sexta-feira, 23 de setembro de 2016

CONTOS CORRENTES

FRUTAS SECAS 
(Márcia Denser*)

I
Começou com o prédio. Você entrou no significado dele, o começo do fim da minha neurose, 
meu fiat vermelho, as noites com os amigos e o chope no bar da Alameda Santos, e você
penetrou num dos intervalos desse casulo já repleto, tão repleto como nunca o conheceu
a minha vida, as sessões de análise às segundas e quintas, aquele analista com cara de
morcego, lembrando vagamente minha prima Magali, um certo ar familiar que,
circunspectamente, ele acharia suspeito, enfim, foi em julho e começou com o prédio.

Agora estamos no Natal, termino mais este ano e ainda não sei como liquidá-lo. Um ramal

 me chama: do outro lado a tua voz metálica ficou esquecida naquele indistinto ramal de
 uma estrada de ferro abandonada, que é minha memória, onde pulsa meu coração (e o
 meu coração anda pulsando no lugar errado), mas o fato é que, até agora, nada ocorreu
de importante, salvo você, tão incorporado ao prédio de aço lavado nítrico solar colméico,
ocê que sempre foi tão chá & simpatia às quatro da tarde na minha repartição, você,
só você compreendeu o profundo significado do prédio, a minha neurose que, desde julho,
pretendi pendurar nos teus pêlos pubianos, deslizar a ponta dos dedos por tuas mornas
saliências em horas mortas de tédio, preguiça e livros de registro de entrada e saída,
carimbos inapeláveis, o teu apelo soava metálico como o vento solto no vão entre os
vidros e a imensa colméia de aço, vertical corredor ululante de vinte andares, como a
música que os pingos da chuva produzem em cada minúsculo polígono que constitui a
colméia, uma infinita e concêntrica orquestra de cordas de aço, uma melodia singela
tocada em fases, plic, plic, plic, andar por andar, até se debruçar e fazer do meu coração
um cartão perfurado, como os enfeites de Natal que rebrilham em meus olhos, era o
prédio uma inconcebível árvore desde julho ou agosto e que, agora, pretendo inaugurar,
juntamente com o fim da minha neurose, e com o homem que possuía o espírito e
o significado do prédio, com o homem que deveria manter acesos os olhos do prédio.

Mas eu vim a te conhecer dessa forma, meu amigo, e você não é nem bom e nem mau,
 você tem suas contas vencidas, suas gavetas secretas, suas prisões de ventre, mas não
 é você que eu pretendo expor, por enquanto só ia falar da pena que senti ao te ver
 realmente de perto, sem o revestimento de plástico e a tua simpatia pasteurizada,
 e eu vi um homem com sua família numa véspera de Natal, carregando um pacote
 mal embrulhado em papel rosa de frutas secas, como nozes castanhas e avelãs, nem
 sei por que tantas avelãs, fruta mais sem graça, mas é porque você só deve comprar
 frutas secas uma vez por ano e daí não sabe o que comprar, todas se parecem muito,
 e digo mais, seguramente este seria o primeiro ano que você comprava frutas secas
 porque tua mulher está doente, ela já está doente há uma semana e enchendo o saco
 a noite inteira e então foi que, depois do amor, te larguei naquela praça tão minha
 conhecida, tão podre, tão castanha e verde e fedendo merda velha de pombo e eu te
 larguei lá com a tua orfandade e seriam sete da noite de uma véspera de Natal quando
 eu morri de pena de você com a tua braçada de frutas secas, sozinho, na cidade
enlouquecida cheia de papéis picados, bêbados e pacotes vermelhos. Então compreendi,
 em toda profundidade, por que não te amava, porque, durante estes últimos quinze
 dias, meus órgãos internos se derreteram por ti, espírito do prédio, e não por um homem
 desamparado numa praça da cidade na véspera de Natal com um pacote rasgado de
 frutas secas debaixo do braço.

