sexta-feira, 24 de junho de 2016

CONTOS CORRENTES


RINHA DE GENTE
(Marcelo Mirisola - Para meu amigo Paulinho Faria)
                                                                                Carlito não sabe o que fazer com seu diploma da faculdade de letras, é ator e professor de boxe e artes marciais, sua especialidade é Jiu-Jitsu. Um cara calmo, sorridente e discretamente desengonçado. Usa os músculos para disfarçar a alma de passarinho, às vezes se insurge contra sua dupla natureza e visivelmente não cabe em si, nem como ave nem como lutador. Ou seja: o maior de seus predicados é a honestidade. Também o pior dos defeitos. A timidez, consequência previsível dessa união entre força e delicadeza, é seu habitat natural. Como se fosse possível viver nesses dois mundos e administrá-
los sem conflitos. Sabemos que não é. Ele também sabe. E, às vezes, finge que é apenas um ator que ganha a vida numa academia de vale-tudo.
No começo da tarde, às terças, quintas e domingos, depois das aulas de boxe, corre pro Shopping Higienópolis – onde almoça e faz bico de segurança até às nove da noite. Do shopping, voa pras aulas no Célia Helena. Carlito atuou em duas peças de minha autoria, faz tempo que nos conhecemos. Seu melhor desempenho foi quando incorporou Pepê, um Down que ganhava uns trocos capinando terrenos de praia e eventualmente boqueteando surfistas e donas de casa.
Vez por outra nos encontramos na Praça Roosevelt.
Anteontem, ele estava mais esquisito do que de costume. Pediu sigilo, me fez prometer que nossa conversa morreria ali mesmo. Eu até fingi que me ofendi, relembrei nossa velha amizade e disse a ele que podia confiar em mim, como se fôssemos plateia ou personagens das minhas peças. Era tudo o que ele queria, de bobo não tem nada. Nem eu.
Ao confessionário:
—Desembucha.
—Os playboys da academia.
—Como é que você aguenta?
—Eles que me pagam o curso de teatro. Aluguel, os complementos.
— Caraio!
— Que foi?
— Eu sei que tu não é bicha…. mas é isso o que estou pensando?
Cometi uma imprudência. Errei nos jabs. Corria o risco de levar uma gravata. Ou uma voadora, sabe-se lá. Podia ter falado que compreendia o fato de que fazer programas com os playboys da academia não empenhava– num primeiro momento, e necessariamente não – sua macheza e que o que realmente importava era o teatro. Tentei consertar meu erro e sapequei panos quentes:
— Carlito, veja bem… num primeiro momento e necessariamente… o fato de você…
— Nada disso, seu maluco!
— Não?
— Claro que não. Pior.
O que podia ser pior do que comer cu de playboy mediante paga?
— Cê tava falando da academia… dos meninos.
— Meninos? Cambada de playboys filhos da puta!
— Que foi, Carlito? Cazzo! Desembucha!
— Você é meu irmão e não vai contar isso pra ninguém. Morre aqui.
O que podia ser pior do que dar o cu pra playboy mediante paga?
— Confia em mim. Diz.
— Os pleibas da academia… nos últimos finais de semana do mês… eles compraram uma chácara em Cotia. Perto do Buraco do Rato, uma favela encostada no loteamento vizinho, quase Itapevi.
Pensei: tanto lugar pra ir. Miami, Alphaville, Hípica Paulista, a represa de Avaré, Indaiatuba Golf Club.
— Pô, Carlito! Os caras trocaram o Clube Med por Itapevi?  O Shopping pela Casa do Saber? Que merda que tá acontecendo com esses milionários?
— Nada disso. Uma chácara abandonada. O que interessa aos filhos da puta é a piscina que tem lá.
— Hidroterapia?
— O que interessa é a piscina vazia, tá ligado?  Vale-tudo pra valer, vale tudo mesmo. Entendeu?
— Vale-tudo?
— Os pleibas ficam em volta da piscina. Um monte deles. E o Agepê, que é o segurança do shopping e que é morador do Buraco do Rato, é quem traz os meninos pras rinhas. Corre drogas, altos interesses, reputações. Tá ligado?
— Putaqueopariu. Reputações?
— Sério.
— Ok, desculpa. Tava zoando.
