sexta-feira, 21 de julho de 2017

CONTOS CORRENTES

Estranho homem vindo no vento*
(Caio Riter**)

            As roupas no varal ventavam em formações de partes de gentes desconjuntadas. Vento forte não antes visto — e, no repente, surgido — por aquelas paragens ainda governadas pelo desejo do Coronel Boaventura, que ia dando forma à casa de dois pisos lá para a entrada da vila, uma légua, mais ou menos, da praça da igreja. Um dia isto mudaria, mas naquele dia de ventania despropositada assim ainda o era. Quentume de vento não afeito àqueles dias de julho. Sopro que rodopiava a terra vermelha e tornava-se ardência nos olhos de quem nada esperava destes ares quentes em dias de feitura de frio. Janelas e portas no fechado para livrar porcelanas e outros mais dos filetes de poeira ensolarados.
            Maria Ana, no disparate de saia erguida, coxas brancas à mostra, pernas não mais tocadas por homem desde que o marido caiu do cavalo, cabeça batida em pedra, homem vegetal em cama de
lastro de couro, findando-se devagarinho, sob seu olhar de mulher desejosa, até dia de amanhecer gelado. E a mulher que o viu morrer era agora saída para o pátio no arrebanho das roupas que já eram enroladura no varal.
            — Elisa, ia pedindo ajuda para a filha pequena em seus dez anos, Elisa, era insistência e repetição, vem que a mãe tá precisada. Vento desgramado!
            A voz, perdida em ares de cabelos soltos e roupas no varal e no corpo, desalcançou a menina que ninava boneca de pano tecida pela avó em Natal esquecido na memória. Maria Ana foi desistência ao ver raio que rachou o céu sobre o morro. E o sol. Ainda a resistir, desacreditado, ele também, que a chuva pudesse ser trazida pelo vento. Esquecida da saia, pernas desnudas, entregara-se à colheita das roupas quando viu. Primeiro, a sombra de homem e cavalo, ao longe, fundidos. Depois, os foi separando: o cavalo, o homem. No mais, as mãos paradas. O homem. Ele ali, no bem perto, à distância da palavra. E nem bem fala era, voz rouca, vinda do dentro, o vento serenava. Brisa leve a voejar folhas tornara-se. Raios, só no bem distante.
            — A senhorinha sabe indicar lugar onde gente possa comer e dormir?
            Homem grande. Maior ainda sobre o animal. Peito se alargando pela camisa entreaberta. Sem pêlos, vazio. Os olhos de um preto de breu de noite de inexistência de lua e de estrelas. Homem nunca visto por ali. Estranho homem, desejoso de pousada e de alimento. Homem para cometer pecado, pensou Maria Ana, já no esvaziamento daquilo que se fazia sentir. O homem riu.
            — A moça é surda ou nada conversa com gente não destas bandas?
            Viu-se sorrindo também ela para o homem de peito aberto e olhos de perdição.
            — Não sou surda não, é que.
            A mão, no aponte, interrompendo revelação. A voz a indicar a taverna do Tonho.
            — Gracias, ia o estranho no voltado, quando ela, sem saber razões, e, no mais tarde, arrependendo-se muito do feito, o homem já de costas, foi dizendo:
            — Meu nome é Maria Ana.
            Era palavra e surpresa. Disfarce em roupas apegando-se, rosto afogueado, olhos do homem fugidos. Cavalo no retorno, dedo em toque no chapéu, foi ele falando:
            — Bonito nome, repetiu, Maria Ana. E a menina que por entre cortinas espia? Sua filha?
            Maria Ana voltou o rosto. Olhos na menina, jeito de susto na busca da decifração de mistério, a espreitar o estranho.
            — Filha minha. Elisa.
            — Bela como a mãe.
            Depois foi se apartando, ia na direção do apontado, e talvez soubesse que a mulher, cujos olhos o acompanhavam, seria sua, caso assim ele quisesse. E quando Maria Ana entrou com as roupas, esquecida era do vento tão singular em seu bafo quente e sua violência. Seu pensar era só para o estranho.
            — Quem era o homem, mãe?
— Um estranho. Recém chegado.
— Que queria?
— Desejoso de informação.
— Vai pra onde?
— Pra taverna do Tonho, creio.
— Será que vai ficar por aqui?
— Não sei, não sei.
E antes que revelasse à filha seu desejo de permanência do homem trazido pelo vento, se pôs a dobrar as roupas secas.
— Te chamei pra me ajudar, andava onde?