Todo o medo que o prédio me engolisse, me triturasse, me devorasse, eu aninhei nos teus
 lábios e senti que não podiam ser feitos de aço e cimento armado, e encontrei neles um
homem, simplesmente, o único, o amor de uma ou duas mulheres, um ser humano que,
 afinal de contas, também tinha suas histórias, sua sudorese e suas cáries imprimidas no
 corpo e na mente, assim como as minhas, as nossas marcas individuais, e também a sua
beleza, o seu modo de amar molhado e suado, seu ardor sonâmbulo, seu membro
escorregadio e vencido e então, pela primeira vez, eu tive vergonha de pronunciar teu
 nome, embora eu prossiga a te telefonar neuroticamente dizendo te amo, te amo, te amo.
II
Na véspera de Natal, à noite, durante a ceia, eu imaginava você mastigando avelãs com vinho
nacional e assistindo àquele especial de vinte e quatro horas do Roberto Carlos dedicado
às criancinhas e pensando em mim feito um idiota, assim como eu pensava em você que
pensava feito uma idiota e, porra, eu vibrava a cada gole de vinho na curva dos teus lábios
molhados, manchados de vermelho, acompanhando o filete de um arco úmido entre tuas
coxas, penetrando nas tuas nádegas brancas, quentes, a tua boca, tua língua grudando,
babando, inundando, desmanchando minha intimidade melada carnuda e eu mastigava
lentamente uma noz e passava a língua na tua nuca e girava e girava e descia e subia pelo teu
dorso morno peludo e por Deus que eu mastigava outra noz e bebia mais um gole de vinho,
um bom gole, mas então voltava a sentir pena ouvindo Roberto nos Botões da Blusa, só
porque eu sei que você estaria se derretendo de tesão também nesse exato instante.

E agora é só comemorar e compreender, comemorar e compreender e arder e queimar os
 últimos cartuchos da minha neurose nos círios deste Natal e murmurar roucamente (porque
 estou resfriada de tantas curtições) que te amo, te amo, te amo, mas não te amo, não é
mesmo? Eu vi a tua nudez amarrotada, um ódio, um desamparo infinitos saltando da tua
 garganta, o teu medo do escuro e da solidão, o teu abandono, e senti novamente pena
 de você sorvendo vinho nacional e se desmanchando de tesão por uma desconhecida na
 noite de Natal, coisas, de resto, tão humanas, não? Mas o negócio é que eu crucifico a
 minha história de cabeça para baixo, feito São Pedro, pretendo superar os mestres, quero
 acabar logo com isso, essas sensações vagabundas registro no papel sem nenhum desenlace,
 sem dor ou ruído, enquanto a Noite Feliz rebrilha em meus olhos e você se desmancha e eu
 me desmancho de amor.

