sexta-feira, 26 de agosto de 2016

CONTOS CORRENTES

A MOÇA DO VIOLINO
De Ecilla Bezerra*

Havia dez meses e onze dias que a moça do violino embarcava no mesmo ônibus que eu no ponto final do nosso bairro.  Ela me lembrava Audrey Hepburn.  Para quem não sabe, a atriz protagonizou um filme que a tornou célebre: o imortal Bonequinha de Luxo.   Audrey, em seus filmes, desfilava modelos clássicos, que viravam moda, enquanto a moça do violino vestia saia azul marinho, que lhe chegava até os joelhos, blusa branca e um casaquinho xadrez.  Um uniforme.  Exigência, talvez, da escola de música onde  estudava.  Ela descia do ônibus no meio do caminho e eu seguia até o ponto final.
Desde a fila do ônibus, até nos acomodarmos dentro do coletivo, eu não tirava os olhos dela.  Ela segurava a caixa do violino com muito cuidado, nunca deixando que  esbarrasse em algum passageiro ou batesse nas barras de ferro.  Apertava a caixa contra o peito, como se carregasse um Stradivarius.  Talvez até fosse. 
Eu fantasiava que conversava com ela e ela me contava detalhes das suas aulas de música.  O professor era muito magro, usava sempre o mesmo terno cinza surrado, camisa branca mal passada, um lenço vermelho ao redor do pescoço e tinha cabelos grisalhos,  encarapinhados ao redor da cabeça, como se fosse uma enorme peruca. Ele gesticulava com exagero, gemia: “ Não! Não! Não! quando ela tocava uma nota fora do tom.  Batia a batuta e assoprava o diapasão e, numa voz esganiçada, dizia: “Atenção!  Atenção!”  Ela tocava Prelúdio e Allegro de Kreisler.  Eu chegava a ouvir o solo do violino.
Os joelhos dela eram lindos e eu subia por aquelas pernas perfeitas, adivinhava a calcinha branca em cetim e renda combinando com o sutiã, que guardava os seios pequenos, redondos e duros, tal qual uma fruta amadurecendo, querendo ser colhida e saboreada.
Sonhava com a moça do violino.  Eu, um respeitável senhor de quarenta e oito anos, casado, pai de três filhos e que nunca traíra minha mulher em nossos vinte e três anos de matrimônio.  A música e a diva misturavam-se nos meus sonhos, transformados num quadro de Monet, uma cortesã desnuda, tocando violino, despudorada, num campo aberto, onde homens bem vestidos esparramavam-se sobre a relva.  E eu acordava transpirando por todos os poros e excitado.  Fazia amor com a minha mulher de olhos fechados, imaginando que era a moça do violino quem me cavalgava.
Eu chegava no ponto do ônibus cada dia mais cedo, com medo de não ver a moça do violino.  Os fins de semana eram uma tortura.  Eu saía de carro, pelo bairro, buscando encontrá-la, ficava desatento, sonhador como um garoto de dezoito anos.
Exatamente dez meses e onze dias de paixão avassaladora pela mulher e seu violino, que ela não soltava nunca.  Eu não sabia se estava mais apaixonado por ela ou pelo instrumento.  Comprei cd’s de violino solo, que eu ouvia até exaurir todos os acordes.  Minha mulher e meus filhos me observavam, desconfiados.  Eu não estava desatento apenas dentro de casa, aquilo me afetava no trabalho e até na rua.  Por duas vezes quase fui atropelado.
Dez meses e onze dias depois, numa manhã ensolarada de outono,  ela viajava sentada no banco dos bobos e eu, bem em frente a ela.  O ônibus freou bruscamente.  Ela foi arremessada para fora do banco, o violino desprendeu-se de seus braços e correu solto pelo corredor do veículo, batendo de todos os lados.  Ela agarrou-se na minha perna e eu, na balaustrada.  As pessoas gemiam e gritavam, assustadas.  O ônibus parou e trouxe de volta a caixa do violino, aberta, vazia.  Em seguida, veio a marmita redonda de alumínio.
O motorista do ônibus havia abalroado um motociclista.  Tivemos que apear do veículo.  Eu a ajudei a colocar a marmita de volta na caixa de violino.  Ela não me agradeceu nem ergueu os olhos.  Sumiu pela rua, entre as pessoas que se aglomeravam para apreciar o acidente.  Nunca mais a vi.  

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Ecilla Bezerra nasceu na cidade de São Paulo. Aos dezesseis anos começou a escrever crônicas para periódicos de bairro, até ser descoberta pelo poeta e jornalista Sadi Carnot Santana, que a incentivou a editar o primeiro livro de poemas “Impiedoso Vento Triste”, quando contava dezoito anos. Estudou dramaturgia, filosofia, inglês, gerontologia, atuação e direção de teatro. Foi aluna de Augusto Boal e Emílio Fontana. Ainda em São Paulo, fundou e dirigiu o Grupo de Teatro Montagem, tendo apresentado, em 1968, uma adaptação de O Noviço, de Martins Penna, que mereceu muitos elogios da crítica especializada. Foi, também, editora da Revista City Tour, publicação bi-linguae destinada ao turista. É fundadora e presidente da TV Vale das Artes, secretária geral da Associação dos Canais Comunitários do Estado de São Paulo (ACESP) e conselheira da Associação Brasileira dos Canais Comunitários (ABCCOM).




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