terça-feira, 13 de fevereiro de 2018

CARNAVAL LITERÁRIO 5

Desde sexta-feira até a quarta de cinzas, estamos postando contos de Menalton Braff para os que não vão cair na folia e também para os carnavalescos que tiverem um tempinho entre uma farra e outra.

O conto escolhido para hoje está publicado no livro  À SOMBRA DO CIPRESTE - livro do ano do Jabuti 2.000 (1ª Edição da Palavra Mágica  /  2ª Edição da Global)

O voo da águia 
Quando ele me agarrou pelo braço (manchas roxas, ainda, de seus dedos magros) e me puxou
dizendo preciso conversar com alguém, os primeiros letreiros de néon começavam a piscar dentro de seus olhos opacos. Então tive o pressentimento de que a noite em breve estaria vertendo do manto da garoa fina que esfumava as altas silhuetas dos edifícios no centro da cidade. Gesto brusco, um safanão: meu susto. É uma ponte, é só uma ponte, ele repetia enquanto me empurrava para dentro do bar. Apesar de trêmula, hesitante talvez, sua voz escura não admitia resistência, pois subia-lhe das regiões viscerais, onde tudo é urgente e inapelável. Entrei me perguntando de que recanto esquecido da minha vida surgiam agora aqueles traços familiares que descobri por baixo de tanta ruína.
As garrafas de cerveja vazias sobre a mesa e o cinzeiro transbordante eram os vestígios deixados pela tocaia de longas horas acontecida naquele canto de sala. A vida e os transeuntes, por certo, tinham desfilado desapercebidamente por trás das sujas vidraças da janela que dava para a calçada. A
princípio não entendi o movimento de sua cabeça, mas, como insistisse, deduzi que me indicava a cadeira onde eu deveria sentar. Ele acendeu um cigarro - lábios secos - espantou com a mão o rolo de fumaça que lhe escondeu a cabeça e me fixou com seus olhos fartos de ver. Só então consegui arrancar do passado, e aos pedaços, o que me restava do Aquiles. Aquiles! Notícia nenhuma do Aquiles desde os tempos em que teve de abandonar a escola. Minha surpresa deve ter-lhe causado algum mal, porque o sorriso com que me respondeu, sardônico, não passou de um repuxo que lhe deformou a boca e de um leve apertar dos olhos. Esperou em silêncio que eu me refizesse do susto e me encarou novamente. Então, isso é que é a vida?, ele me perguntou irritado e continuou a me encarar, cobrando uma resposta.
Acuado, consultei o relógio. Aquiles aproveitou para pedir outra cerveja, o dinheiro, olha, o dinheiro agora não importa mais, e jogou um maço de notas amarrotadas sobre a mesa.
Era em bares assim que, à noite, depois das aulas, nos embriagávamos de cerveja e de sonhos. Há quanto tempo não entrava mais num bar? Não me lembro bem por quê, mas acreditávamos que a humanidade precisava de nós, e estávamos dispostos a salvá-la com nossos discursos exaltados. Ofereceu-me um cigarro, que não tive coragem de recusar. Sabe, Aquiles, a vida, e não avancei, com medo de que a banalidade do que diria irritasse ainda mais meu amigo. Ele me pedia uma ponte, e eu mal firmava meus próprios pés no chão. Procurei no relógio uma razão que me tirasse dali, mas o bar já estava escuro demais e o ar quente e denso escorria pelas lentes de meus óculos. Desatei o nó da gravata e emborquei de um gole a cerveja do copo que ele teimava em manter cheio. Uma ponte. Que ponte, se minhas margens, soltas as amarras, navegavam todas à deriva! As prateleiras com suas garrafas cobertas de pó começaram a oscilar, e a lâmpada vermelha, aos pés do dragão, latejava entre teias de aranha e um galho seco de arruda. Há quanto tempo?
- Rastejei minha vida toda, agora chega.
Agora chega, ele ficou repetindo cada vez mais baixo, enquanto sacudia a cabeça, negando, preciso acabar logo com tudo isso, e sua voz me pareceu apenas a sombra de sua voz, a outra, como um pensamento sem necessidade de ouvinte. Me dei conta de que o trânsito, às minhas costas, não estava mais congestionado, pois há muito não ouvia o clamor nervoso das buzinas. Esfreguei com violência um guardanapo de papel na testa e nas mãos. Por que aquela sensação de calor, se nas veias o sangue estava congelado? As manchas eram nítidas e Aquiles não tentava escondê-las. Talvez eu as pudesse remover com a mão, se tentasse, mesmo assim continuei calado, porque a noite viera confirmar meu pressentimento, sem me revelar, no entanto, o que elas significavam.
Tendo repetido várias vezes acabar logo com tudo isso, submergimos exaustos numa profunda lagoa de silêncio, durante o qual Aquiles, a cabeça pendida e os olhos parados, movia desvairadamente os lábios desbotados e febris. Circundado na parede por um exército de garrafas empoeiradas, o santo-guerreiro subjugava o dragão, mas não conseguia evitar que ele continuasse expelindo suas chamas. Aquilo sempre, uma luta sem solução?  Pensei em me levantar, em fugir daquele ambiente para respirar a noite úmida. Apenas pensei. Qualquer movimento meu poderia provocar um desenlace imprevisível. Respirei fundo, relaxei os ombros e me ajeitei melhor na cadeira.
Já estava preparado para uma longa espera, quando, subitamente e de olhos incendidos, Aquiles arrojou o corpo sobre a mesa e, segurando-me pelos pulsos, perguntou então, você acha que vale a pena continuar, apesar de tudo, você acha que vale a pena? E me sacudia os braços, seu nariz adunco bem próximo de meu rosto, responde, você acha que alguma coisa vale a pena? Da margem sombria e açoitada pela tormenta, ouvi o apelo do barqueiro, porém, atônito, não descobri de onde vinha aquela voz.
Suas garras foram aos poucos afrouxando até libertarem meus pulsos. Aquiles ainda me olhou por alguns instantes, mas já não via nada, porque em seguida deitou a cabeça sobre os braços estendidos na mesa e pouco depois tive a certeza de que dormia. Levantei-me com cuidado, ergui a gola do paletó e saí finalmente para enfrentar a garoa.

Só na manhã seguinte, após a leitura dos jornais, fiquei sabendo que Aquiles, naquela mesma madrugada, alçara vôo do alto de um edifício.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças