quarta-feira, 14 de junho de 2017

CONTOS CORRENTES

Voando com Maura Lopes Cançado
(Eltânia André*)

Maura!
Maura!                                                                                      
Maura!
Senti a minha boca se abrindo para aquele nome. A voz apelando, ora disfônica, ora ritmada - conduzida pela potência do som do tambor das mais remotas eras de comemorações e rituais. Um ardido deslizou pelas vértebras, como naquele dia da queda do CAP 4, prefixo PP-RXX, ou quando ela jogou a máquina de escrever pela janela da redação do jornal.
Maura!
Maura!
Maura; você viu a Maura? Perguntei para um-alguém que sem responder, permanecia rígido e imóvel. Em qual profundidade escondera seus afetos? Era necessária uma árdua escavação na alma esgotada. Lembrei-me da cisterna da casa da Carmelita, que abastecia a vizinhança. Havia água, mas era preciso cavar. Baldes e baldes se entranhavam pela sua bocarra escura e fria. Por mais que olhássemos dentro, não se via o fundo. O poço ficava num cômodo, escondido dentro da casa. Tinha medo daquele cubículo entre a horta e o banheiro improvisado, entretanto permanecia tentando alcançar o brotar da água.


“Viram a Maura?”. Bem alto, gritei. A Lopes? A Cançado? A escritora!
Lentamente, ela atendeu meu chamado e me juntou num abraço quase sufocante. Era espera. Era encontro. Tínhamos muito em comum: ambas filhas de russos, por exemplo. Nossos voos! Maura sempre pilotando com sua sedutora “ousadia de mulher moderna” – como dizia seu tio chinês. Um dia levamos Natacha escondida, sua irmã pequena. Natacha chorava de medo, riamos disso. Nossos temores eram outros. Viver. Ver. Sonhávamos com o avião lúdico se enroscando nos fios da pequena cidade russa, mas era preciso pausa para os pássaros migrarem para o Brasil. Preocupávamos com isso. Com a fuga dos pássaros para outras terras.
Maura parou diante daquela mulher rígida, suspeitamente catatônica. O nome dela? Joana. O quadrado de Joana traçado num dia de verão. A arte é assim como a cisterna da velha Carmelita, alcança lugares obscuros e abissais. Debaixo do braço, arranhando e manchando a axila os jornais que colecionei. Seus contos encharcados de suor. Dos jornais, hoje, tenho asco, a tinta que não gruda totalmente no papel, lambuza meus dedos e as digitais se impregnam de uma cor escura. Limpei as mãos na roupa branca. Estendi os braços e pedi-lhe para verificar se havia resíduos no meu sovaco. Ela riu seu melhor riso. Também tenho nojo de jornais – disse-me. Maura principiou a dançar, éramos as bailarinas-astronautas. Rodopiávamos na imponderabilidade. O mundo girava, o hospício girava. Maura se exaltava: “O hospício é árido e atentamente acordado, em cada canto, olhos cor-de-rosa e frios, espiam sem piscar”. Engoli suas palavras, sem definir o sabor, mas a garganta queimava. Hospício é Deus. Mais, Maura. Mais  – sussurrava entre os dentes. Por um instante, ela exaltou-se: maldito editor, maldito taxista – onde está o que continua de mim? Queríamos praguejar em russo, mas as palavras fluíam em português. Sobrou o dialeto dos bares, das instâncias sigilosas, a linguagem sensível, a linguagem de dentro, a linguagem densa, funda. Sobrou o que parece ser: esquecimento. E o desejo transbordando o medo. E o medo transbordando desejos. Mastiguei cada palavra, enquanto degustava uma garrafa de café produzido nos Andes equatorianos. Demorei dias em ruminações, diante do exército de xícaras.
Coloquei seus dois livros na estante do tempo.
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(*) Escritora e psicóloga, nasceu em Cataguases (MG), Brasil e vive em Lisboa. Autora de “Manhãs adiadas” (Contos, Ed. Dobra, SP, 2012) e “Para fugir dos vivos” (Novela, Ed. Patuá, SP, 2015), dentre outros.



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