— Brincava com a boneca.
— Ajuda a mãe agora, então. Dobra estas roupas.
— Chuva ameaçou vir. Nada veio não. Só vento.
— E mesmo assim já se foi.
Deixou Elisa na sala. Enveredou para o quarto, corpo jogado na cama, o rosto do homem estampado em qualquer parede para a qual ela olhasse. Sobre o cavalo, peito liso de pêlos, peito forte de homem que sabe dar afagos. Suspiro profundo. Voltaria ele? Voltaria, tinha de voltar. Homem grande. Se chegasse, nem seu nome talvez quisesse saber. Queria-o assim mesmo, mergulho em olhos de escuridão.
— Já dobrei tudo.
Era Elisa na porta do quarto:
— A mãe tá doente?
— Leve dor de cabeça, mentiu.
— Quer que faça um chá?
— Não, Elisa, vá brincar, vá, a mãe tá bem. Antes vem cá, dá um abraço na mãe.
A menina aproximou-se e sentiu o calor materno. A mãe queimava.
— Tá com febre, mãe?
            — Não, filha, não é nada, logo passa, só preciso ficar quietinha, só isso.
            Quando a menina saiu, silenciosa, para não acordar a mãe que julgava adormecida, Maria Ana sentiu uma falta, um desejo enorme de proteger sua pequena. Medo de esquecê-la para desejar o estranho, talvez.
            — Meu Deus, como pode? — disse para si mesma, os ouvidos atentos para um trotar de cavalo que passava. Não, não parara, não era ele. A estas horas devia banhar-se na taverna. O corpo todo livre das roupas ofertava-se à água e, quem sabe, pensasse nela. Bonito nome, dissera. Corpo de homem também gosta de afagos de água morna, feito mãos de mulher. A água entrando em toda e qualquer dobra daquele homem vindo sabe-se lá de onde. Seria só de passagem ou vinha para o sempre? Intrigada em pensamentos ficara, só despertada pelo grito de Elisa que anunciava a chegada da avó.
            Maria Ana se ergueu, passou mão no vestido. A noite invadia o quarto pela janela. Teria dormido, tanto tempo passado e ela nem notando, só imersa nos olhos negros do homem sem nome? Escutou a voz da menina a informar a avó que a mãe Tá doente de dar dó, toda doentinha, quentinha feito sol ao meio-dia. Sorriu, tentando espantar o rosto do homem, precisava voltar às lides, a janta necessitava dela. E foi ao fechar a janela que viu: lá estava ele, meio parado sobre o cavalo, perto da árvore que escondia o caminho na curva. Era ele, sim. Era ele. Os olhos parados a fitarem a casa. Se não colocasse a mão no peito, sentia que o coração dispararia. Correu para a sala, um boa noite pra sogra:
            — Maria Ana não tava doente não?, foi a velha dizendo, olhos arregalados ante a rapidez da outra que se atirava porta afora.
            — Tenho que arrebanhar as galinhas, que ainda não fiz, foi mentindo, e já é noite.
            No pátio, corrida até o portão, olhos lançados para o lado da árvore. Era ele sim, lá na curva, em cima do cavalo, talvez receoso de chegada pelo avistado da velha. Que desejo de acenar, gritar: Vem, vem. Pode se achegar que eu careço muito da sua vinda. Mas e coragem? Era ela, por acaso, mulher de oferecimentos? Sempre honrada fora. Difícil fazer-se dadivosa. Do portão ao galinheiro, confirmação desnecessária de galinhas presas, vassoura carregada para dentro, novo olhar antes para a curva. Ele não mais lá. Mas voltava, sabia ela, senão para que a espionava assim? Ele também, quem sabe, desejoso. Entrou, o peito aliviado na certeza de que o homem de olhos escuros voltaria.
            — Viu passarinho verde? – era a velha quem perguntava, enquanto trançava o cabelo de Elisa.
            — Vi é nada. Noite escura de esconder até a alma.
            — E o que foi a ventania? — foi assuntando a avó. — Minha netinha teve medo não?
            A menina negou com um pequeno movimento de cabeça preso entre as mãos da avó. Maria Ana, vassoura encostada na parede, porta fechada, chaleira posta a ferver no fogão: — Como veio, assim se foi.
            — Vento de desgrameira, só pode. Quando ele vem assim, traz desgraça junto dele.
            — E pode? — Maria Ana pensava no homem trazido pelo vento. Podia homem feito de lindeza e desejo trazer alguma coisa ruim? Podia não.
