(Sada Ali)
A matraca
açoitava, reproduzindo estalos idênticos e monótonos. O braço musculoso do
homem – anos de destreza, cintilava sob as gotículas do suor da faina diária.
Sobreviver sangrava, flagelava o mundaréu de ossos desconjuntados do pobre que
arrastava pés e pernas já cansados da vidinha-de-meu-deus. Cada passo um
esforço; e carregar a matraca agregava outro suplício. Mantê-la na posição
vertical, tortura. Acachapa a fraqueza e a arrasta, já sem tanta galhardia. Se
roupa rota teria que coser com linha de saco pra rasgo remendar, farrapo de
gente nada a reparar – sopesava no resto de miolo bom dum cérebro já cozido
pelo quentume do sol.
Meus ouvidos
se abriam e a boca salivava. A casquinha de biju era o meu biscoito mais
querido. Para infortúnio dos que podiam bancar, sobrava um tanto no chão ainda
maior do que o naco retido em suas mãos diria afortunadas, ricas; arriscaria
até nobres. Desdito alheio, mas para mim o único tempo de provar daquela gostosura
que, como a matraca, reverberava em minha mente petiz. Ribombava. Atordoava. Insistia.
Ecoava. Fome. Tinha
fome. Desde que Romualdo, o caçula dos dez filhos de minha mãe nascera, eu vivia com fome repartindo o quase nada com o peste que, ainda faminto, sempre conseguia abocanhar tanto mais.
fome. Desde que Romualdo, o caçula dos dez filhos de minha mãe nascera, eu vivia com fome repartindo o quase nada com o peste que, ainda faminto, sempre conseguia abocanhar tanto mais.
E a fome
insalubre, leviana e devotada, não se arredava.
Sentia a
fome em todos os poros e órgãos. Sentia-a como a luz atravessando a escuridão
do vácuo: intensa e indomável em suas partículas virtuais flutuantes que
surgiam e desapareciam para atestar o princípio de que o vácuo pode ser tudo,
menos um vazio repleto de nada. Seu estômago era um nada, vazio de tudo.
Três
gerações ali representadas. Três promessas. Corpos deplorados como o desarrimo
daquele pedaço de mundo de terra lavrada e sem produção, de água parada na
ribanceira seca do que fora um afluente; de mandacaru, de umbuzeiro, de
catingueiro, de xique-xique, únicas sombras do dia já que o céu era uma coisa
só de ponta a ponta, de leste a oeste, de norte a sul: insistentemente azul, enfadonhamente
azul. Mortalmente, azul.
O sol
causticava queimando corpo, vitalidade, vida. Ele continha a ira, a gula, o
desejo assassino, a dolência, flutuando continuamente sobre aquela efemeridade
desnecessária. Cacimbão secara, capim minguara, farinha acabara. Vaca sem teta;
quem dirá leite pro mingau? Aceiro inútil. Mata e coivara há muito queimara.
Bodegueiro nada mais cedera. Comer, coisa rara!
Na moita de
quixabeira o carcará espiava. Assuntava pelo momento certo. Sons. Torturantes
sons de silêncio ensurdecedor, que tendo captado todo ruído ao redor sugava
também as energias, consumindo-as, alimentando-se do que restara naquele
sorumbático mundo de fome, de cores abrasadoras e vivas. O som ao redor. O mundo
ao redor. As luzes ao redor.
O carcará se
fora. Desaparecera com muita pressa e sem nenhuma presa. Também tinha fome. Com
ele, o último sinal de vida avistado no horizonte. E o silêncio volvera.
Um feixe de
luz ainda insiste em exibir a desolação ao redor recaindo sobre a carcaça do
que fora Rudnei. Sentia saudade dos pelos negros e longos, da cauda farta, de
seus latidos, de seu nariz úmido e gelado cheirando suas pernas, pulando em
suas saias; dos olhos amarelos e sempre ternos. Olho de gente. Saudades até o
dia em que a fome de Rudnei tornara-se maior que ele que: ensandecido, passara
a rastrear casebre, terreiro, atacar as patas da Malhada, debruçar-se sobre os
últimos pintos e tudo quanto pudesse simbolizar um naco de grude em sua boca
lisa, de dentes já curtos de tanto roer as madeiras ressecadas dos troncos sem
vida. Rudnei também secara.
Secara como
a terra. Mas não o permitira ser devorado pelas rapinas que circundavam o
horizonte, olho em tudo que fosse passível de ser deglutido. Resguardara forças
e cavara buraco. Sete palmos feito gente. Rudnei era gente até no nome. A terra
recobrira pele e osso. Se as chuvas viessem, ali plantaria um ingazeiro.
Beberia do sumo de Rudnei.
O olho
inunda e chove. Chuva, apenas nos olhos. O sol continuava a pino. Os músculos
da face, dormentes e dolentes, colando couro ao osso. O sorriso murcha na pele
sem viço. O nariz ainda resfolega, reclama e clama com uma urgência de meter
medo, mas resiste bravamente, deixando escapar apenas algumas gotas d’água.
Relembra do
pai que, ao findar das tardes achegava a casa, sempre soturno, vez ou outra um
tanto de farinha, outro de açúcar, um punhado de feijão e outro de fumo de
corda. E a garrafa da pinguinha. Sem ela não podia sustentar a dor. Alquebrado,
extenuado, disperso de si, renitente passageiro do além, esperando o perene. A
desgraça certa; no seu caso em particular, jamais desventura, mas consolo. Ela
calada, sentada à soleira, consumindo-se em dores de adulto, esquecendo-se da
puerilidade da sua infância, divagando em solidões e medos e derrotas e
desesperanças; ou esperando as ocorrências de um cotidiano com gosto de
azinhavre. De água parada, de comida amanhecida. De tapioca murcha, dura e
ressequida.
O pai
placidez, servidão e mansidão. Enganava a todos. Menos ao próprio! Menos ao
músculo que pulsava e coordenava as fronteiras do ir e vir das veias. Esse era
seu. A ele poderia decantar todas as vicissitudes. Chegava calado num silêncio
tão impenetrável, tão seu. Um refúgio interno, um dique pronto para explodir se
tocado. Ninguém ousava. A mãe calada, os nove irmãos absortos em roncos de
barriga olhavam apenas às mãos do pai. Teriam algo pra cobrir parte da dor que
profanava os corpos magros, mirrados, raquíticos em suas mortalhas humanas?
Exceto ela. Ela media seus olhos. Chorariam? Exibiriam as lágrimas naquele
rosto chupado e macambúzio? Mas ele, imóvel imaginando – confessara-lhe tempo
depois, se pudesse a sua história recomeçar, se um dia houvesse nova chance.
Praquela vida, mais nenhuma disposição.
Ainda sob o
efeito daquele silêncio, mas ao mesmo tempo querendo solapar todo o momento,
pergunta: Pai, quer sentar? E ele cuspia um não. Torto como o sorriso enviesado
e rude. Quero morrer! Em sua sabedoria havia o entendimento de que sua morte
não alteraria a permanência das coisas, mas alijaria de si toda a dificuldade.
Olho de esguelha contemplava o horizonte, o casebre de madeira carcomida e de
vácuos preenchidos com argila. De picumã no telhado, lenha no fogão, de bocas
murchas, barrigas vazias, olhos fundos, cabelos ressequidos e sem vida. Como a
vida deles se esvaindo feito nuvens no céu. Ele era de anil.
Voltava o
olhar alhures e nada mais parecia lhe render a atenção. Nas noites em que suas
mãos algo continham, acocoravam-se em círculo: correção de formigas com começo,
meio e fim. Pratos limpos, lambiam as migalhas que ainda resistiam nas mãos pra
deleite: manter na boca o gosto bom do sal, da farinha, da vida.
O pai no
terreiro, sugando cada tragada, expelia fumaça elíptica do fumo de corda,
espirais mais densas que a força da cerração nas manhãs orvalhadas. A fumaça
atenuava sua expressão condescendida de pensamentos retomados com nenhuma
urgência.
Definhar: verbete
de luta inglória, de resultado sempre lúgubre. A fome seguia murchando vidas,
bulindo sonhos num inferno que não poderia ser pior que o vivido.
* Sada Ali
nasceu em Barretos. Escritora desde sempre, concebeu Helena e Vitória (de sua
obra
bipartite “Perfume dos Laranjais”) por 10 anos. Lançou
“Perfume” em Barretos, Ribeirão Preto, Uberaba e São João del-Rei/MG (vencedora
de edital da UFSJ), além das Feiras do Livro Caminhos da Leitura e da Fliporto,
em Olinda/PE. Ainda lançou em Florianópolis (Livraria Catarinense) e em São
Paulo (Bienal, Livraria Cultura e Casa das Rosas). No exterior,
sua obra esteve na 107 Foire de Paris, na França e London Book Fair (Londres, Inglaterra),
além de lançamentos em Portugal. Pelo
Ministério da Cultura, Sada esteve presente no Espaço Evasion e nas Festas Consulares
de 2013, em Lyon. Comanda
canal on-line de entrevistas com autores independentes, o Ponto de Leitura TeVeLê.
Coordena essa antologia solidária.
Muito obrigada por me permitir participar!!!
ResponderExcluirSada Ali