sexta-feira, 2 de dezembro de 2016

CONTOS CORRENTES

Trajeto
(Geraldo Lima*)


Esperou por ela ali no quarto.
Esperou que ela entrasse e fosse direto para o banheiro, como era de costume. Ah, sempre com a bexiga cheia, prestes a estourar. Ouviu o baque da porta sendo fechada e em seguida o jato do xixi batendo na água do vaso sanitário. O barulho da descarga, da porta sendo aberta  e, por fim,  o som de passos vindo em direção ao quarto.
Esperou sentado na borda da cama. Mas a espera tornava-se mais longa do que ele desejava. Os passos pareciam fazer um trajeto enorme, como se de repente a casa tivesse triplicado de tamanho. Para aumentar-lhe a ansiedade, ela fez um pequeno desvio e passou primeiro pela cozinha. Havia se esquecido de que, vez ou outra, ela chegava faminta. Cansada e faminta.

Esperou sentado na borda da cama e com o envelope pardo numa das mãos. Ela iria perceber, tão logo passasse pelo vão da porta, que o rosto dele não trazia aquela serenidade de sempre, o sorriso e a alegria por vê-la chegar em casa depois do trabalho. O quadro era outro, turvo e sombrio.

Esperou sentado na borda da cama até os passos começarem a ressoar como se já estivessem dentro do quarto. O coração deu um salto grande e sufocante, obrigando-o a se pôr de pé. No envelope pardo, as mãos deixavam marcas de suor e nervosismo. Diante dessa imagem desbotada e corrompida pela dor, ela entendeu logo a razão daquele envelope brandido com fúria junto ao seu rosto.

Ela
(Geraldo Lima*)

É como se não tivesse ficado tanto tempo longe de casa. Como se não tivesse, num rompante do mais louco romantismo, abandonado tudo em nome do amor mais extremo. Olhando-a assim, tão desenvolta na casa que ela renegou um
dia, podemos nos espantar com a sua certeza de que ainda cabe ali, de que não há outra em seu lugar, de que ele não trocou a fechadura exatamente para que ela entrasse sem precisar tocar a campainha. E aí está ela, desfazendo a mala, indagando sobre o comportamento das crianças (nem percebe que cresceram, que praticamente não a reconhecem), e reclama do guarda-roupa bagunçado, reafirmando, talvez, a necessidade de sua presença ali. Ele, até agora, observa tudo pasmo, com um engasgo, uma vontade de dizer algo, uns desaforos, uns desafogos, indagar, se impor, mas sente-se atravessado por sentimentos contraditórios:  enquanto busca em si o ódio, a faca que trincha, um fiapo de alegria deixa-o mole, aliviado, quase a ponto de chorar. Intenta reagir contra essa fraqueza, porém já é tarde, ela domina o ambiente, preenche o vazio de antes, dando a nítida impressão de que tudo está começando agora, sem pus algum na ferida que lateja ainda exposta.

*Geraldo Lima 

Mora atualmente em Sobradinho, Brasília, DF.

Professor, escritor, dramaturgo e roteirista. Autor dos livros A noite dos vagalumes (contos, Prêmio Bolsa Brasília de Produção Literária), Baque (contos, LGE Editora/FAC), Nuvem muda a todo instante (infantil, LGE Editora),UM (romance, LGE Editora/FAC),Tesselário (minicontos, Selo 3x4, Editora Multifoco) e Trinta gatos e um cão envenenado (teatro, Ponteio Edições).Participou das antologias: Antologia do conto brasiliense (Projecto Editorial, org. por Ronaldo Cagiano)e Todas as gerações - o conto brasiliense contemporâneo (LGE Editora, org. por Ronaldo Cagiano). Participou, também, do Projeto Portal: revista Solaris e revista Neuromancer, org. por Nelson de Oliveira.e-mail: gera.lima@brturbo.com.br Twitter: @gerassanto.com


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