sábado, 24 de junho de 2017

ORELHA


Esta coluna reúne "orelhas" de livros escritas por Menalton Braff.

Álbuns da Lusitânia*

Pois foi de lá, dos “saudosos campos do Mondego”, que um ancestral da família Figueira resolveu atender mais uma vez à vocação lusitana e atirou-se para o outro lado do oceano, tendo deixado a esposa grávida, para cumprir a sina de conquistar as terras.


E assim começa Raquel Naveira seu relato:

“Antigos álbuns de fotografia dormem sobre as prateleiras. Sou a curadora desses álbuns, a guardiã da família, a única para quem essas imagens significam um tesouro de recordações, vestígios do passado, respingos de sangue na árvore genealógica, respostas para enigmas, sinais na pele, lágrimas de saudade.”


Ah, não fosse a poesia e a memória da humanidade seria toda ela cinza, e curta, e insossa. Os álbuns da família Figueira tiveram a sorte de encontrar na quarta geração uma poeta “para quem essas imagens significam um tesouro de recordações.”

Estes álbuns de fotografia são o resultado de muita pesquisa, muitas conversas com velhos sentados em alpendres, por onde o tempo ameaça não passar. Neles se misturam fantasmas do passado com o
que há de melhor e mais relevante na poética em língua portuguesa, pois a história de um país, de uma região, mas a história a cores, só é revelada pela literatura. E a Raquel, poeta no hábil manejo da língua, também o é na visada que lança sobre o mundo, e em particular sobre o passado e o presente dos ramos que partem da figueira, e crescem, e se esparramam, com todos os seus vícios e virtudes.

Álbuns da Lusitânia é um livro de memórias que se imbricam com muita pesquisa. No primeiro capítulo, já encontramos: “Quando Amália Rodrigues morreu, no dia 06 de outubro de 1999, vô José
tinha partido. Acompanhei o noticiário em lágrimas,

lembrando dele, lembrando de quando dançava ao som dos fados, segurando as pontas da saia e ele me chamava de Minha borboleta.” E é desta maneira que vão fluindo as recordações da família enredadas nos fatos da terrinha, que com tanto carinho a autora traz à cena.

É muito fácil perceber, neste texto de alguém em cujas veias corre uma mistura de sangue lusitano, apesar da mistura com o sangue guarani, o quanto pesam as tradições, os costumes, o pensamento, os valores d’além mar. A história, desde o heroico Viriato lutando contra os invasores romanos, a literatura, com várias citações de Camões e Fernando Pessoa.

Não há exagero algum em afirmar que Raquel Naveira, como memorialista, descende diretamente da linha de Fernão Lopes, cronista de-el rei D. Duarte, que viveu dos fins do século XIV até meados do século XV. Há duas características comuns aos dois cronistas. Tanto Raquel Naveira, como já havia sido com Fernão Lopes, assume em primeiro lugar o compromisso com a verdade. Nos dois, nem os fatos escabrosos são omitidos. A história da sogra que foge com o genro, deixando a filha no desamparo para criar seu neto, é exemplo do quanto o compromisso com a verdade pode cortar fundo.

Mas lá como cá, os recursos da literatura são postos a serviço do registro do passado. A prosa de Raquel Naveira não nega, pelo contrário, reforça com muitos vestígios sua origem na poesia.

Veja-se o parágrafo abaixo:

“Não deve ter sido difícil para a bisavó Maria José ficar sozinha, grávida, em Portugal. Terá sido antes, natural. As mulheres portuguesas se acostumaram a se despedir de seus filhos, pais, amantes, maridos, que iam em barcos negros singrando pelos mares misteriosos. O olhar português sempre foi voltado para o mar e para o descobrimento de novas terras. Por te cruzarmos, quantas mães choraram,/ Quantos filhos em vão rezaram!/ Quantas noivas ficaram por casar/ Para que fosses nosso, ó mar.”

Ao definir-se, eis o que declara a autora:

“É certo, sou Penélope: leal com os que amo, mesmo se querem me matar. Enquanto creio e espero, vou suportando, vou tecendo tramas, fios de memória e desejo, intrigas e enredos. Ao invés de lã e linha, uso tinta, papel, rabisco palavras, impressões, estranhos ideogramas que parecem bordados. Sou Penélope, uma mulher política, que toma decisões pela razão, lutando por uma herança, um legado para o filho, uma porção da ilha de Ítaca. Sou Penélope, uma mulher com seu estratagema de sobrevivência, seu jogo de arte, a cabeça curvada sobre a roca, ninguém vê o meu semblante enquanto fio.”

Como uma das grandes virtudes destes álbuns que Raquel Naveira nos oferece pode-se citar o caso dos fatos relatados que nunca se apresentam sem suas consequências, sem o efeito causado nas personas que os vivem. Penetrar até o fundo da alma de cada uma das fotografias que a autora vai folheando, de lá arrancar os verdadeiros significados, aqueles que são envolvidos pela paixão da existência, eis o desiderato de Raquel Naveira.

E por fim, desfila ante nossos olhos a construção da cidade de Campo Grande. Suas primeiras ruas, seus prédios de um tempo já perdido, as lojas, as residências, a violência daquela época de formação.

“Aqui havia a história da família Figueira que veio de Portugal para o sul de Mato Grosso, a história da cidade de Campo Grande que eles ajudaram a construir, a história do projeto de sangue que me gerou.”


No último álbum, Motivo, assim vai encerrando seus registros a autora: “Dentro de mim estão os meus antepassados, os meus descendentes, as raças todas, a terra inteira.”

E logo a seguir: “Por que esse fascínio de reencontrar os Figueira, de medi-los, tocá-los e cheirá-los na carne?” Pergunta que fica sem resposta. Mas então parte para o período final: “’Sou a guardiã dessa família’”, admito enquanto fecho as capas marmoreadas dos álbuns.”


Em um país de tão fraca memória, em que tão pouco se pratica o registro do passado, Raquel Naveira surge como uma estrela de brilho próprio, pois construiu um texto de leitura extremamente prazerosa ao falar de Portugal, de Campo Grande e da família Figueira.

Álbuns da Lusitânia
Editora Alvorada
2012

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