sexta-feira, 21 de outubro de 2016

CONTOS CORRENTES


Condenado à liberdade
(Matheu Arcaro*)

“Terei que correr o sagrado risco do acaso.
E substituirei o destino pela probabilidade.”
(Clarice Lispector, A paixão segundo GH)

Estou aqui há oito dias e alguns meses. Quantos meses? Não sei ao certo. Até a semana passada o calendário não passava de mais uma invenção vencida. O que sei é que estou nesta cela há tempo insuficiente. Está me ouvindo, Pagu? Parece mais peluda hoje, as patas maiores. Patas peludas e firmes, feitas para caminhar pelo teto, de onde você me vê como sou e não como parecia ser. Antes de me atirarem neste cubículo eu estava pronto, homem modelar. Sabia o que tinha que fazer. E fazia. E refazia. Usava o livre-arbítrio para alcançar a verdade que esperavam de um homem alto, 38 anos, cabelos grisalhos, chefe de família, empresário. Eu era. Até me enfiarem aqui. Só que eles se enganaram, Pagu. Todos eles. Ao me isolarem na solitária, não me privaram da liberdade. Privaram-me do que acreditam ser a liberdade, no que igualmente eu acreditava. Mas foi só aqui que conheci a verdadeira face da liberdade meses atrás: a chuva lavava os telhados; embora a cela estivesse tomada pelo hálito da penumbra, da minha cama vi a gota reluzindo no teto: as lágrimas começaram a desabrochar da alta fenda e despedaçarem-se no chão. Comecei
também a chorar. Não somente porque fora educado a repetir, desta vez era diferente. O pranto, sem o soluço da dor, acordou o sorriso que há tempos não visitava meu rosto. A goteira ficou espessa, eu precisava entrar naquela torrente. Arranquei o macacão encardido, as meias, a cueca e corri para misturar minhas lágrimas com as do teto. E da água, antes translúcida, brotou uma espécie de corrente, mas cujo desenho, já não mais aquoso, foi aos poucos tomando a forma de... uma mulher! E como era maravilhosa. Linda o suficiente para um encantamento que me afogou numa emoção sem precedentes. Uma mulher de olhos ruivos. Quem é você? Sem dizer uma palavra, ela puxou minha pele, que facilmente se descolou da carne, feito estas paredes que você conhece tão bem. Depois, os músculos e os órgãos dissolveram-se com seu sopro: em instantes, eu era duas retinas suspensas e um coração pululando. Você não viu isso, não é mesmo? Acho que sequer era nascida. Pela primeira vez na vida eu era imperfeito. Incompleto. A partir deste banho, virei o avesso de Deus, um ser ébrio e imberbe, sem natureza (nem divina, nem humana), que não passa de criação! Lá fora, eu fora criado, avental e touca, servindo diariamente pedaços da minha vida ao destino. Ele comia, se lambuzava e, quando se dava por satisfeito, atirava os restos dentro de moldes construídos pelos Guardiões da Esperança. Só que aqui, Pagu, neste retângulo de seis metros quadrados, aprendi, como você, a arrancar do meu peito o fio sobre o qual eu passeio sem sair de mim. Mas terei que sair daqui a pouco. É o que diz na carta que o carcereiro me entregou semana passada. Envelope ocre, papel timbrado com as iniciais do doutor que conhece as vísceras da lei: “Ilmo. senhor Pedro, o pedido de soltura foi deferido; o senhor sairá em oito dias”. Eu contratei esse advogado? Para quê?  Sua eficiência arremessou meu avesso à boca do desespero: à medida que os novos dias engoliam os velhos, o temor escorria do peito aos membros: as pernas estrangeiras do corpo, os braços rigidamente esticados ao longo do tronco. A lembrança de antes da solitária deixava meu futuro anestesiado. Não, não posso mais voltar a ser como aqueles senhores que caminham ao lado da vida; não suporto mais vestir a máscara que cada situação suplica; não quero mais enfiar meus sentimentos num saco sujo. Jamais imaginei que poderia arrancar as boias que me prendiam à minha superfície. Aliás, nunca cogitei a existência dessas boias. Foi somente aqui que me tornei um abismo negro, úmido e cálido por onde caio sem eriçar os pelos e, em cada centímetro, encontro os andaimes frouxos, as entranhas e as arestas que não quero mais aparar. Antes de os homens fardados me buscarem em casa naquela manhã ensolarada, eu percorria, de cabeça erguida, um caminho marcado com tinta indelével; por isso não enxergava o traçado. Aqui aprendi a dançar sobre a minha história que escrevo a lápis em páginas sem pautas, dançarino surdo carregado pelo ritmo da respiração. Aqui consegui ouvir a vida gritando em meus pulsos, consegui apanhar a eternidade em cada átimo e soltá-la para que tudo não passe de possibilidades. É, Pagu, o mundo é pequeno demais; eu só caibo nesta cela. Porém, desde que recebi aquele papel pálido, o cheiro inebriante que irrompia dos meus poros não frequenta mais minhas narinas. Naquele momento comecei a registrar os dias na pele com a ponta do canivete. Não me olhe assim. Coagido pela lei, tive que aguardar a oitava manhã e ela nasceu chorando como se compartilhasse com o meu espírito o estado agônico de quem está prestes a ser aprisionado. Ouço os passos do carcereiro marcados pelo balançar das chaves, ele está vindo abrir a cela, provavelmente com os dentes à mostra. O que farei? Permanecerei abraçado às grades implorando que me deixe aqui? Gritarei, Excelentíssimo senhor Juiz, eu me declaro culpado, sou uma ameaça à sociedade? Subornarei o diretor da cadeia? Não, nada disso funcionará. Irei, mas nem vou me despedir de você, porque darei um jeito de voltar ainda hoje. Ainda hoje.

Conto integrante do livro ‘Violeta velha e outras flores’. Patuá, 2014.

*"Devo agora falar de mim. Isso seria um passo em direção ao silêncio."
Samuel Beckett sintetizou magistralmente a impossibilidade de se definir.

Quem sou eu? Eu não sou; eu estou. Ou talvez eu seja; mas não mais do que possibilidades. Uma personagem no expediente comercial (o Publicitário); outra à noite (o Professor de Filosofia e Sociologia) e outras duas aos finais de semana (o Escritor e o Artista plástico). Se necessário for colar em mim um rótulo, que seja o de Tapador de Buracos. Afinal, a Arte é uma necessidade de preencher espaços vazios. E estes, para a minha fortuna, nunca cessarão de existir.

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