sexta-feira, 22 de setembro de 2017

CONTOS CORRENTES

ÍRIO E OS ANIMAIS


 (Nei Duclós)


Ela não era bonita. Tinha o aspecto quadrado, retaco, mas não aparentava nenhuma brutalidade. A pele morena e clara, com alguns respingos de luz no ombro, expunha o vestido decotado e discreto. Havia tristeza na boca vermelha de batom, suavizada pelo contraponto de um olhar ovalado, quase enorme, e decidido. Írio, absorto na parada do ônibus, achou que a mulher queria falar alguma coisa. Notou pelo jeito e se colocar em posição de sentido, braços juntos ao corpo, a mão esquerda segurando a bolsa de napa marrom, semi-nova, e a direita espalmada na coxa. O vestido rosa desmaiado, com listas brancas, tinha marcas de um forro discreto, presente na altura do busto e na cintura.

Ela deu um passo para frente e abordou Írio, que já estava há uns vinte minutos esperando a condução para levá-lo ao Juizado dos Menores. Era seu dia de plantão. Não costumava chamar a atenção de ninguém, pois tinha o tipo comum daquelas bandas: alto, curvado, magro, com um loiro de trigo bem clarinho no cabelo revolto. O
topete espigado era mais efeito do vento do que do espelho. Estranhou, por ser
invisível, a aproximação da mulher, que o cumprimentou com cerimônia, batendo duro com o salto alto do sapato preto.

- O senhor é o Írio, que trabalha com os menores, não é?
Ele concordou, estranhando a pergunta. Quem o conhecia naquele ermo, cidade perdida, a poucos quilômetros da capital do estado, mas a mil anos de luz de qualquer civilização? A mulher levantou os olhos, colocou a mão no rosto e exclamou:
- João Pedro está muito feliz.
Espichou a última sílaba no feliiiiz.
- O senhor lembra do meu filho, o João Pedro? (as sobrancelhas finas ficaram espessas com o olhar pesado). O menino que queriam matar, lembra?

Olhou para os lados. Não havia mais ninguém na parada. Claro que lembrava. O garoto espancado no ermo, por policiais que ele, Írio, teve de enfrentar num impulso. As cenas de oito anos antes vieram nítidas. Reconheceu a mesma mulher, que era outra no aspecto e na fúria: enfrentava meia dúzia de marmanjos, que tentavam segurá-la. Mordia, gritava, chutava, rolava no chão.
- É uma empregada doméstica. Veio procurar o filho, disse Tramóia, o policial gigantesco que ficava sempre na recepção.
- E acharam? perguntou Írio, levando um coice do policial.
- O vagabundinho está no papo, ô distraído. Já levaram o guri para o campo.
Írio tinha a cara de sonso. Aprendera a fazer aquele desenho no rosto, de tanto presenciar barbaridades. Sabia de vários casos de assassinatos a sangue frio, de preso queimado, de enterrados vivos, de carcereiros estaqueados ao sol de meio dia no pátio conflagrado. Mas insistiu:
- Qual campo?

O agente Masmorra passava por ali e carregou o perguntador pelo braço.
- Tu vem comigo, ô taquara, espanador da lua. Não sei o que tu faz com esse tamanho. Vara-pau, vou te mostrar uma coisa.
Ainda podiam ouvir o uivo da mulher, que exigia a devolução do filho roubado, quando se afastava na camioneta aos pedaços de Masmorra.

O descampado exibia uma grama uniforme e alguns tufos de árvores ao longe. Uma dessas aglomerações era um grupo de policiais, espancando um garoto de doze anos. Negro. Estava roxo na metade do rosto. O resto era sangue endurecido. Apanhava há horas, talvez dias.
- Por que estão batendo?
- Para dar o exemplo, disse Masmorra. Foi flagrado puxando fumo e ainda debochou dos policiais.
- Fumo de quem?
- Fumo limpo, nosso, é que não era. Tinha comprado de um delinqüente que veio de longe cheio de pasto. A gente conseguiu limpar o malandro, mas ele já tinha repassado para uns manés da vila Guilherme. Esse guri...(e Masmorra sacudia o dedo indicador como a decretar alguma lei eterna) esse guri tem que pagar o desaforo de comprar de gente desconhecida da cidade. E ainda por cima (uma cuspida para fora do carro, que foi longe), ainda por cima debochou, entende?

Írio não disse nada. Desceu do calhambeque e foi se aproximando da surra. Os outros policiais ficaram com a mão no ar, olhando o magricela que chegava com o rosto contraído.
- O que tu quer aqui? Vai cuidar dos teus advogados, dos teus superiores, dos guris que te chupam o pau, vai.
Ele parou e disse na boa:
- Vão matar o guri. Se matarem o guri, aproveitem o embalo e me matem também. Porque essa eu vou denunciar.
Gargalhada geral. O valente-surpresa era conhecido como o mandalhete dos policiais, trazia refresco, café, pão de queijo.
- Volta para o carro e te fecha, abostado.

Ele continuava de pé, na parada de ônibus. O drama lhe vinha inteiro na cabeça, cada vez mais claro. Só mesma a visitante aprumada e de olhar fixo poderia ressuscitar os fatos Procurara esquecer o acontecido, se recolher, porque ficara marcado. Depois de peitar os matadores, virou um vegetal de verdade na repartição. Ninguém lhe dirigia a palavra. Mas também, parece mentira, o temiam.

Decidiu não arredar pé até que o ultimo bofetão deixasse o menino semi morto no chão batido agora pela chuva. Estavam fartos e deram por encerrado o expediente. Possivelmente tinham escutado a ameaça. Era mais difícil se livrar do inoportuno do que de um garoto negro da favela. Antes de o último homem sair de cena, Írio agarrou-o pelo braço:
- Vê se devolve o documento do garoto.
O policial suspirou. Mas achou que não adiantava contrariar o funcionário, iria dar problema. Talvez fosse o novo queridinho do diretor, nunca se sabe. Pegou a carteira de identidade do bolso externo do casaco e jogou no chão.
- Pega se tu é homem. E tirou o revólver.
Írio olhou-o bem na fuça, se abaixou e pegou. Sacudiu o documento no rosto do outro e disse:
- Agora vão embora, devagar.

- Veja a foto que ele enviou, disse a mulher.
Era um homem de vinte anos, com o rosto pintado, sorrindo ao lado de uma turma de estudantes.
- Passou no vestibular, dizia a mulher espichando a última sílaba...aaaaar. Na Federal..aaaal.
E implodia num riso inexistente.
- Vai ser veterinário. Quer estudar os animais, animaaaais.
Írio só soube dizer:
- Fico feliz por ele...e pela senhora.

O ônibus já vinha vindo e Írio decretou o fim da conversa. Quando estava subindo, a mulher, que se preparava para ir embora (ela não estava esperando condução nenhuma) quase gritou:
- O senhor salvou nossa vida.

Salvou a vidaaaa, ecoava em Írio a confissão dita de maneira desesperada e ao mesmo tempo suave. Ele foi para o fundo do carro e ainda viu a mulher se afastando, com seu passo miúdo. Não era alta. Tinha o cabelo bem penteado, com uma fita vermelha, pequena, na parte de trás. Olhava para chão quando caminhava. Írio voltou-se para frente e todas as pessoas que aí estavam - aposentados, office-boys, garotas do comércio - o olhavam longamente, com o olhar sonâmbulo do povo desgarrado.

Olhavam para ele de maneira insistente, até que um senhor muito idoso, de cara muito murcha, veio se equilibrando no carro em disparada. O velho se segurou o quanto pôde, libertou a mão direita e pegou da mão de Írio. Depois se abaixou e beijou, trêmulo, a mão daquele homem que salvara vidas.

Foi tudo num instante. O velho desceu e Írio ainda via a cara do motorista no espelho, olhando para ele com os olhos cheios de água. Todos os gestos o embalavam e ele vestia uma túnica que seu gesto tecera ao longo de oito anos, e que lhe cabia como um pássaro na tardinha, um navio em dia de bonança, um avião em céu de brigadeiro.


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