sexta-feira, 17 de novembro de 2017

CONTOS CORRENTES

Dona Anita                
 (Alice Sampaio)

Era véspera de ano bom. Logo cedo, Dona Anita passou folhas de pitanga na casa pra varrer o ano velho. Minutos antes da virada, o trabalho tinha que ser repetido com alfazema, pro dia primeiro chegar com energia renovada.

A vida dela era assim: quando não tava fazendo comida ou lavando roupa, cuidava das coisas invisíveis que afetam lugares e pessoas. Fez isso desde pequena. Aos setenta e tantos anos, já nem sabia mais como tinha aprendido tudo aquilo. Talvez com a mãe, com a avó, ou com a vida.

Usava arruda pra espantar o mau olhado, ‘quebranti’ e ‘espinhela caída’. Noite de terça, a rua ficava lotada. A neta, Edineide, era quem organizava a fila. Sentada na balaustrada da varanda, anotava o nome de quem chegava e depois ia chamando, um por um. O povo esperava sentado na calçada. Tinha vez que dona Anita ia dormir às duas da manhã. Mas não reclamava.

Tarde de quarta, dia de Iansã, ela recebia gente com doença natural, pra curar por chá ou por banho. Quem organizava os pacientes na porta era o bisneto Josemar. Edineide não
podia porque trabalhava de cozinheira. Os outros seis netos também tavam no serviço.

Dava muita confusão. O menino inda não escrevia direito e tinha gente que se aproveitava disso. Uma vez a moça da padaria, que se chama Mariângela, foi passada pra trás. Josemar se atrapalhou e escreveu o nome dela como se fosse Maria. Não foi de má fé. O coitado não entendeu direito o resto das letras e teve vergonha de perguntar. Mariângela tinha sido a segunda a chegar, mas Maria entrou no lugar dela. Levou uns tapas da prejudicada, mas conseguiu se safar.

Dona Anita, que tinha uma natureza serena, nunca se conformou com aquilo. Mas não tinha jeito a dar. Se era de noite, tava tudo organizado. Edineide organizava a fila. Se era de dia, tinha que rezar pra confusão não ser grande com as trapalhadas de Josemar.     

Quem conseguia ultrapassar o tumulto da fila, recebia atendimento de primeira. Muito melhor que de noite. Dona Anita ficava mais tempo rezando, depois fazia o chá ou o banho, conforme a necessidade, e ainda ensinava as receitas pra pessoa repetir em casa. Tudo com calma e paciência. O modo dela de compensar a agonia da fila.

Fazia aquilo por dedicação, mas não recusava a ajuda que um ou outro quisesse dar. Se fosse dinheiro, guardava na lata, no fundo do guarda-roupa, pra ninguém cair na tentação de pegar. No fim do mês, raspava até a última moeda pra pagar uma conta secreta que ninguém sabia de quê.

O segredo fazia parte da vida de dona Anita. Uma vez por semana, na segunda-feira, ela passava a tarde fora. Não adiantava insistir. Era coisa que não interessava a mais ninguém.

Aquele dia, o da véspera, era uma quarta, mas não ia ter atendimento. Filhos netos e bisnetos tinham vindo de longe pra entrar o ano junto. Ao todo eram mais de 60, mas ali mesmo só tinha uns 25. A passagem tava cara pros que moravam fora. Mesmo assim, ela avisou que no café da noite ia dar um aviso importante. Ninguém podia faltar.


Esperou todo mundo acabar de comer. Levantou da mesa e comunicou que no ano seguinte, não ia precisar mais da filha e nem do neto pra organizar a fila da cura. Dona Anita tinha aprendido a escrever. 

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