 III
Começou com o prédio. Foi em julho ou agosto. Os elevadores subiam e desciam, deslizavam 
horizontalmente e sempre convergiam para o seu coração executivo. A coisa evoluiu para um
motel de fiberglass e luz negra (sempre a presença dos materiais industriais perecíveis
inflamáveis), nossos corações de fibra de vidro, nossas almas de plástico, nossos beijos
de acrílico e divisórias, nossas divisórias à prova de fogo, minhas lentes hidrofílicas, nosso
amor profilático, teu sexo termodinâmico, nossos termômetros. Empurro teu plexo e
minhas carnes se dobram em rolos de espuma de plástico. A maquete do prédio se
reflete permanentemente em teus olhos azuis de luz negra, como bolhas de sabão
brilhando artificialmente e então plic. Mas a chuva, plic, plic, plic, nos polígonos de aço,
sinfonia de cordas, pianinho de crianças que ganharam pianinhos neste Natal, plic, plic, plic,
Mozart e você no alto do prédio verificando as condições do heliporto, a sobrecarga elétrica
e o fogo e o fogo.
IV
Começou com o prédio. Eu detestava o prédio. Havia perdido minha privacidade, minha velha
 sala com lambris carunchosos, minha praça fedendo merda de pombos, meu bar com toldo
 verde, meu gim tônica às cinco da tarde e a minha loucura, minha loucura pela cidade: o
Viaduto do Chá, a Barão de Itapetininga, o Hilton, o bar Redondo, a Consolação, o Sindicato
dos Jornalistas, nossas bebedeiras debaixo da chuva de papéis picados, o bar Brahma com
seus canapés bolorentos e a sua umidade no verão, seus velhos garçons, certa jóia comprada
no H. Stern para a mulher de um amigo e depois outra bebedeira debaixo da chuva de papéis
picados e depois foi aquele dia 30 e a Galeria Metrópole, o Chá Mon, náusea, cigarros Minister
e o cheiro de gim no vômito e novamente a náusea – eu havia perdido tudo isso. Minha sala,
com janelas se abrindo para as chaminés do restaurante Garfo de Ouro, o cheiro de óleo e
temperos, um homem que não parava de bater à máquina numa janela sombria, minha sala
e minha solidão, meus vários telefones, minhas lembranças amargas. Mudar. Desesperar.
Minha sala já não existia. Existia sim, agora, um imenso espaço desértico coberto por carpete
caramelo, vinte ou trinta pares de olhos sobre mim, divisórias que nada dividiam e aquele
espírito de promiscuidade paralisante: abaixava-se o tom de voz ao telefone, vomitava-se nos
banheiros pressurizados devido à impregnação hepática pelo formol, sobrevinham vertigens,
agorafobia, cãibras, aumentaram as caspas, apareceu a nevralgia e certo mal desconhecido
contraído por náufragos que jamais retornaram para que os médicos descobrissem um
antídoto. Eu aporrinhava meu analista com o prédio, os elevadores precários, a falta de
restaurantes nas vizinhanças, a falta de cabeleireiros: mudar, abalar, desesperar. De
repente, como um grande porre, a coisa foi passando. A vista começou a endireitar,
o coração a bater compassadamente, isto é, o hábito. Comecei a me acomodar, como
uma criancinha em cama enorme, fria, estranha, que acha, que cava um setor
aquecendo-o com o próprio corpo, moldando-o a si, e então eu comecei, aos poucos,
a imprimir minha personalidade ao gosto do prédio e comecei a gostar do prédio, mais
ou menos em fins de novembro, época também que perdi o medo de guiar e comprei
um carro novo com FM estrondando discoteque desde as oito horas da manhã, momento
que atravessava a Avenida Paulista e ia ter com o prédio. O sexo havia sido travado todos
esses meses, como uma cobra adormecida no fundo de um tanque neolítico, e voltou a
ferroar-me também em fins de novembro, pois sexo significa se lançar e não ter medo nem
dor de barriga, nem nenhuma espécie de hipocondria. Eu comia maravilhosamente,
embebedava-me com os amigos após o analista no bar da Alameda Santos (que, aliás
veio substituir meu amado bar com toldo verde), novos garçons amigos, e, desta feita,
eu preferia campari à gim tônica. A análise parecia estar ajudando: o homem abria a porta
da gaiola dizendo para eu sair, para eu voar, para eu dar o fora e eu ainda com meu visgo,
meus peixinhos prisioneiros numa parede d'água, eu ainda medrosa, insegura, me soltando
em alguma parte, feliz com a minha nova liberdade, enfiando o pé no acelerador pela
avenida Brasil na madrugada, feliz porque minha irmã já não dormia na cama ao lado
e agora eu podia deixar a luz acesa até a noite toda, como certa vez que adormeci bêbada
demais e acordei com o dia amanhecendo, um enorme rombo no tapete causado pelo
cigarro que adormecera aceso entre meus dedos. Puxa, eu estava mesmo livre em
alguma parte. Tinha os amigos, o bar, as amigas, o trabalho, meu analista e tudo mais
e então faltava amor. Sem remorsos, havia as longas conversas sobre a irmandade
de Turguêniev e Virginia Woolf e coisas no gênero, prazeres estéticos absolutamente
indolores, sem grandes arroubos, sem chiaro/oscuro, mas faltava o amor.

