sexta-feira, 1 de julho de 2016

CONTOS CORRENTES

Wladyr Nader,  romancista e jornalista, publica semanalmente textos em sua escritablog.blogspot.com. É professor de jornalismo  na PUC-SP.
                                                  
Meia-volta, volta e meia
 Wladyr Nader


       — Eu sempre fui um puta cara de esquerda, está bem?
        — Por que você diz isso?                            
     — Por sempre enxergar longe e agir de acordo. Previam encrenca, me convocavam. Sempre previam encrenca, mesmo quando não previam, se é que me entende.
       —   Que mais?  
                         
     — Reapareceram outro dia, entendeu, disfarçando as barriguinhas com as camisas pra fora das calças, em tese pra não dar na vista. Já, quanto aos cabelões e cavanhaques, retórica pura ligada aos bons tempos que hão de arrastar para o fundo da terra desta para a melhor.
     — Até pela idade, hipoteticamente não conheço nenhum deles.
    — Com certeza, são caras bastante antigos.  Pegaram e falaram curto e grosso que não admitiam recusa, que recusar significava trair. Repetiram diversas vezes que se tratava de ideais da juventude, que precisavam reengrenar, aprontar alguma. O diabo é que isso acontece trinta e tantos anos decorridos, quando o mundo anda mais aos trancos e barrancos do que nunca.