— Exatamente o que eles fazem com a molecada da favela. Eles zoam além do limite. Os garotos se porradeiam até não aguentar mais.
Aí Carlito me explicou que não eram só os playboys. Tinha pagodeiros na jogada e apresentadores de televisão, vips e viados de renome nacional e internacional, socialites que atiravam ovos nos moleques, e que a regra era um infeliz socar o outro até a piscina ficar vermelha de sangue. O moleque só saía de lá desacordado.
— Qual é a desses moleques ?
— O endereço. Eles moram lá perto. Pra ser “artista”, basta o CEP, se o cara mora num “jardim qualquer coisa” já é meio caminho andado. O Buraco do Rato também é conhecido como Jardim Sulacap 2. E mais cinquenta reais. É o que eles começam ganhando.
— Só?
— A primeira luta é cinquenta. Tem um marrudo lá, o tal de Garnizé, que não entra por menos de quinhentão. O cara é bom. E tem o Zamorano, um playboy da academia, que também é metido com cinema… ele é que tá dando suporte pros moleques. Pro Garnizé e pra uma dúzia de garotos do Buraco do Rato. Cuida como se fossem os animaizinhos dele, dá comida, roupa, tênis. Tudo filmado.
— Cinema, é?
— Parece que sim, eles tão filmando. Tem várias câmeras na piscina. Vai rolar um documentário, bilíngue.
—Do boi se aproveita até o grito.
Da miséria – como se Carlito me falasse – também se aproveitava tudo e algo mais.
— Os filhos da puta zoam os moleques e ainda tiram uma de artista. Manja Santiago, o documentário?
— Aquele do mordomo?
— Isso! O mordomo que ensinou o beabá sentimental pros filhos dos banqueiros. Que os educou no colo.
—  …e depois enlouqueceu de tanto tesão e submissão. Quem não sabe? O melhor documentário brasileiro dos últimos cinquenta anos.
— Dizem.
— É o que dizem.
— Tá rolando a mesma coisa. Só que agora são dezenas de Santiagos enfurecidos.
— Quanto mais submissos mais enfurecidos.
— Uns merdas. Artistas na piscina de sangue dos playboys. Tem um coitado lá que eles apelidaram de Leãozinho de Cannes. Vai rolar uma porradaria entre ele o Ursinho de Berlim. Tudo em P&B.
— Os caras não se contentam apenas em serem escrotos. São líricos também. Em Preto e Branco! Putaqueopariu!
— Ouvi o Zamorano dizer pro sócio dele, um tal de MV Joe, que os gringos de Veneza vão pirar com sangue em preto e branco na piscina vazia. Que o Lars Von Trier já era.
— Quem diria! Eu que pensei que os mauricinhos iriam se satisfazer em copiar Antonioni, mas isso foi na época das procissões e romarias de isopor pra boi dormir. Do Brasil profundo, lembra?
— A grande dama do teatro interpretando… a grande dama do cinema:“Thanks, Berlin”. Ô se lembro!
— Depois, eles deram uma enlouquecidinha na route de 66 e agora…
— Pois é, meu irmão…
— Acharam o nicho do zoológico, da selvageria lírica. Ou seja: rodaram, rodaram e continuam no mesmo lugar: no Brasil. Mais profundo do que nunca. Atolado de merda desde o expresso 2222, passando pela central do Brasil até chegar  na estação Apocalipse-Itapevi now. Ontem, hoje e desde sempre: servindo bem para se foder sempre.
—- E tem o lance das coleiras, tá ligado?
— ?
— Quem leva os galinhos pra piscina é o dono.  O insight foi do Zamorano.
— Insight?
— Da natureza dos Pitboys líricos, eles têm insights. Zamorano chegou com o Garnizé encoleirado. Uma coleira de ouro. Aí virou moda. Depois disso, os outros playboys e as socialites apareceram com arreios de ouro, cangas cravejadas de brilhantes, o diabo. Voce não faz ideia do que é aquilo. Deu até óbito.
— Óbito?
— Sim. O frango do Orelha-boy entrou em convulsão, de tanta porrada que levou, vomitava pelo nariz, morreu afogado no próprio sangue. Nessa hora, quando o infeliz deu a última estrebuchada, Zamorano entrou na piscina e tocou uma punheta. Playboyzada foi à loucura.
— Lírico.
