrativo aproxima-se de um ano. Chegada de Amaro a Leiria, convívio com clérigos e beatas no sobrada da Rua da Misericórdia, transação amorosa com Amélia, engravidamento desta e transferência para outra cidade.

Efabulação

Filho de um criado de certo marquês, Amaro perde os pais e é encaminhado pela marquesa para a vida eclesiástica, mesmo não tendo vocação. Enviado para uma aldeia nas montanhas, logo depois de consagrado, detesta o lugar e pede a interferência de um conde, filho de sua protetora, para ser designado para um lugar melhor. Consegue finalmente ser transferido para Leiria. A carreira religiosa representa certa ascensão social, pois Amaro agora vai conviver com proprietários que, mesmo não sendo nobres, podem viver na ociosidade. Em Leiria vai morar primeiramente na Rua da Misericórdia, sobrado da Senhora Joaneira.

Desde os tempos de seminário tivera forte impulso para o sexo, despindo muitas vezes, em imaginação, a Virgem Maria. Tais apelos agora voltam-se para a moça da casa, Amélia, que também se apaixonara por ele. O namoro transcorre em um ambiente cálido, nos serões do sobrado onde moram, entre outros padres e muitas beatas, mas sem que ninguém perceba. São olhares, sorrisos, roçar de mãos e de joelhos. Há avanços e recuos, há dilemas a serem superados. Finalmente, plenamente justificados perante Deus, autor de todas as coisas, inclusive da libido, passam a encontrar-se na casa do Tio Esguelhas, sineiro da matriz, cuja residência fica no mesmo pátio da igreja. Amaro justifica-se com a descoberta dos amores de outros padres, principalmente do Cônego Dias, que tem a mãe de Amélia como amante. Amélia engravida e, para evitar o escândalo, é mandada para a Ricoça, onde deveria tomar conta de Dona Josefa Dias, irmã do Cônego, e que se encontra muito doente. Lá conhece o Abade Ferrão, homem virtuoso e sábio. Percebe a vida viciosa que vinha levando e passa a rejeitar Amaro, que tem acessos violentos de desejo alternados com acessos de ódio. Nasce finalmente o fruto do amor e Amaro o entrega a Carlota, uma tecedeira de anjos. Poucas horas depois do parto, Amélia, em crise de consciência, acaba morrendo. Seu filho tem o mesmo destino nas mãos de Carlota. Amaro licenciara-se, e não volta para Leiria. Tempos mais tarde, em uma rua de Lisboa, encontra seu antigo mestre, o Cônego Dias e entre risadas relembram os dramas passados em Leiria. Ao verem duas belas moças passarem, o Cônego sugere que daquelas é que serviriam para confessionário de Amaro. Este, entretanto, afirma cinicamente que não, agora só confessa mulheres casadas.

Temas

Celibato clerical - Tema central, amplamente desenvolvido, a exemplo de outros escritores, como Alexandre Herculano em seu Eurico, o Presbítero.

O tema aparece ora no discurso do narrador ora no discurso da personagem Amaro.

"E, espantado quase daquelas delicadezas de sensibilidade que descobria subitamente em si, pôs-se a pensar com saudade - que se fosse um homem livre seria um marido tão bom! Amorável, delicado, dengueiro, sempre de joelhos, todo de adorações! Como amaria o seu filho, muito pequerruchinho, a puxar-lhe as barbas! À idéia daquelas felicidades inacessíveis, os olhos arrasaram-se-lhe de lágrimas. Amaldiçoou, num desespero, 'a pega da marquesa que o fizera padre', e o bispo que o confirmara!

- Perderam-me! Perderam-me! dizia, um pouco desvairado.

Observe-se que o parágrafo do narrador cria força e dramaticidade por estar em discurso indireto livre. Há muitos outros exemplos semelhantes a esse.

Anticlericalismo - Em geral, os adjetivos com que qualifica os padres são adjetivos de conotação negativa. "O pároco era um homem sangüíneo e nutrido, que passava entre o clero diocesano pelo comilão dos comilões."

O comportamento cínico de certos padres, seu corporativismo no acobertamento de muitos pecados, apenas como exemplos, denunciam a posição anticlerical, que foi comum aos escritores do Realismo português.

Manipulação

Usando o inferno como ameaça e o céu como prêmio, mas de cujas chaves são detentores, os padres manipulam as almas simples das pequenas cidades interioranas de Portugal. Mesmo em assuntos políticos são respeitados e jogam o peso de seu prestígio. "...em lugar de lhe erguer diante dos olhos o sinistro cenário das chamas do Inferno, mostrara-lhe um vasto Céu misericordioso com as portas largamente abertas, e os caminhos multiplicados que lá conduzem, tão fáceis e tão doces de trilhar que só a obstinação dos rebeldes se recusa a tentá-los."

Características

O Crime do Padre Amaro é o romance que mais se aproxima das teses defendidas por Eça de Queirós, desde que se tornou um dos adeptos do Realismo-Naturalismo. Observação da realidade, transcrição dos fatos observados, justificativa dos comportamentos, detalhismo quase científico. "Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia.", como disse o autor. Sondando os homens e a sociedade, desvendou "o sorriso gracioso e o dente cariado." Critica com graça, com chiste, com muita ironia, uma sociedade que considera cruel e injusta. Atende ao "castigat ridendo mores" - critica para corrigir. Um dos maiores estilistas da língua, sua linguagem é clara, precisa e musical, tendo dominado como poucos as técnicas do diálogo. As peças do jogo se encaixam com perfeição, não havendo incoerência alguma, nem aquele detalhe desnecessário que tantas vezes estraga uma narrativa. Emprega a técnica do prenúncio, indicando desde o início o que irá acontecer, e o flash back explicativo para tornar sua narrativa coesa, atendendo à necessidade do real.

Autor: Eça de Queirós (José Maria Eça de Queirós)

Nasceu em Póvoa de Varzim em 1845 e morreu em Paris em 1900.
Filho bastardo, situação depois regularizada, viveu até a adolescência afastado dos pais.
Fez o curso de Direito em Coimbra, onde tornou-se amigo dos estudantes que lideravam a Questão Coimbrã (1865). Não participou, todavia, do movimento.

Já em Lisboa, formado, participou do desdobramento da Questão, proferindo uma das palestras das Conferências Democráticas do Casino de Lisboa (1871).

Pouco praticou das leis para as quais se havia formado. Logo abraçou o jornalismo. Nesta qualidade assiste à inauguração do Canal de Suez.

Quando regressou decidiu-se pela diplomacia. Como condição para a careira, teve de passar seis meses em Leiria, como administrador do Concelho. Serviu em Cuba, Inglaterra e finalmente em Paris.

De sua primeira fase literária, ficaram as Prosas Bárbaras e o Mistério da Estrada de Sintra.
Da segunda fase, a fase realista, são: O Crime do Padre Amaro, romance com que inaugurou o Realismo em prosa, em 1875, em Portugal.

Seguem-lhe O Primo Basílio, Os Maias, O Mandarim, A Relíquia e Contos.

Na terceira fase, o autor abandona os pressupostos realistas e as idéias de progresso e modernidade. São dessa última fase A Ilustre Casa de Ramires e A Cidade e as Serras.


Caracteriza-se pela habilidade efabulativa, certo tom irônico, satírico, análises psicológicas profundas e detalhadas. Foi muitas vezes acusado de estrangeirista, pelo vezo de empregar palavras estrangeiras, principalmente da língua francesa, costume que lhe veio do próprio modo de vida como diplomata. A denúncia social não lhe é estranha.

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