(Regina Baptista*)
Era
verão, embora a tarde não estivesse tão quente que não se pudesse suportar uma
exposição de dez minutos ao sol. Mas enfim, estávamos há quase meia hora sob
aquele sol brilhante, o que já começava a mudar nosso ânimo. A espera pela
abertura dos portões imensos e cinzas do estádio, onde aconteceria o show, era
quase um suplício... Ou, ao contrário, uma doce espera! Porque sabíamos que
assim que aqueles monumentais portões se abrissem todos nós ganharíamos o campo
e estaríamos prontos para um grande espetáculo.
Eu
estava ali sendo espremido, tocando e sendo tocado sem ter como evitar. Os meus
pés procuravam dividir o espaço com tantos outros pés; às vezes eles perdiam o
chão e depois de alguns segundos o reencontravam. Tentavam se firmar mas um
leve movimento da massa os fazia perder o chão de novo. Um movimento mais
brusco de algumas pessoas causava uma espécie de onda que nos embalava a todos;
a todo instante balançávamos como se estivéssemos juntos numa embarcação.
Éramos tão unidos que o sol parecia querer nos derreter para formar de nós uma
massa compacta e depois moldar essa massa até dar a ela uma forma qualquer,
porém uma única forma. Às vezes eu até me preparava para começar a fundir meu
corpo aos dos outros. Só acordava do delírio quando alguém gritava “vai abrir”
e todos gritavam qualquer coisa em seguida como uma forma de tomar impulso para
a correria que viria a seguir. Mas os portões impiedosos resistiam à nossa
pressão ou se mantinham imóveis só para nos torturar. O problema é que, com a
demora, o sol e a ansiedade,
naturalmente, fomos nos comprimindo mais e mais e mais enquanto aumentava a vontade de entrar. Os dedos dos meus pés lutaram várias vezes tentando alcançar o chão, mas a massa forçava tanto que cheguei a ser mantido suspenso por um bom tempo. O medo de perder o equilíbrio, e sofrer um acidente quando começasse a correria, me fez criar coragem de me agarrar ou apoiar com as mãos sobre ombros e cinturas alheias. E por que eu deveria evitar isso se estavam fazendo o mesmo comigo?
naturalmente, fomos nos comprimindo mais e mais e mais enquanto aumentava a vontade de entrar. Os dedos dos meus pés lutaram várias vezes tentando alcançar o chão, mas a massa forçava tanto que cheguei a ser mantido suspenso por um bom tempo. O medo de perder o equilíbrio, e sofrer um acidente quando começasse a correria, me fez criar coragem de me agarrar ou apoiar com as mãos sobre ombros e cinturas alheias. E por que eu deveria evitar isso se estavam fazendo o mesmo comigo?
Tudo parecia brincadeira de
mau gosto dos organizadores: os portões não se abriam, os minutos se tornavam
eternidade, as individualidades se condensavam. Já não se podia, caso alguém
decidisse, sair dali e voltar para casa ou procurar uma sombra, pois a compressão
imobilizava sobretudo os que estavam no centro da aglomeração. Quanto mais a
pressão crescia, mais difícil ficava manter a consciência. Pensei que acabaria
espirrado para cima ou esmagado como uma banana.
Mas quando consegui me restabelecer, percebi que
os sentidos saíam da anestesia e queriam captar tudo; e se, por um lado, a
visão era comprometida pela luz forte do sol, por outro, o olfato compensava
essa perda. Notei isto quando senti um hálito de menta invadindo meu ar. Eu
estava absolutamente lançado em outra esfera, conduzido por um instinto talvez
animal ou sobre-humano, mas com certeza resgatado do meu mundo. Naquele
instante eu sabia que devia registrar na minha memória aquele cheiro como uma
condição para a preservação daquele momento único, o momento em que eu era
milhares de “eus”. A pastilha de menta não estava na boca de alguém próximo de
mim mas sim dentro de mim, selando uma espécie de contrato que eu fizera com aqueles estranhos quando caminhamos todos
para um mesmo espaço e nos submetemos ao mesmo domínio improvisado. A pastilha
estava no universo.