            — Mas claro que pode, sentenciou a avó, e não mexa a cabeça assim, Elisa, senão as tranças ficam tortas. Menina de trança torta não arruma casamento. Fica solteirona.
    Quero não, vó. Quero não.
A noite foi vagar. Luz de lampião aceso, vez que outra a mão deslizando pelo rosto da menina que ressonava desconhecedora do bater no peito da mãe que era meio descontrolado. Tentava o rosto do homem esquecer, mas não. O rosto, as mãos firmes segurando as rédeas, dominando o cavalo. O peito nu de pêlos como ela ainda não tinha visto em homem feito homem, peito de menino. Ele era viril e aquela ausência estranha de pêlos a atraía. A barba por fazer, o chapéu a cobrir os cabelos quase pelos ombros. Homem não visto. Lembrou a sogra a pedir que não esquecesse tranca na porta, Esses tempos não são de tranqüilidade, enquanto olhava a nesga de luar que enveredava cozinha adentro. Elisa a dormir no quarto e ela ali, toda insone.
Abriu a porta, saiu. Pés descalços sobre a terra árida. Escalou o portão, os olhos erguidos para o céu, contava estrelas. A escuridão desenhava sombras: a árvore da curva de onde ele a olhara. O tempo que ficou ali, desconheceu. Talvez tivesse até dormido ou estivesse tão distraída que o coração disparou ao ouvir o relincho. Madrugada era, de sol a quase nascer. Vindo do outro lado, como se viesse do rio, o trotar. Voltou-se apenas quando sentiu que ele estava bem próximo, ao alcance da palavra. Voltou-se ao ouvir seu nome naquela voz rouca.
— Maria Ana.
Não disse nada, só ficou a olhá-lo. A mão que lhe passou pelos cabelos, deslize pelo rosto há muito de homem não acarinhado. Maria Ana, ele disse de novo. E desceu do cavalo, e tomou-a nos braços, e deitou-a no pouco de relva que a terra vermelha permitia; mãos desfazendo-se de roupas, o peito desejado cobrindo o seu, a boca que a buscava, as pernas se entrecruzando, ela toda dele.
— Maria Ana.
— Te esperava, disse ela.
— Eu sei, — sussurrou-lhe dentro do ouvido. — Não há riscos?
— Sou sozinha.
— E a menina? Elisa, não?
— Dorme lá dentro.
A boca na boca, a boca nos seios, no ventre. Ela a revolver-lhe os cabelos, a beijar aquele peito, unhas a marcarem as costas fortes, foi toda entrega. E cansaço. Olhos abrindo no sol que em seu rosto batia, ouvidos a escutarem a canção do trotar do cavalo em afastado. Ergueu-se, cobriu-se e, nervosa, ria da desfaçatez. Entrou, fogo fez para água de mate preparar, pôs a mesa. Voltou para o quintal, galinhas soltas para milho ciscarem. Era outra agora, sentia Maria Ana.
A água chiava quando a Elisa resolveu chamar. Nada de filha na cama. Onde a danada? Chamou: Elisa, filha? Venha comer, já tá adiantada a hora. Repetiu: Elisa? Nada da menina. No quarto só a boneca atirada no chão. Saiu para o pátio novamente, era grito, quase desespero: Filha, filha! As pernas tomando a estrada, rumo à casa da avó.
— Não nada da menina. Por que, Maria Ana, onde a menina?
— Meu Deus!
Na cabeça uma idéia se fazendo, idéia que ela queria tentar conter. Mas explicação outra não encontrava. Corrida até a taverna do Tonho. Estava lá ainda o homem de olhos de mistério? Nem nome dele sabedora era.
— Não, disse o velho taverneiro, não me pareceu homem de muito pouso, se foi ainda no final do dia, só banho e refeição fazendo.
— Se foi pra onde?
— Não me diga que era parente seu, dona Maria Ana?
— Foi pra onde? Rondou minha casa, roubou minha filha.
E bastou ser palavra para que a certeza se fizesse: levara sua Elisa. Meu Deus, me diga pra onde ele foi.
— E eu sei? Homem que nem aquele deve andar se esquivando de tudo e de todos, ainda mais se fez mesmo isto que a senhora tá dizendo. Quem sabe busca ajuda do Coronel.
— E tenho tempo, antes que desgraça se abata?