Como é mesmo que se chama aquele animal ou flor que estende seus tentáculos para
devorar qualquer ser vivente mais próximo? Planta carnívora ou o que quer que seja, eu
me sentia precisamente assim. Gostei do seu corpo, um cabide perfeito de emoções enfiado
em terno e gravata, mas eu sabia que ele só seria o mais próximo ser humano comestível.
Ele sentava na minha sala de espera nas tardes de chuva expediente e conversava sobre a
vida dele, a minha, dos outros e de ninguém e de todos, porque, na verdade, essa era muito
mais umaconversa surda, já que somente atentávamos para nossos rumores internos, nossas
marés se agitando, nos impelindo para aquela festa convergente que fica no centro da
hipófise  e das razões menos plausíveis, algo que nos puxava como a chuva que precisasse
cair e que cairia, de qualquer forma, uma força da natureza, o vento, as estações e a maré alta.

 
V
Enquanto na cama você ruminava besteiras, eu ouvia e não conseguia pensar. Enquanto
você se queixava da tua mulher e da vida medíocre, eu ouvia e perdia novamente meu
coração traiçoeiro nesse braço-de-ferro, nesse mano a mano com a vida, vagamente
pensando como dar o fora e se ainda com alguma dignidade. Minha dignidade, no
momento, era cor-de-rosa e balançava mansamente no cabide do quarto do hotel,
porque ventava e a janela estava aberta. Você falava em ficar comigo, assim, tipo
dia-a-dia, noite após noite, televisão e contas da luz, da tua solidão e tuas camisas
e eu engolia em seco, já com uma pontada de pânico no peito, mas minha boca repetia,
surpreendentemente: sim, eu quero, eu gostaria, eu etc., enquanto o pânico aumentava.
Lembro de um almoço, segunda passada, naquele restaurante próximo ao parque, quanto
eu te achei pálido, uma espinha no lábio inferior, o terno cinza cheirando a cabide, teu
cabelo molhado de suor grudando na testa, teus óculos escuros baratos. Você se
atrasara, pois tivera de ir ao banco e tirar dinheiro justamente para pagar essa conta
absurda, então eu te olhei e pensei: é agora, quase disse: acabemos com isso, mas
não tive coragem. Não sei se foi esse estranho vento frio de janeiro (amostras talvez
do mais rigoroso inverno europeu), se foi a perspectiva de mais quatro horas burocráticas,
não sei se era como o gato que larga o rato na hora de dar-lhe a patada de misericórdia
(e com isso vai perdendo o respeito), então sugeri que voltássemos pelo parque e você 
pegou meu braço, enlaçou-me pela cintura e, bem no meio do jardim com aquele ar de
uma da tarde e varredores sonolentos, você me beijou com um leve gosto de café na
ponta da língua, a saliva pulsando através de cálidas entranhas bem guardadas numa
esplêndida caixa torácica que eu apalpava com paixão, contando, em desespero, suas
costelas e os segundos que nos restavam.

Toda vez que te olhasse e visse um princípio, um brilho de desespero no rodamoinho
 que lhe revolvia, inquietamente, a nuca, toda a vez que a tua boca pálida me impressionasse
 ao se comprimir, tensa, os dentes presos no lábio inferior, as unhas presas nos dentes, os 
olhos negros, crepitantes de abandono, é claro que eu pensaria que você era o meu esquilinho
e que não iria abandoná-lo faminto e friorento nos bosques de Stutgart nesse inverno. Mas
o fato é que eu odiava toda vez que via no teu rosto o sossego e a paz depois do sexo. Três,
quatro vezes, violentamente, com uma paixão atenta e dilacerada; o sexo se esticava num
lamento em nossas cordas vocais como pianinhos de Natal, tinha o sabor amargo e
perfumado de nozes e avelãs, nossos ventres exaustos cultivavam uma excitação estranha,
oca, vinha não sabíamos de onde, que nos fazia gemer e desejar estar mortos e daí a
segundos, com uma nova injeção de mel e afeto, querer a vida mais do que tudo, e nos
engolir e digerir num banquete interminável a alimentar meu saco sem fundo, já que
não havia nada e ninguém que me preenchesse, que me fodesse satisfatoriamente com
a tua amplidão, teu empenho, tua paixão e ardor boboca, mas, enfim, irracionalmente,
eu ficava tão molhada, tão doída e tão derretida ao simples roçar da tua boca na minha,
que só podia pensar que o amor é uma merda mesmo. A tua tensão dolorosa se distendia
como um balão de fim de festa, mas antes era preciso que você gritasse, que você gemesse,
se debatesse e me cavalgasse quase com ódio, e isso tudo não podia ser deixado impune,
eu não podia sentir meu coração bater na vagina impunemente, com um vivo e quente
sangue vermelho, pois meus órgãos trocaram de lugar e o juízo realmente eu não sabia
onde andava, se nos cotovelos, se nos calcanhares, mas eu acho que tinha ido parar no
coração e, como este, por sua vez, descera lá para baixo, escaparam-me todas as últimas
esperanças de sair disso tudo com alguma dignidade.