Aquele aroma de menta me
mostrou o quanto eu era promíscuo e tendente ao bloco. Estávamos todos ali
confundidos num sistema de corpos, sons, memórias de sons que queríamos escutar
no palco. Memórias de corpos que em outros tempos foram confundidos em outras
circunstâncias. Desejei então sentir na minha boca o gosto de menta que vinha
de outra boca. Ou desejei firmar um elo com a boca que me transportava para o
meu berço. Busquei a fonte do meu delírio e encontrei. O estranho ou a estranha
que saboreava a pastilha atendeu ao meu desejo. O toque e a comunhão com aquela
boca eliminaram qualquer dúvida que pudesse haver sobre meu poder de me
propagar pelos séculos. Fui subtraído da civilização e da história da evolução
da espécie humana para aquele beijo.
Finalmente chegava o tão
aguardado instante, não necessariamente de libertação, mas sobretudo de
apreensão pois um segundo de descontrole
dos movimentos acarretaria um tombo. Despedi-me do estranho e flutuei por
alguns metros até chegar aos guichês onde finalmente perdi o equilíbrio e caí.
Vieram todos os outros “eus” e me pisotearam. Não senti dor; talvez tenha
desmaiado. Acordei no hospital e percebi, portanto, que havia perdido o espetáculo.
*Regina Baptista - Escritora
Nasceu em São Joaquim da Barra-SP, aos 16 de junho de 1968. Mora em Ribeirão Preto desde 1977.
Graduada em Ciências Sociais pela UNESP, de Araraquara-SP, em 1995.
Trabalha como secretária paroquial na Arquidiocese de Ribeirão Preto, desde 1997.
Filiada à UBE – União Brasileira de Escritores desde 2010.
LIVROS PUBLICADOS (de forma independente):
CÁRCERE PRIVADO (2007) – novela – Ed. Scortecci
O narrador está preso num cativeiro, sem contato com seus opressores. Apenas uma mulher, Iolanda, o visita diariamente para levar as refeições e limpar o lugar. Entre uma conversa e outra com sua “carcereira”, o narrador vive devaneios e delírios por causa do confinamento.
MUNDO SUSPENSO (2009) – microcontos e outros textos breves – Ed Scortecci
Nesse livrinho as narrativas são breves e compactas, tentando sempre potencializar um acontecimento cotidiano.
ATO PENITENCIAL (2011) – romance – Editora Coruja
Partindo do mito de Fausto, o livro tenta mostrar um conflito faustiano de um sacerdote católico que seguiu a trajetória religiosa abdicando à sua verdadeira vocação humanista (Ciência), em nome de uma culpa do passado: a morte do pai. Na condução do seu trabalho religioso os fantasmas desse passado nunca dão descanso. Até que um dia surge um jovem, Asmodeu, fazendo provocações sedutoras.
REVISTA MASCULINA-O HOMEM EXPOSTO (2012) – contos – edição própria.
Nessa coletânea foi selecionada uma parte dos textos dedicados ao universo masculino, destinados a uma coletânea maior. São cinco textos em forma de diálogos entre dois personagens: dois homens ou um homem e uma mulher.
FÓRUM VIRTUAL (2015) – romance – Editora Redemoinho
Seguindo a linguagem de diálogos (como já havia feito em Revista Masculina), o texto narra episódios virtuais, como a emissão de e-mails e s discussões em fóruns virtuais. Todas as discussões dizem respeito a uma matéria de revista. A personagem Ana Débora, jornalista bem conceituada, é a autora da matéria e é através das suas investigações na Internet que ela descobre discussões de internautas, em diversas épocas, impactados com sua matéria.
PARTICIPAÇÃO EM ANTOLOGIAS:
1 – Elo de Palavras (2008) – Ed. Scortecci – com o conto BETH E FRED
2 – Tantas Palavras (2011) – com o conto CABINE DE COMANDO
3 – Antologia UBE (2015) – Ed. Global – com o conto OUTSIDERS
OBRAS INÉDITAS:
Contos: – ENTRE A VIDA E A MORTE – UM DOSSIÊ MÉDICO – OS FILHOS DE CAIM – REVISTA MASCULINA (primeira parte publicada em 2012)
Romances: – POÊNIA – EXERCITO PARTICULAR – O FILHO (inacabado) – AS TORRES (inacabado) – DIÁRIO DE UM NEURÓTICO – A POLÍTICA SEGUNDO DANI SCARPINI – A PERFORMANCE
link para contato: e-mail (reginabaptista@ig.com.br) tenho também um blog : http://reginabaptistacronos.blogspot.com.br
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