Saiu correndo, ia em direção ao rio, na esperança de que coração de mãe jamais se engana, de que ele sempre sabe a direção onde seus rebentos se encontram quando perigo há. Precisava chegar a tempo, precisava resgatar a sua filha. Os pés não sentiam pedra nem espinho, e, se sangravam vez que outra, nada diminuía a marcha da mulher. Se um pássaro cantava, ruído qualquer que fosse, seu ouvido tudo sabia. Não fora trazido pelo vento agora mesmo um lamento de Elisa? Não estava ela a pedir pela mãe e a voz rouca a dizer que a estava levando para casa? Se o ar trazia aquelas vozes, distantes não poderiam estar.
— Um homem, alto, forte, sobre cavalo. Uma menina junto dele. Clara, olhos claros, chorosa, perguntou ao mascate que cruzava seu caminho.
— Uma meia légua à frente. Iam devagar, o homem contando história de príncipes e princesas. A menina chorosa.
Nem agradecimento fizera, as pernas mais ágeis se fazendo. Queria só ser encontro e salvação. Quase se dissolvia em dor e angústia. E o tempo, impiedoso, a correr mais que ela. O ar era pouco, pulmões esgotados, pés doloridos, riscos de sangue brotados não impedindo o prosseguimento. Corria. Que mais poderia além de correr e chamar pela filha, não grito, gemido quase choro: Elisa, Elisa. Ah, Elisa.
No silêncio da noite que se estendia ao peito, bem no lá dentro, sentiu a presença da filha. Sabia ela logo ali, ouviu até o bufo do cavalo que conduziu aquele estranho homem, agora perverso, até sua casa, naquele tarde de vento. Respirou fundo, aproximou-se com vagar, era mulher que se preparava para tudo, precisada de calma era, e da força de todas as mães na defesa de seus rebentos. Espreitou entre o mato, a menina agarrava-se a si mesma, rosto iluminado pela fogueira. O homem, sem camisa, estendia panos sobre capins em arremedos de cama. E aquele peito de pêlos nu nunca fora tão amaldiçoado.
— Quero a casa minha.
Era a filha se fazendo pedido. O homem nada disse, apenas aproximou-se da menina. Tocou-lhe o rosto, passou a mão pelos cabelos, deslizou-a pelo corpo que Elisa tentava esconder e tocou-a no seu maior segredo. Ela chorou alto, afastou-se. E que dor tomou conta de Maria Ana ela jamais saberia dizer; e por que seus cabelos tornaram-se assim, num repente, brancos feito os lençóis que estendia no varal, também jamais explicaria; e de onde tirara força para correr, feito fera traiçoeira, mão buscando na sela do cavalo algo que brilhava, faca bem afiada. Olhos de raiva a mirar o homem:
    Se tu toca nela de novo, infeliz.
Palavra parada na ameaça. Riso naquele rosto que de monstro parecia tornado.
— Ciúme da menina? Que isso, Maria Ana.
— Abre, abre essa boca podre e eu te arranco todos os dentes, desgraçado. Vem, minha filha, vem.
Se o homem tivesse pensado, se tivesse sabido compreender o sofrer daquela mulher, se entendesse que era uma mãe que estava ali a resgatar a filha, não teria estendido a mão para último carinho em Elisa tocar. Bastou um golpe, assim, sem nenhum pensar, e o grito de fera mutilada se fez ouvir e assustou o cavalo na noite que calou: dedos do homem caídos ao chão e ele, olhos de pavor, na tentativa de ajuntado.
    Sobe no cavalo e vai. No nunca mais retorne.
A filha abraçada em suas pernas e o trotar do cavalo sumindo de seus ouvidos. Já meio da noite era. Lâmina solta no chão para que suas mãos e seus braços e sua boca pudessem ser só afagos, queria com as lágrimas lavar a imagem daquele homem de pecado. Abraçou a filha como nunca antes o fizera, tomou-a no colo e afastou-se sem olhar para trás.
O vento que movia os brancos cabelos da mãe retomava o frio do inverno.

*Conto originalmente publicado no livro Vento sobre terra vermelha, Editora 8Inverso, 2012.

**Caio Riter nasceu em 24 de dezembro, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. É Bacharel em Comunicação Social - Habilitação em Jornalismo, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS, e licenciado em Letras - Língua Portuguesa e Literaturas, pela Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras - FAPA/RS; é Mestre e Doutor em Literatura Brasileira, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É professor de Língua Portuguesa e de Redação. Ministra oficinas literárias de narrativa e de Literatura Infantil. Tem mais de quarenta obras publicadas e transita entre a literatura geral e a infantojuvenil sem cerimônia.  



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