—- Gozou em cima do cadáver – rolava um medley do Seu Jorge.
—Leni Riefenstahl não faria melhor. Isso é que é estética. Um artista, esse Zamorano. O Monet do Fiberglass. Eu ia te perguntar um treco. Mas depois disso… deixa pra lá.
— O que é? Diz aí.
—Não tem um filhodeumaputa de um playboy pra separar os moleques?
— Tá me tirando? Cê tá falando num… juiz? O juiz é o osso quebrado, é o sangue que espirrra do corpo dos galinho, é o cansaço mais de bater do que de levar porrada.  Só acaba quando o cara cansa de socar. Perde quem for zoado primeiro. E quando o menino do Orelha entrou em óbito, o prêmio triplicou. E sabe quem fez questão de pagar do próprio bolso?
— Imagino.
— O filhodaputa do Zamorano entrou na piscina, ergueu o frango morto pelo cangote e criou– como ele disse –  jurisprudência. A partir daquele dia, óbito começou a pagar terno. Virou regra. Morreu, vale três vezes mais.
— E o cadáver? E aí, o que eles fizeram com o corpo?
— Aí que tá rolando muita grana. Os traficantes do Buraco do Rato têm uma equipe de galinhos de briga particular. Os PMs também apostam alto, os vereadores da região, Vip que chega de helicóptero e as autoridades civis e eclesiásticas. Pastores, bispos e bispas. Os Pitboys de praxe. Todo mundo comprando e vendendo. Eles dão sumiço no corpo, e o que vale é a lei do silêncio. Queimaram o garoto.
— E os Pitboys tão fazendo um documentário.
—Tudo filmado. Um monte de câmera na piscina. Tudo na base da gentileza com chapéu alheio. É igual o desfile de moda da Marta. Lei Rouanet. Incentivo fiscal. Arte. Luxo no lixo. Tudo dentro dos conformes. Tudo certinho.
— Me leva lá?
— Você? Tá me zoando?
— Qual o problema?
— Sem chance.
— A gente faz uma sociedade, Carlito. Vamos comprar um frango diretamente no Buraco do Rato. Voce treina o garoto, eu dou feijão e arroz, granola e morfina, o que for preciso. Isso vai render uma puta matéria.
— Não é exatamente no Buraco do Rato que se faz negócio. É lá na chácara mesmo. Os garotos ficam meio que em oferta.
— Esquema feira agropecuária? Expostos em baias, jaulas. Isso?
— Não é bem jaula. Tipo uma pista de skate. Eles curtem. Tiram uma onda de ator, celebridade.
— Caraio! Melhor… quer dizer… pior do que eu pensava.
— Os moleques ficam lá curtindo um hip hop, andando de skate, se pegando. Uma espécie de padock, antessala. Aí os interessados escolhem esse ou aquele outro infeliz, e o Zamorano filma tudo e sela a transação.
— Beleza! Vamos lá, Carlito. Eu e você: dois playboys. Compramos um mano-galo street dance. Você treina. O Zamorano filma,a cocaína tá garantida pelo dr. Rouanet, eu escrevo a matéria pra Cult… e voilà!
— Não viaja.
— Qual o problema? Vai render uma baita reportagem, fazemos a denúncia, e eu, além de escrever bem pra caraio e dar pinta de engajado, ainda ganho uns prêmios de direitos humanos, arrumo emprego numa ONG e, se bobear, acabo virando tese acadêmica. A ideia não é manipular? Quanto custa um garoto?
— Não é nem pelo preço. Os playboys têm um sistema de comodato. Eles revezam e cambiam as cangas pelas coleiras… e lavam dinheiro junto com o sangue da piscina. Mas dinheiro, dinheiro mesmo, não rola. Pra não ter que declarar, não dar pinta. Sofisticação. Acha que é brincadeira? Tá pensando o quê?
— Tô pensando nos juros que eu pago pro Itaú.
— A chácara tem uma moeda própria. Isso faz parte do projeto deles que foi aprovado na Funarte e na Petrobrás, renúncia fiscal pro bem da cultura brasileira. Uma espécie de estaleca que eles trocam por drogas, pitgirls, travestis e prostitutas.
— Estaleca… tipo Big Brother, Bial?
— All right!
— Isso que eu chamo de tortuta com requintes de crueldade.
