segunda-feira, 12 de fevereiro de 2018

CARNAVAL LITERÁRIO 4

Chegamos ao quarto dia do nosso CARNAVAL LITERÁRIO. Desde sexta-feira estamos postando contos de Menalton Braff para os que não caíram na folia e também para os carnavalescos que conseguiram reservar um tempinho para ler entre uma farra e outra. O conto de hoje foi publicado no livro NA FORÇA DE MULHER.





Um dia, outro dia
                                                         
Tira o lenço do bolso e enxuga a testa franzida. Livra-se do vendedor de bilhetes com a pergunta irônica; Pra que eu vou querer isso? Não espera resposta. O relógio do mosteiro previne que já são nove horas da noite e uma espécie de urgência indefinível penetra pelas últimas janelas acessas. Se ao menos tivesse um convite, para algum lugar, qualquer companhia que o ajudasse a enfrentar as primeiras horas, que lhe afugentasse o medo virtual pelas situações novas até que o hábito erigido em árbitro voltasse a ordenar suas ideias. Uma aragem fresca espreita do alto dos edifícios. Chovidas marcas de festa apregoam, tardiamente embora, a chegada de outro ano. Outra vida? A imaginação obstinada e solerte sempre a prometer o futuro para eximir-se de obviar o presente. Em prumo precário Hipólito para na praça Antônio Prado, indeciso entre as tantas alternativas de direção. Se ao menos um convite, qualquer um, afinal não é todo dia que um homem se aposenta.

Possuídos de fúria insensata, seus dedos agridem-se num corpo-a-corpo de ferocidade inexplicável. Uma casa amiga, uma sala simples, a palavra de um velho parente. Um lugar. Hipólito olha em volta, procura fingir-se ocupado, uma razão para estar ali. O Martinelli ainda engradado para a viagem das
reformas. Alguns poucos transeuntes de passo rápido e rumo sabido, com destinos definitivos. Apesar da hora, o intenso rumor de todos os motores ligados. Na banca, as manchetes embaralham-se improvisando ilógica coreografia.

Mascando emanações de uísque, Hipólito finalmente decide: não entrará pela São Bento para esperar o ônibus na praça do Patriarca. Desta vez não. Desta última vez. O evento exige rupturas, cometimentos diversos. Sorri autocomplacente com a manifestação infantil daquela rebeldia: novamente aventureiro e desbravador. Enfim, o círculo a se fechar. Outra vez a disponibilidade para dispensar-se das repetições, para atrever-se às diferenças. Poderia aposentar o relógio, dormir à sombra, comprar jornais, andar de chinelos, deixar de escovar os dentes, dar gorjeta ao cobrador, cumprimentar a balconista, debruçar-se no peitoril da janela, fritar o bife, recitar um poema, tomar a cerveja. Isento, outra vez, das responsabilidades.

Muita simpatia dos colegas, oferecerem a festa de despedida: enterro de antigos rancores, de avulsas quizilas inevitáveis no transcurso de tantos anos. Durante o expediente, seu último, já deposto sem posto, o cargo transferido ao jovem substituto, impossível imaginar. Às seis e meia, cumpria o ritual de trinta e cinco anos – guardar os papéis nas gavetas, lavar as mãos, pentear-se, vestir o paletó, despedir-se – quando o Arnaldo apareceu: sorriso franco e bom, bigode abundante, olhos diminutos por detrás de grossas lentes. Problemas na agência?} Não, muito tarde. A princípio julgara ato isolado e até certo ponto explicável: o Arnaldo teria vindo da Mooca despedir-se do remanescente da velha guarda. O primeiro abraço, talvez o último. Ao vê-lo chegar tão inesperadamente, só com esforço Hipólito contivera a emoção. Merecera, então, aquela viagem, a carinhosa lembrança do amigo? O sorriso incrédulo e o nó na garganta. Naquela tarde ligara várias vezes para a agência e, como não o tivesse encontrado, deixara recado sem muita esperança.

Rarefeita a clientela noturna, o vendedor desdobra-se em solicitude.

− Alguma revista, doutor?

Sem responder, vira-lhe as costas, confuso, e maquinalmente foge pela rua São Bento. Assim o mundo eriçado, a convivência com a espécie: a indecisão de um homem não lhe pertence, nem sua momentânea falta de destino. Pilhado em dúvida, Hipólito não olha para trás. Caminha como se já soubesse aonde ir, tivesse o que fazer.

Tomando-o pelo braço, brandamente, o Arnaldo guiara-o para a sala de reuniões. Cavaqueação entre velhos amigos, melhor sentados. Ele também, mais dois anos, cumprindo seu tempo. Queria saber.
− É, meu caro Hipólito, dentro de dois anos o Banco perde o último dos moicanos – dissera enquanto andavam e um pouco antes de abrir a porta – e assim se refaz o mundo. Há muita gente precisando de emprego, não podemos ficar atrapalhando.

Aberta de vez a pesada porta de carvalho, estourara o coro: “Hipólito é um bom companheiro.” Fisionomias alegres, a longa mesa coberta pela toalha branca, os litros de uísque estrangeiro, os baldes de gelo, a conversa animada, as bandejas de canapés, o riso florido, o perfume das flores, a festa imprevista, sua festa de despedida. Desafeito ao brilho, às manifestações ruidosas, embaralhara-se com as mãos, um pouco, sempre o excesso. Sentira-se comovido, mas desagradavelmente deslocado como alvo de tamanho carinho.

Presentes à despedida, os principais do segundo escalão e suas vistosas secretárias; os empedernidos chefes de seção, cabeleiras grisalhando, rivais de outras épocas; uns poucos mketeoros de fulgurante carreira, conhecidos de corredor, de olha lá,k é aquele. Entre estes, o doutor Lucas, pós-graduação no Alabama, teórico exaltado, título e exaltação ostentados com orgulho a cada momento no cultivado sotaque, hoje completamente esquecido. Quando de seu regresso, ingressara na organização como Diretor Adjunto por ser parente, desencadeando o despeito de uns tantos candidatos apenas profissionais. Pois o futuro Presidente – o velho virou ornamento – em mangas de camisa, regendo o coro, batendo palmas, adestrando-se em democráticas atitudes.

Tudo, menos tomar um ônibus ali na praça do Patriarca. De esguelha espia o ponto, a fila na espera, e segue em frente, vitorioso, e morosamente caminha até o largo São Francisco. Passa o lenço na testa, entra no bar e pede uma caipirinha. Nos olhos, a satisfação e a malícia do contraventor. Dois lustros desde a última vez em que fizera o mesmo. Hoje por alegria; então, para anular o travo deixado pela recusa de Anita. O tempo, só o tempo, mesmo. Uma semana a supor-se incapacitado para a sobrevivência, aquela opressão da vida rasgada.

No balcão, gente que bebe e ri, conversa indiferente ao vizinho que fora abraçado com efusão pelo doutor Lucas de Almeida e Castro. O moleque pede-lhe uma esmola, cobra insistente, em casa a mãe na cama. Pega a cédula e esconde-a no bolso. Da calçada ainda olha com desconfiança. Há muito que não acredita em papai-noel.

Hipólito afrouxa o nó da gravata, tranca a respiração e bebe de um gole a caipirinha. Paga e arrepende-se. Acabava de jogar fora o pretexto para ganhar alguns minutos antes de se decidir. Agora a rua, o rumo, a necessidade de fingir-se a caminho. Atravessa o largo, imponderável, passo leve, o calçamento afundando, ficando pra baixo, e alcança a Brigadeiro Luís Antônio. Acende um cigarro, isqueiro de ouro entregue pelo Gerente Regional da Região Centro. Em nome de meus companheiros. A brisa que sobe a 23 de Maio, irrequieta e úmida, suaviza a tontura e carrega a primeira fumaça. Amplia-se o céu, abre-se o mundo. Anos e anos sem olhar para cima, observar uma estrela, sem recordar a infância livre nos baixios do Ribeira, os possíveis parentes que por lá ficaram; sem um retorno, uma busca, um caminho extraviado. Pressente o lirismo chegando, mas não reage, não se envergonha. Está solto no início de um tempo ilimitado e seu desejo é deixar-se carregar pela imaginação entorpecida, permitir-se tudo o que as conveniências proibiam. Dá mais uma tragada, joga longe a bagana acesa e começa a assobiar desconexa melodia. Quer provocar, ter certeza de que o julgam louco, precisa de perigos que o incitem a penetrar em todos os mistérios. Imagina-se no meio da Brigadeiro, correndo por entre carros desgovernados, gritando palavrões a motoristas medrosos. Nos olhares uma só pergunta: Quem é ele? E no silvo do vento, a resposta: Eis o que da festa veio.

Terceira dose de uísque e a gravata do doutor Lucas dobrada sobre o espaldar de uma cadeira. Camisa aberta, corrente no peito. Nunca visto assim animado, a não ser em ocasiões muito especiais. No derradeiro instante, uma deferência, intimização defesa ao funcionário? Cumprimentos e abraços efusivos. Uma pessoa da mais alta importância. Lágrimas quando o Arnaldo, gerente da agência da Mooca, para quem ainda não o conhece, proferiu palavras, falou do passado, levantou o brinde. Um novato propusera pique-pique, puxando; o diretor ali sem gravata, sem luxo qualquer, como os outros e até mais. Os de paletó e gravata ameaçaram escandalizar-se, isto aqui não é jardim-da-infância, mas submeteram-se a exemplo superior e acabaram gritando o rá-tim-bum. Quem mais gritava e ria era o jovem substituto: recém-formado, recém-casado, recém-promovido, completamente enamorado pela vida, pois não conseguia imaginar-se aposentado – coisa estranha, ideia remotíssima. O doutor Lucas terminara de mastigar o canapé e, abotoando a camisa, pedira silêncio. Um discurso oficial, em nome do conceituado estabelecimento de crédito. Ainda bem que o Arnaldo chegara-se para ouvirem juntos. Qualidades e esforço para galgar um a um os degraus. Só mais dois anos e então sua vez, o último dos moicanos. Sozinho seria difícil suportar tantos olhares. Trinta e cinco anos, exemplo de dignidade que enobrece, a profunda gratidão desta casa. Todos sérios respeitosos. Em meu nome e em nome de meus colegas de diretoria. Restos de uísque aguado nos copos sobre a mesa, ar toldado pela fumaça, calor, as vistas ardendo. Porque a humanidade o Brasil e o mundo. A grandeza, os jovens, a conjuntura. No topo do pódio a honrar sua memória. A funcionária chegara com o pequeno estojo com o distintivo para terno de missa e solenidades. O primeiro que temos a honra de entregar. Com toda a certeza, outros mais virão. O Arnaldo apertara significativamente seu braço, logo ele. As palmas, o abraço de tapas nas costas do representante.

− Enfim, o fim.

O farol abre, estrugem os carros, Hipólito para. No outro lado da avenida, a luz clara e o balcão de fórmica da lanchonete lembram-lhe a fome. A noite começa a esfriar. Apalpa o distintivo guardado no bolso quando ainda na XV de Novembro. Enfim, o fim. Por que o fim?

Ocupa a mesa mais afastada. A claridade é excessiva e incomoda. Senhor Hipólito de Alencar, esta casa estará sempre de portas abertas. Em trinta e cinco anos a dedicação à nobre causa do engrandecimento. Enfim, o fim. Do quê? Mas o que é isso!teelo sorriso do diretor. Por que o fim? Do discurso, da utilidade, da vida? Fora de escárnio, gratidão, ou piedade aquele sorriso? Força a mente, aturde-se na tentativa de captar o verdadeiro sentido. Pede hambúrguer e cerveja, qualquer marca, tanto faz; penetra a sombra de signos irrecuperáveis – nenhuma denúncia nos gestos, pouco ou nada na enxurrada incolor dos lugares-comuns. Sempre de portas abertas. Pela porta aberta o frio introduz a noite na lanchonete, decreta a falsidade da iluminação. Hipólito procura distender as pernas, move os artelhos doloridos. Trinta e cinco anos. Carteira Profissional com as datas e os títulos, assinaturas de várias cores. Sua história. Termina de comer o hambúrguer e limpa os lábios com o guardanapo de papel. Espera que o garçom acorde e pede outra cerveja, porque ainda não sabe o que fazer de sua primeira noite e a ideia de encerrar-se no apartamento, por enquanto, o atemoriza. Bem nítida e presente a sensação de que fora tudo inútil. Lambe a espuma da cerveja no bigode. Pelo menos uma verdade no discurso do diretor: sua dedicação. Verdade casual, entretanto, pois entre ambos nunca houvera maior contato. E parcial, porque o certo seria acrescentar que sublimara todos os impulsos para dedicar-se ao trabalho com tirânica exclusividade.

− O senhor deseja mais alguma coisa?

Sobressaltado Hipólito recorda-se de que há muito esvaziara a terceira garrafa e percebe que apenas por sua causa a lanchonete continua aberta. Aperta o nó da gravata, levanta a gola do paletó e sai.
Ir para casa? Não, ainda não. É muito cedo. Se ao menos um convite, lugar qualquer onde encostar o corpo, refletir, ou companhia com quem conversar, ouvir.