 
VI

Teria mesmo começado com o prédio? Não fosse ele, não teria sido necessário conhecê-lo,
 bem como seus fusos horários e diga-se: não coincidiam com os meus. Tocar essa boca
 remota por telefonia, contemplar essa aliança prosaica na mão que, ironicamente, explora
 minhas intimidades, fazia disso tudo um desperdício. Não, eu ainda não sei como liquidá-lo.
 Minha vida sempre caminhou nesse acostamento de futilidades, como se estivesse trocando
 os pneus ou procurando um fusível queimado há tempo demais para, dessa forma, coagular
 a verdadeira, a definitiva, a única viagem; perdendo tanto tempo com uma válvula ou um fio
 em curto, quando o motor está em perfeita ordem, perdendo tanto tempo com coisas como
 lábios úmidos, mornas saliências rijas, a tua maneira de apertar, de cerrar os dentes, de
espremer os olhos de dor e prazer, teus gestos bruscos manietados, essa tua esposa tola
 com nome de balconista, teus sete ternos executivos, tua voz metálica, tudo isso me dizia
 que já estava perdendo tempo demais com tolices nesse acostamento, nesse esquecido
 ramal da minha memória onde rebrilham os enfeites desse Natal, a carga perfumada de
 frutas secas que abraçavas naquela praça da cidade onde te deixei, na véspera, às sete
 horas da noite, após o amor, mas não, não será assim que irei liquidá-lo.

VII
Começara com o prédio. Fora essa despedida de paixão que andara pendurada em minhas
mãos, que implorara em outras bocas e me fizera ainda e outra vez fazer besteiras. Na
verdade, depois daquela tarde, eu não o vira mais. Acontecera a viagem, novos amigos
e alguns quilos excedentes na cintura e então descera naquele maldito aeroporto, já tão
distante do Natal e das próprias férias, já mergulhada no calendário e desejando evitar a
comissura das tuas coxas, a estátua esbofeteada em plena luz do sol contra o céu negro
de fevereiro, a ferida aberta. Minha irmã estava dizendo que, quantas concessões abrimos,
mais sangramos. Eu me calo e fico contemplando à frente o vácuo feito de sorrisos falsos,
cadeiras de balanço e cotações do cacau: um emaranhado de gestos ineficientes, de
palavras dispensáveis, de uma solicitude tola para com a novela das oito e cabeças
debruçadas sobre o Pato Donald, e ligando tudo isso ouvia a tua voz metálica do outro
lado do fio soando no mesmo tom uniforme, mesmo após um mês, como se a tivesse
deixado gravada no aparelho.

