Wladyr Nader,
romancista e jornalista, publica semanalmente textos em sua
escritablog.blogspot.com. É professor de jornalismo na PUC-SP.
Meia-volta,
volta e meia
Wladyr Nader
— Eu sempre fui
um puta cara de esquerda, está bem?
— Por que você
diz isso?
— Por sempre enxergar longe e agir de
acordo. Previam encrenca, me convocavam. Sempre previam encrenca, mesmo quando
não previam, se é que me entende.
— Que mais?
— Reapareceram
outro dia, entendeu, disfarçando as barriguinhas com as camisas pra fora das
calças, em tese pra não dar na vista. Já, quanto aos cabelões e cavanhaques,
retórica pura ligada aos bons tempos que hão de arrastar para o fundo da terra
desta para a melhor.
— Até pela idade,
hipoteticamente não conheço nenhum deles.
— Com certeza, são
caras bastante antigos. Pegaram e
falaram curto e grosso que não admitiam recusa, que recusar significava trair.
Repetiram diversas vezes que se tratava de ideais da juventude, que precisavam
reengrenar, aprontar alguma. O diabo é que isso acontece trinta e tantos anos
decorridos, quando o mundo anda mais aos trancos e barrancos do que nunca.
— Compreendo.
— Compreende, somente que nem imagina do que minha velha
turma era capaz. Houve tempo, em plena ditadura, que não passávamos uma semana
sem pichar um muro da cidade. Muro, parede, porta, fosse o que fosse.
— Vocês devem ter enfrentado paradas duras.
— Para ser sincero, nunca de fato uma da pesada, daí o
faniquito. Agora quem falou que na democracia ou nos tempos democráticos, como
supostamente os de hoje, não nos pegariam de surpresa? Lógico que sim.
— Sob quais acusações?
— Pichação indiscriminada, sei lá. Hoje nem dá pra rabiscar
ianques, fora! ou abaixo o imperialismo!, porque ninguém ligará a mínima.
— Portanto a tendência é a acomodação? Veja, estou bancando
aqui o advogado do Diabo somente pra colaborar. Para ajudá-lo a pôr os pontos
nos is, fazer melhor juízo da situação e perceber o que anda ou andava pela
cabeça do pessoal. Ajudo?
─ Adiantou resmungar que me faltava pique, verdade
verdadeira, que me sentia enferrujado, que os cabelos brancos possuíam um
sentido, no fundo a decantada acomodação. Nem pensar em cair fora, sentenciou
meu amigo Mário, que a esta altura já manca da perna esquerda por excesso de
peso, cento e tantos quilos pra modestos um metro e setenta.
— Certo.
— O terceiro telefonema deles foi a conta, quebrou o gelo,
me pôs de quatro: eu não tinha nada a perder ou, se tinha, argumentaram,
era porque me corrompera. Tentei
rejeitar o plano, ir pra cima, tive dó. Enfim pensei que uma vezinha não
tiraria pedaço e que valia a pena dar ao grupo aquela esperança em nome da
camaradagem. Enfim acertamos os ponteiros, sabendo eu que não iríamos
longe, nós, os desmiolados de ontem
posando de recauchutados. Também admito que hajam crescido as justificativas,
que ouvi sem prestar grande atenção.
Para aquela gente, eu deveria me comportar como mito, por conta da breve fama
adquirida na política estudantil, justo
eu! Eis o argumento que faltava para me convencer. Covardia não casava com a
personalidade deste cidadão aqui etc. e tal, enfrentara lances arriscados,
insistiram ─ quais, me pergunto agora encafifado? ─, e os superara sem a menor
hesitação. Fiz questão de lembrá-los de que me assustei com a própria vida,
eles riram, contra-atacaram com piadinhas. Quando se nasce líder, é uma
bosta. Ou seja, deixei de ver detalhes
negativos na ação que combinamos pra uma semana depois. É que, por haver
embarcado em várias canoas furadas, virara um ressentido, avesso a
progressistas dos mais criativos matizes. No fundo, acabei sem um norte, sem
gás, larguei mão, desculpando-me comigo próprio, mesmo quando não tinha como me
desculpar.
— Você passou a tecer uma série de considerações e agora
perdeu o fio da meada, o relato não avança.
— Pra compensar usarei o expediente de alegar que a certa
altura puxei o freio de mão e grunhi algo do tipo espere aí, gente, esse
negócio nunca que vai funcionar! Suponho que a turma inteira parou pra refletir
sobre a questão, parou, sim, e hipoteticamente chegou à unanimidade: maluquice pura, eventualmente
divertida. Os tipos, entretanto, bateram o martelo sob um ângulo diferente:
“foda-se!”, gritou um e o resto seguiu.
