sexta-feira, 26 de maio de 2017

CONTOS CORRENTES

Infinitos Carinhos

(Hersch Basbaum* - Maio 2017)                                 

“Sim frustrei-me em meus sonhos. Queria alcançar o status de abajur escandinavo, mas não consegui. Faltaram-me as asas esbranquiçadas de fôlego azul.  Hoje choro  lágrimas espessas de espermas atarantados. Nada mais há a fazer. Ateu definitivo que sou, não tenho a quem apelar. Resta-me a capacidade de amar, que não me foi roubada. Por isso escrevo”.

Foi assim que Frei Losango iniciou seu discurso de despedida. Dizia-se um dálmata esclarecido, pronto para divulgar textos de interesse da  coletividade, Pois era assim que se julgava cumpridor de seus deveres patrióticos. Na verdade, lia seu último conto, trabalho de fôlego que havia terminado dias atrás.  Era inédito, somente conhecido  por sua esposa, a bela Estrofênia.


“Que sonho foi esse?”, perguntava-lhe a esposa.  “São izidoros de Tutancâmon”, respondia o Frei, com altivez. A jovem, pressurosa mulher, vivia cuidando de seu jardim que estava espalhado por uma
área de dimensões atraentes e enlouquecidas. Além de escatológicas. Circundada por uma grade, enriquecida por arbustos formados por ciprestes neozelandezes, de baixa estatura, que a permitia, volta e meia, pular a cerca sem se preocupar em abrir o portão.  E sem se machucar. Era bastante popular, por tal gesto, em todo o bairro.  Para todos, ela era a mulher do padre, aquela que pulava a cerca, num gesto pra lá de piedoso.

“Diante do divino me acerco de umildade, pois costuma chover muito ali no pedaço, justamente quando sentimos a consciência de nosso pouco ou nenhum mérito, de nossa fraqueza, de nossa inferioridade. Mesmo sem acreditar, peço a deus por essa gente, disse, um dia, Vinícius”.
“Mas, Losanguito”, disse-lhe Estrofênia, “até onde você pensa em chegar? Lembre-se dos compromissos, pra lá de ecumênicos”.

“Mas em meu sonho sonhado”, prosseguia o Frei, “a mulher não deveria mais se aconchegar tamanho-padrão. Transformava nossa casa em tabernáculo de demiurgos,  Verdadeiro valhacouto, caliginoso, contubérnio de celerados, onde o que menos se fazia era prestar contas das vantajosas  bandalheiras silvanas.  Isso, nem pensar!”.

Estrofênia ainda teve tempo de observar quão perdido estava o frei, naquela altura. “Tenho que ajudá-lo”, era só o que pensava.

“Essa coisa dela comentar o que escrevo, não tem nada a ver. Ela se prende às questões formais, esquecendo das intenções. Não está certo. Parece-me que a única saída é matá-la, assim me livro de todas as epifanias ameaçadoras. E de uma forma que ela jamais saberá como foi que fiz. É a chamada morte em segundo grau”.

“Continuo sem saber a onde ele quer chegar. Será....”

*Autor de “O Senhor de Paris”, Hersch Basbaum reside em São Paulo, tem diversos livros publicados e inúmeras peças encenadas no RJ e em SP, dentre as quais A Filha do Presidente (1985), Os Inimigos (1994) e Gotas de Paixão (1995). Foi Diretor da UBE - União Brasileira de Escritores e da SBAT - Sociedade Brasileira de Autores Teatrais.



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