— Tudo saiu da cabeça do Zamorano. O prazer do Zamorano é o prazer dos outros pitboys e respectivas pitgirls e acompanhantes. O puto estufa o peito e diz “meu plantel”, “meus meninos”… mas o que ele curte mesmo é chamar os pobres coitados de “atores”. A maior sacanagem é que os moleques acreditam que são artistas e que têm talento. Que vão trabalhar na Globo. E se matam, literalmente se matam, pra que isso aconteça. A piscina cheia de sangue. Uma rinha de gente.
— E os Pitboys e a fina flor da sociedade se divertem, por supuesto.
— Por supuesto.
— Quando é que vai rolar a próxima rinha?
— Esquece.
— Pô, Carlito. Eu não te entendo. Você me conta essa puta história, me deixa com água na boca e agora vai regular? Qual é?
— O Problema é que eles confiam em mim. Zamorano virou faixa preta na minha mão. Eu acabei embarcando nessa roubada a contragosto. Tinha que contar pra você ou ia ficar maluco. Mas agora é tarde demais. Dancei. Não sei bem porque eles me escolheram.
— Não sabe? Até parece… Isso é tesão. Zamorano tem tesão em você. Pô, aproveita esse amor e me leva lá, caceta!
— Esquece, não vai rolar. Cê tá viajando.
—- Também sou playboy!
Nunca vi Carlito rir tanto. Quase se engasga. Tinha até uma ternura desesperada em sua risada que ecoou pelo palco do teatro vazio, como se a alma de passarinho dele prevalecesse e me aconselhasse:
— O problema é que você não tem pinta pra ser playboy.
— Mas eu sou artista!
— Você? Artista? Você não tem condicionamento físico pra ser playboy, muito menos pra ser artista. Se liga! Vai queimar meu filme, não vai rolar.
— Eu mudo pro Vidigal.
— Esquece.
— Meto uns dreadlocks, faço umas tatuagens. Dou o cu pra disfarçar. Faço um intensivo com o Dinho Ouro Preto, cara.Tá ligado?
— Negativo, seu xarope. Mas eu tenho uma sugestão. Vai ser melhor pra nós dois.
— Nem vem.
— Escuta. É sério. Por que você não vai pro Paraguai? Lá não paga IPVA, não tem Funarte, nem lei Rouanet, nem IPTU.  Só andar certinho e ser feliz.
Caralho, esse argumento “só andar certinho e ser feliz” me atingiu no queixo. Diante de tamanha clarividência e sensatez, avaliei bem a proposta do Carlito e fiz umas contas. Uma cidadania paraguaia custa 500 dólares e, de brinde, o caboclo leva uma índia guarani com controle remoto e mais dois indiozinhos pra carregar suas muambas pra cima e pra baixo (se ele andar certinho).
Ah, Ciudad del Este, somente nesse lugar abençoado pela tríplice fronteira, eu poderia me tornar um artista genuinamente falsificado. Como diriam os místicos, no mais legítimo portunhol: fueda-se.
Bem, eu começaria com uma panorâmica descolorida, Amaral Neto sobrevoando Itaipu nos anos setenta. Depois, pensei num travelling e sombras espichadas, quinas ameaçadoras. No lugar do som do helicóptero, o barulho de uma esmiralhadeira da Black & Decker (que está na moda e ao redor) misturado com uma guarânia antiga que iria tragar o tempo e o espaço, quanto mais espichadas as sombras e mais ameaçadoras as quinas, muito mais chato e muito melhor o filme. Corta pra queda d’água, Foz do Iguaçu.
Uma sombra negra se projeta na Garganta do Diabo como se fosse uma danação dentro de um arco-íris. Depois seca tudo.
Na última sequência, evidentemente em P&B,o sangue grosso escoa pelo ralo enferrujado de uma piscina vazia e abandonada num arrabalde qualquer da América do Sul.



Wikipedia (adaptado)

Marcelo Mirisola  é um escritor brasileiro de literatura contemporânea, autor de contos, crônicas e romances. Viveu em Santos, São Paulo, Florianópolis e hoje mora no Rio de Janeiro. Congresso em Foco é um dos órgãos
para os quais escreve regularmente, Com dezessete livros publicados, transita por vários gêneros literários.

O autor é conhecido por escrachar a sociedade através de uma linguagem escatológica.

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