Por tal razão é que, vestida a carapuça de indiferente, passei a aguardar
sentado as instruções daqueles velhos camaradas, pensando com meus botões. Têm
ao menos uma vantagem os botões de nossa existência: são ouvintes até mesmo nas
desgraças e não precisam dar-se ao trabalho de aconselhar as criaturas e
exagerar nos argumentos. A gente escapa aqui e tropeça logo adiante,
esfacelando-se de repente numa emboscada solitária. Concordo, entretanto, que
ninguém tem obrigação de ficar atento a analogias, nem de evitar sucumbir neste
que é até aqui o mais mecanizado dos períodos da humanidade. Ou seja, meu
manancial de restrições, para rebater qualquer proposta deles, afastando a
loucura de suas lindas cabecinhas, fora insuficiente, caíra por terra. O
reencontro seguido da ação, como a ela
se referiam, acabou marcado para o velho bar da alameda Santos que frequentávamos
quando ainda tínhamos uns pares de ilusões.
— Daí vocês armaram todo aquele rebuliço e salve-se quem
puder!
— Não foi efeito da bebida, acredite. Escolhemos a praça do
Belenzinho, que fica perto do metrô, porque, digamos assim, já havíamos agido
lá em outros carnavais. Pichamos a praça toda, de fio a pavio, não escapou a
menor portinha. Aí naturalmente baixou a polícia, que nos apanhou com a boca na
botija enquanto procurávamos esconder tintas e pincéis. No entanto um detalhe
sou forçado a reconhecer: nenhum deles deu no pé, além do que ouviu calado o sermão oficial. Fui obrigado a jurar
por minha mãe que obra nossa só tinha sido um murinho lá perto a troco de nada.
Estética, falei, por uma questão de estética, o que quer que significasse isso. Acredito que engoliram nossa admissão de
culpa para não complicarem a situação. De qualquer forma não pudemos descartar
o convite de comparecer ao distrito.
— E como é que a coisa virou uma festa do bairro, em plena
madrugada?
— Porque, como você não ignora, a polícia é muito
escandalosa, adora aparecer. De repente até os que os estavam enganchados nos
braços de Morfeu deram as caras ou surgiram à janela. Não poderia faltar bateria, claro, e veio de um canto qualquer
que não consegui detectar. De manhã o pessoal ainda sambava numa rua do Brás,
nem sei como tínhamos ido parar lá.
— E a história acabou bem, suponho, porque vocês não
são nem por sombra criminosos comuns. Ou
minha conclusão é equivocada?
— Só para você ver, como acabamos na delegacia, eu, óbvio, é
que precisei responder às perguntas idiotas de um investigador pra lá de
grosso, o delegado não quis se misturar com a gente, nem apareceu. Reconheço, o
homem, que tinha menos de um metro e sessenta e era nervosinho demais pro meu
gosto, foi perspicaz e mandou a primeira pergunta rindo em nossa cara: "Que diabo quer dizer abaixo esta
democracia de araque!, que vocês picharam lá? Por acaso são uns
revolucionariozinhos de meia tigela, de bosta, que ficam brincando em
serviço?" Imagine o que me passou pela cachola no momento e o esforço que fiz pra não partir
pra cima dele! Além do que, eu queria era esganar meus companheiros. Aí,
pausadamente, me defendi alegando que havíamos partido pra umas e outras
embebidos do veneno do álcool, que havíamos ultrapassado os limites do convívio
humano e resolvido provocar um corintiano imbecil da turma que tinha dito que
palmeirenses e são-paulinos reuniam a escória das torcidas organizadas etc.,
etc. Ouviu, procurei sair pela tangente do futebol, já que inexistia outra
alternativa plausível? O sujeitinho caiu na gargalhada e deve ter repassado a
besteira a todos os que entraram e saíram da sala, pelos mais diversos motivos,
madrugada afora. Eu não me senti recompensado pelo triunfo de meus argumentos,
embora feliz porque dali em diante estaria dispensado de me desculpar diante de
qualquer outra estupidez da turma: propusessem o que propusessem, nem pensar!
— Sem maiores problemas, como nas deliciosas comédias
italianas dos anos 50 e 60. Então é isso?
— Imagina o que me senti obrigado a fazer para compensar o
fogo que não tomei, enquanto meus amigos permaneciam belos e formosos em casa
com seus pilequinhos? Bater de porta em porta pra me desculpar com os moradores
do pedaço e prometer recompor em menos de uma semana as cores originais dos
muros. Envergonhado por tanta estupidez, de que me penitencio abrindo o jogo a
você, percorri a praça inteira jurando, além de pedir perdão, jamais tornar a
pisar no bairro, se é que é possível. Ridículo, ridículo! Ou seja, foi tudo
duma babaquice atroz. Eu me olho no espelho e me pergunto como pude cair no
conto dos revolucionários de fancaria de meu tempo. Apesar das contrariedades,
claro, eu os quero bem porque quando jovens compartilhamos muitas coisas. A
questão, hoje, é que não mais habito seu mundo, nem tenho por ele o menor
interesse.
— Sinto por suas palavras que, embora a condene, a
experiência valeu, não valeu?
— É, só que necessito deixar bem claro o seguinte: não
desejo virar personagem, prefiro
continuar como criatura de carne e osso e ponto. Na verdade é cômodo e menos
sujeito a emoções destrambelhadas. Gosto de minha vidinha, ela me basta. Talvez
não seja para quem queira experimentar grandes emoções. Aliás, quem espalhou
que a tranquilidade, mesmo que a pessoa um dia se acovarde, não é uma bênção
dos céus?
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