Criança ainda assumira um posto dentro da ordem geral, pela qual não se julgava responsável, sem questionar, mas dentro da qual consumira toda a capacidade de sonhar. De repente, colocado à margem como estorvo, arredado, tendo de enfrentar sozinho sua disponibilidade, um tempo sem medida, seu todo tempo, sem horizontes marcados, é peso que terá de retardar quanto possível. Chegar ao apartamento, acender as lâmpadas, tingir com alguma vida as paredes da sala, da cozinha, do quarto. Arrancar às profundas da imobilidade seu território: com passos macios, com o frêmito do fogo no fogão, com o pigarro, a fumaça do cigarro, o ruído de sua respiração. Um dia, outro dia, e outro, intercalados sempre pelas noites intermináveis. Não, ainda não.

A iluminação compacta da Paulista, seus edifícios medonhamente adormecidos, a inexistência de qualquer movimento, lembram uma tumba surrealista. Hipólito atravessa a avenida e desce quase correndo na direção do parque Ibirapuera. O posto de gasolina fechado, as sombrias janelas, o grito distante, o apito inconsequente, o assobio vagabundo, a medir a inconsistência dos trajetos entre a vida e a noite. O mundo oscila inconstante, subitamente mergulhado em ansiedade. Hipólito estaca e, apoiando-se em um muro, aperta com fúria as pálpebras abrasadas. Não pode continuar, se trilha por caminho sem retorno. Também não pode ficar onde não é princípio nem fim, depois de trinta e cinco anos. A entrega, tantas vezes a anulação. Para quê? Para ter a recompensa de uma despedida com uísque e o abraço final de um diretor?  Um ônibus sobe vagarosamente pela avenida. Suas janelas vazias e alegremente iluminadas aquecem um pedaço reduzido da noite. Claro que não. Trabalhara por necessidade de sobrevivência, nada mais que isso. Os pés latejam. Hipólito senta-se numa saliência do muro e limpa o suor frio da testa. Mas vivera em função de que, se a vida fora ela toda consumida no trabalho e se trabalhara por necessidade de sobreviver? Vivera, afinal, meramente em função da necessidade de viver? Vivera meramente mera vida.

No fim da Brigadeiro, a amplidão. Hipólito respira a madrugada, cadenciadamente, com volúpia e sente que a vertigem vai passando. Umedece as mãos na grama orvalhada enquanto observa um casal de namorados que nada mais têm a temer, tendo-se um ao outro. Poderia cumprimenta-los, indagar de suas vidas, interessar-se pelas suas razões. De mãos dadas, poderiam atingir o infinito, onde a mesa já posta os aguardaria para o banquete. Falaria, ouviria, e suas desventuras seriam compartilhadas como carga que se pode dividir. Levanta-se, e um esgar de sua boca pretende ser o riso do amanhecer, mas falta-lhe a coragem para o gesto da comunhão.

Com o princípio da garoa, resolve-se a tomar um táxi. De que adianta fugir, se o caminho é sem retorno? As horas não serão mais contadas, e os dias serão sucessão sem conta, sem nome. Ergue o braço, embarca e indica o endereço. Encolhido no banco de trás, descobre pelo retrovisor o olhar curioso do motorista a devassar-lhe os segredos. Quantas noites em seu aspecto, quantas vidas em sua decadência? Nas costas, depois de tanto tempo, pressente manchas vermelhas deixadas pelas mãos do diretor para que jamais ouse o esquecimento.

Na esquina, a padaria aberta, o padeiro bocejando. Caixotes empilhados no caminhão do feirante, que passa adernado. Quarteirões desertos, ruas estreitas por onde o carro embala a custosa vigília de Hipólito. Um desejo vago de que a viagem não tenha fim. Fecharia os olhos, como outrora, e sua mãe viria quietamente puxar os cobertores. O corpo engelhado, entretanto, dói-lhe e faz-se uma presença da qual não poderá escapar.

Na frente do edifício o táxi encosta na guia e para. O motorista comenta alguma coisa sobre a garoa enquanto espera pelo dinheiro. Hipólito não responde. Suas mãos tremem, é véspera de decisão.

− O senhor está se sentindo bem?

− Está tudo bem, sim, muito obrigado. Eu estou ótimo.

Já na calçada, sozinho, Hipólito reluta, porque o vazio é também prisão. A expectativa da manhã seguinte, a certeza de uma escrivaninha, o espaço para a assinatura, o término do relatório, a exposição de bons motivos, a desculpa, o insulto, a licença, o preenchimento, os mil detalhes que o haviam ligado a um mundo absurdo, porém conhecido, ficariam apenas em sua memória desencantada. Apalpa a chave no bolso, acende um cigarro, tosse, e resolve partir ao encontro do dia.
*

  (Este conto faz parte do livro Na força de mulher, meu caderno de aprendiz)

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