Mas eu sangrava quando à noite reencontrei os amigos, prosseguia sangrando quando
um sujeito de nome Fausto veio sentar ao meu lado no bar, sangrando e me dilacerando,
enevoando teu corpo no fundo das minhas possibilidades, revolvendo em brasa meus
sonhos abertos, peludos, pregueados de pena e o teu perfil, Fausto, esse teu perfil
bronzeado de lâmina flamenca, tua residência no Brooklyn, tua mulher e três filhos
na praia e a tua voracidade, a tua urgência ridícula de inseto, você que para mim era
apenas um pretexto para morrer e dilacerar aquele outro lado que não tem carne
e músculos, aquele lado que é feito de soda cristal, vômito e gliconecroton na veia.
Não. Mas isso aconteceu há um ano, isso foi há muito tempo, isso não pode ocorrer
novamente, não porque esse Fausto está pedindo, implorando, não porque já não consigo
distinguir se é teu gesto saindo da névoa e me oferecendo avelãs ou se é o outro tentando
empurrar uma azeitona goela abaixo e, é claro, para diminuir o pileque. Da outra vez fora
diferente, já que não o fizera por ninguém e nem por mim ou só por mim e contrariamente
a mim e não desejava maltratar nada além de mim mesma, mas esse Fausto é como um
fantasma de 365 dias assombrando esta madrugada triunfante, sorrindo tentador debaixo
da oitava dose de uísque, debaixo das três da manhã e de uma porção de rostos liquefeitos
na penumbra.

Confirmemos nossa secular transação, Fausto, nosso negocinho sujo, desde que você não
encha demais o saco, desde que você pare de me beijar tão estupidamente como se cada
beijo tivesse o propósito de nocautear-me, contanto que você não peça para guiar meu
automóvel, contanto que você cale a boca e faça o que é preciso em silêncio e com precisão,
porque minha tarefa já é muito suja: sangue e merda se espalham por todo lado, e que você
permita que eu o conduza para o hotel, o sumidouro da praça da igreja, o carpete roxo, as
portas de vidro fumê, o cheiro de esgoto e amônia no banheiro, a janela que dá para outra
janela que dá para outro quarto para outro casal petrificado puxando a cordinha da descarga
e pedindo o inevitável campari das quatro da manhã. Vamos embora, sujar-me desta vez
ainda mais completamente para matar o outro ou para depois pedir perdão ao outro ou
até para ficar fora do alcance de qualquer perdão, para espezinhá-lo justamente sabendo
que quem está soterrada pelas estruturas metálicas do prédio sou eu e eu e eu, enquanto
o teu espírito triunfante ri metalicamente do outro lado do fio da minha memória,
precisamente do lado onde ainda restavam carne e ossos velozmente adorados, ri
metalicamente enquanto meus cavalos vestidos de vermelho galopam para o inferno,
para o pecado perfeito, metalicamente como os pianinhos de Natal, como as derradeiras
satânicas notas ao telefone, plic, plic, plic, enquanto Mozart na vitrola e tua boca remota,
por telefonia, diz está bem, de acordo, não daria certo e boa viagem, enquanto o campari
das quatro desce goela abaixo, ridiculamente vermelho, gelidamente vermelho e amargo
e com gosto de remédio para ressaca misturado a mercúrio-cromo, enquanto há um
Fausto impotente e bêbado adormecido nessa cama, enquanto confusamente eu me
lembro dos abraços cegos no escuro, de mãos desesperadas como morcegos esgotados
apalpando áreas que fugiam e se encolhiam ou derretiam ou não existiam, e dedos que
tocavam meu ventre como se cavassem na areia sem querer sujar-se, procurassem com
nojo diligente alguma pulga ou percevejo na crina de um cavalo, dedos impotentes,
desconhecidos, aterrorizados pelo grande abismo que havia além, depois da escuridão,
depois de mais nada, quando seus bagos, cumprida a penosa tarefa, murchassem como
frutas secas, e de tudo isso nada restasse, nem palavras, nem sons, nem balbucios, além
de dois macacos fumando, olhando o tempo e bebericando um estranho líquido vermelho. 

*Márcia Denser é militante da literatura e do jornalismo, com pós-graduação em comunicação e 
semiótica, pela PUC-SP, autora de livros de contos, romances e literatura infantojuvenil. 
Suas obras já foram editadas na Alemanha e nos Estados Unidos.

Conhecida como uma contista que trabalha temas eróticos com qualidade literária.

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