    — Compreendo.
— Compreende, somente que nem imagina do que minha velha turma era capaz. Houve tempo, em plena ditadura, que não passávamos uma semana sem pichar um muro da cidade. Muro, parede, porta, fosse o que fosse.
— Vocês devem ter enfrentado paradas duras.
— Para ser sincero, nunca de fato uma da pesada, daí o faniquito. Agora quem falou que na democracia ou nos tempos democráticos, como supostamente os de hoje, não nos pegariam de surpresa? Lógico que sim.
— Sob quais acusações?
— Pichação indiscriminada, sei lá. Hoje nem dá pra rabiscar ianques, fora! ou abaixo o imperialismo!, porque ninguém ligará a mínima.
— Portanto a tendência é a acomodação? Veja, estou bancando aqui o advogado do Diabo somente pra colaborar. Para ajudá-lo a pôr os pontos nos is, fazer melhor juízo da situação e perceber o que anda ou andava pela cabeça do pessoal. Ajudo?
─ Adiantou resmungar que me faltava pique, verdade verdadeira, que me sentia enferrujado, que os cabelos brancos possuíam um sentido, no fundo a decantada acomodação. Nem pensar em cair fora, sentenciou meu amigo Mário, que a esta altura já manca da perna esquerda por excesso de peso, cento e tantos quilos pra modestos um metro e setenta.
— Certo.
— O terceiro telefonema deles foi a conta, quebrou o gelo, me pôs de quatro: eu não tinha nada a perder ou, se tinha, argumentaram, era  porque me corrompera. Tentei rejeitar o plano, ir pra cima, tive dó. Enfim pensei que uma vezinha não tiraria pedaço e que valia a pena dar ao grupo aquela esperança em nome da camaradagem. Enfim acertamos os ponteiros, sabendo eu que não iríamos longe,  nós, os desmiolados de ontem posando de recauchutados. Também admito que hajam crescido as justificativas, que ouvi sem prestar  grande atenção. Para aquela gente, eu deveria me comportar como mito, por conta da breve fama adquirida na política estudantil,  justo eu! Eis o argumento que faltava para me convencer. Covardia não casava com a personalidade deste cidadão aqui etc. e tal, enfrentara lances arriscados, insistiram ─ quais, me pergunto agora encafifado? ─, e os superara sem a menor hesitação. Fiz questão de lembrá-los de que me assustei com a própria vida, eles riram, contra-atacaram com piadinhas. Quando se nasce líder, é uma bosta.  Ou seja, deixei de ver detalhes negativos na ação que combinamos pra uma semana depois. É que, por haver embarcado em várias canoas furadas, virara um ressentido, avesso a progressistas dos mais criativos matizes. No fundo, acabei sem um norte, sem gás, larguei mão, desculpando-me comigo próprio, mesmo quando não tinha como me desculpar.
— Você passou a tecer uma série de considerações e agora perdeu o fio da meada, o relato não avança.
— Pra compensar usarei o expediente de alegar que a certa altura puxei o freio de mão e grunhi algo do tipo espere aí, gente, esse negócio nunca que vai funcionar! Suponho que a turma inteira parou pra refletir sobre a questão, parou, sim, e hipoteticamente chegou à  unanimidade: maluquice pura, eventualmente divertida. Os tipos, entretanto, bateram o martelo sob um ângulo diferente: “foda-se!”,   gritou um e o resto seguiu. Por tal razão é que, vestida a carapuça de indiferente, passei a aguardar sentado as instruções daqueles velhos camaradas, pensando com meus botões. Têm ao menos uma vantagem os botões de nossa existência: são ouvintes até mesmo nas desgraças e não precisam dar-se ao trabalho de aconselhar as criaturas e exagerar nos argumentos. A gente escapa aqui e tropeça logo adiante, esfacelando-se de repente numa emboscada solitária. Concordo, entretanto, que ninguém tem obrigação de ficar atento a analogias, nem de evitar sucumbir neste que é até aqui o mais mecanizado dos períodos da humanidade. Ou seja, meu manancial de restrições, para rebater qualquer proposta deles, afastando a loucura de suas lindas cabecinhas, fora insuficiente, caíra por terra. O reencontro seguido da ação, como a ela  se referiam, acabou marcado para o velho bar da alameda Santos que frequentávamos quando ainda tínhamos uns pares de ilusões.
— Daí vocês armaram todo aquele rebuliço e salve-se quem puder!
— Não foi efeito da bebida, acredite. Escolhemos a praça do Belenzinho, que fica perto do metrô, porque, digamos assim, já havíamos agido lá em outros carnavais. Pichamos a praça toda, de fio a pavio, não escapou a menor portinha. Aí naturalmente baixou a polícia, que nos apanhou com a boca na botija enquanto procurávamos esconder tintas e pincéis. No entanto um detalhe sou forçado a reconhecer: nenhum deles deu no pé, além do que ouviu  calado o sermão oficial. Fui obrigado a jurar por minha mãe que obra nossa só tinha sido um murinho lá perto a troco de nada. Estética, falei, por uma questão de estética, o que quer que significasse isso.  Acredito que engoliram nossa admissão de culpa para não complicarem a situação. De qualquer forma não pudemos descartar o convite de comparecer ao distrito.
— E como é que a coisa virou uma festa do bairro, em plena madrugada?
— Porque, como você não ignora, a polícia é muito escandalosa, adora aparecer. De repente até os que os estavam enganchados nos braços de Morfeu deram as caras ou surgiram à janela. Não poderia faltar  bateria, claro, e veio de um canto qualquer que não consegui detectar. De manhã o pessoal ainda sambava numa rua do Brás, nem sei como tínhamos ido parar lá.
— E a história acabou bem, suponho, porque vocês não são  nem por sombra criminosos comuns. Ou minha conclusão é equivocada?
— Só para você ver, como acabamos na delegacia, eu, óbvio, é que precisei responder às perguntas idiotas de um investigador pra lá de grosso, o delegado não quis se misturar com a gente, nem apareceu. Reconheço, o homem, que tinha menos de um metro e sessenta e era nervosinho demais pro meu gosto, foi perspicaz e mandou a primeira pergunta rindo em nossa cara:  "Que diabo quer dizer abaixo esta democracia de araque!, que vocês picharam lá? Por acaso são uns revolucionariozinhos de meia tigela, de bosta, que ficam brincando em serviço?" Imagine o que me passou pela cachola no  momento e o esforço que fiz pra não partir pra cima dele! Além do que, eu queria era esganar meus companheiros. Aí, pausadamente, me defendi alegando que havíamos partido pra umas e outras embebidos do veneno do álcool, que havíamos ultrapassado os limites do convívio humano e resolvido provocar um corintiano imbecil da turma que tinha dito que palmeirenses e são-paulinos reuniam a escória das torcidas organizadas etc., etc. Ouviu, procurei sair pela tangente do futebol, já que inexistia outra alternativa plausível? O sujeitinho caiu na gargalhada e deve ter repassado a besteira a todos os que entraram e saíram da sala, pelos mais diversos motivos, madrugada afora. Eu não me senti recompensado pelo triunfo de meus argumentos, embora feliz porque dali em diante estaria dispensado de me desculpar diante de qualquer outra estupidez da turma: propusessem o que propusessem, nem pensar!
— Sem maiores problemas, como nas deliciosas comédias italianas dos anos 50 e 60. Então é isso?
— Imagina o que me senti obrigado a fazer para compensar o fogo que não tomei, enquanto meus amigos permaneciam belos e formosos em casa com seus pilequinhos? Bater de porta em porta pra me desculpar com os moradores do pedaço e prometer recompor em menos de uma semana as cores originais dos muros. Envergonhado por tanta estupidez, de que me penitencio abrindo o jogo a você, percorri a praça inteira jurando, além de pedir perdão, jamais tornar a pisar no bairro, se é que é possível. Ridículo, ridículo! Ou seja, foi tudo duma babaquice atroz. Eu me olho no espelho e me pergunto como pude cair no conto dos revolucionários de fancaria de meu tempo. Apesar das contrariedades, claro, eu os quero bem porque quando jovens compartilhamos muitas coisas. A questão, hoje, é que não mais habito seu mundo, nem tenho por ele o menor interesse.
— Sinto por suas palavras que, embora a condene, a experiência valeu, não valeu?
— É, só que necessito deixar bem claro o seguinte: não desejo virar  personagem, prefiro continuar como criatura de carne e osso e ponto. Na verdade é cômodo e menos sujeito a emoções destrambelhadas. Gosto de minha vidinha, ela me basta. Talvez não seja para quem queira experimentar grandes emoções. Aliás, quem espalhou que a tranquilidade, mesmo que a pessoa um dia se acovarde, não é uma bênção dos céus?







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