sexta-feira, 23 de março de 2018

CONTOS CORRENTES

Má educação
(Matheus Arcaro)

Ensinar é aprender duas vezes.
(Joseph Joubert)

As faixas confeccionadas no sindicato, menos de um quilômetro da sede do governo estadual. Apitos, bandeiras, megafone. O discurso não precisava de ensaio, vinha cravado na pele do peito: anos sem reajustes dignos, aumento da carga horária, fechamento de escolas. E esta história de censura em sala de aula? Professor não pode doutrinar, vejam só! Estes burocratas que nunca pegaram num giz, que vão pra casa do caralho, disse Osvaldo aos que o ajudavam a escrever o cartaz. Antes de saírem, Sérgio, líder do movimento, alertou, somos a parte da corda que sempre arrebenta. Basta um pretexto pra eles virem pra cima da gente. Mantenham-se unidos, sem violência. Mas sem covardia.

Soldados enfileirados feito alunos obedientes escudam o Palácio dos Bandeirantes. O sol dá sinais de cansaço quando a marcha de professores se aproxima. Vandalismo é fechar escolas, Sou responsável pelo futuro do Brasil, Greve geral, frases que tremem nos cartazes. A indignação vazando pelas vozes, todas em sincronia.  Dirão os dados da PM, escarrados elegantemente nos telejornais, que havia três mil manifestantes. Protestos marcam o dia dos professores em São Paulo, discurso semelhante ao do estudante que se vangloria da nota 10 que conseguiu devido à cola. A multidão a poucos metros do cordão de isolamento. Sérgio se aproxima, aponta para a bandeira bordada na farda, acima do peito: ordem e progresso. Estamos no mesmo barco, parceiro. Não quero saber de barco nem de porra nenhuma, só quero ordem! Pra que
gritar, acha que somos bicho? Bicho, a gente fala e eles obedecem. O líder dos professores se aproxima mais do policial, poucos centímetros. O policial empurra Sérgio e solta três tiros para o alto. Ordem, porra!

Bombas gritam, pessoas gritam. Osvaldo corre, pernas zonzas, milhares de pernas em transe. De relance, ele vê pisoteado o cartaz que ajudou a escrever “Verás que um filho teu não foge à luta”. Não era Osvaldo um dos que mudaria o Brasil? A fumaça traga a avenida. Nervosas balas de borracha entre as cabeças desviantes. Lágrimas tombadas graças à química e à dor no espírito. Estilhaços de futuro espalhados pelo asfalto. O verde e o amarelo transformados em vermelho escuro, quase marrom. Tropa de choque. Armas de choque. Onde está o país de sorrisos e abraços dos comerciais da TV? Osvaldo corre, corre e para. Não tem para onde ir. Atrás dele, muro. À frente, um homem alto, farda cinza, capacete branco, olhos verdes. Aqueles olhos verdes. 

Primeira aula, ética. Osvaldo fez um panorama de Aristóteles a Sartre. Professor, será que não fazemos o que fazemos por que sempre fizemos assim? Será que a moral não é um monte de mentiras repetidas muitas vezes?  Osvaldo olhou bem para os olhos verdes, a esperança de que havia vastidão no avesso daquele menino. Qual é seu nome? Marcelo. Há pensadores de calibre que concordariam com você, Marcelo. Na semana seguinte, filosofia política. Hobbes. Somente um Estado autoritário é capaz de controlar o homem que, por natureza, é egoísta. Mão esticada, professor, não concordo! Acreditar que existe uma essência humana e, ainda por cima, que ela seja cruel, é reduzir as possibilidades do ser humano, não? Acho que nós somos aquilo que escolhemos fazer. E assim foi durante o curso. Metafísica, estética, linguagem. Participações que avolumaram a aula e a alma de Osvaldo. Muitos cafés nos intervalos. Dicas de leitura. No fim do ano, um abraço e um punhado de frases que se aninharam num Obrigado por me ajudar a refletir, mestre. De nada, Marcelo. Você vai longe!

Os olhos verdes empurram Osvaldo contra o muro. Por alguns segundos, só os dois na avenida. O policial franze as sobrancelhas ao ler a frase na camiseta de Osvaldo. E contrai ainda mais os músculos do rosto ao ouvir seu nome saindo da boca de onde dois anos antes saíram nomes como Platão, Maquiavel e Rousseau. As respirações em coito. Os olhos se encontram e duelam até que Marcelo cede. Desculpe, mestre! Foi o que disse antes de descer o cassetete nas costas de Osvaldo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças