sexta-feira, 20 de abril de 2018

CONTOS CORRENTES

Matraca e Carcará 
(Sada Ali)

A matraca açoitava, reproduzindo estalos idênticos e monótonos. O braço musculoso do homem – anos de destreza, cintilava sob as gotículas do suor da faina diária. Sobreviver sangrava, flagelava o mundaréu de ossos desconjuntados do pobre que arrastava pés e pernas já cansados da vidinha-de-meu-deus. Cada passo um esforço; e carregar a matraca agregava outro suplício. Mantê-la na posição vertical, tortura. Acachapa a fraqueza e a arrasta, já sem tanta galhardia. Se roupa rota teria que coser com linha de saco pra rasgo remendar, farrapo de gente nada a reparar – sopesava no resto de miolo bom dum cérebro já cozido pelo quentume do sol.

Meus ouvidos se abriam e a boca salivava. A casquinha de biju era o meu biscoito mais querido. Para infortúnio dos que podiam bancar, sobrava um tanto no chão ainda maior do que o naco retido em suas mãos diria afortunadas, ricas; arriscaria até nobres. Desdito alheio, mas para mim o único tempo de provar daquela gostosura que, como a matraca, reverberava em minha mente petiz. Ribombava. Atordoava. Insistia. Ecoava. Fome. Tinha
fome. Desde que Romualdo, o caçula dos dez filhos de minha mãe nascera, eu vivia com fome repartindo o quase nada com o peste que, ainda faminto, sempre conseguia abocanhar tanto mais.

E a fome insalubre, leviana e devotada, não se arredava.

Sentia a fome em todos os poros e órgãos. Sentia-a como a luz atravessando a escuridão do vácuo: intensa e indomável em suas partículas virtuais flutuantes que surgiam e desapareciam para atestar o princípio de que o vácuo pode ser tudo, menos um vazio repleto de nada. Seu estômago era um nada, vazio de tudo.

Três gerações ali representadas. Três promessas. Corpos deplorados como o desarrimo daquele pedaço de mundo de terra lavrada e sem produção, de água parada na ribanceira seca do que fora um afluente; de mandacaru, de umbuzeiro, de catingueiro, de xique-xique, únicas sombras do dia já que o céu era uma coisa só de ponta a ponta, de leste a oeste, de norte a sul: insistentemente azul, enfadonhamente azul. Mortalmente, azul.

O sol causticava queimando corpo, vitalidade, vida. Ele continha a ira, a gula, o desejo assassino, a dolência, flutuando continuamente sobre aquela efemeridade desnecessária. Cacimbão secara, capim minguara, farinha acabara. Vaca sem teta; quem dirá leite pro mingau? Aceiro inútil. Mata e coivara há muito queimara. Bodegueiro nada mais cedera. Comer, coisa rara!

Na moita de quixabeira o carcará espiava. Assuntava pelo momento certo. Sons. Torturantes sons de silêncio ensurdecedor, que tendo captado todo ruído ao redor sugava também as energias, consumindo-as, alimentando-se do que restara naquele sorumbático mundo de fome, de cores abrasadoras e vivas. O som ao redor. O mundo ao redor. As luzes ao redor.

O carcará se fora. Desaparecera com muita pressa e sem nenhuma presa. Também tinha fome. Com ele, o último sinal de vida avistado no horizonte. E o silêncio volvera.

Um feixe de luz ainda insiste em exibir a desolação ao redor recaindo sobre a carcaça do que fora Rudnei. Sentia saudade dos pelos negros e longos, da cauda farta, de seus latidos, de seu nariz úmido e gelado cheirando suas pernas, pulando em suas saias; dos olhos amarelos e sempre ternos. Olho de gente. Saudades até o dia em que a fome de Rudnei tornara-se maior que ele que: ensandecido, passara a rastrear casebre, terreiro, atacar as patas da Malhada, debruçar-se sobre os últimos pintos e tudo quanto pudesse simbolizar um naco de grude em sua boca lisa, de dentes já curtos de tanto roer as madeiras ressecadas dos troncos sem vida. Rudnei também secara.

Secara como a terra. Mas não o permitira ser devorado pelas rapinas que circundavam o horizonte, olho em tudo que fosse passível de ser deglutido. Resguardara forças e cavara buraco. Sete palmos feito gente. Rudnei era gente até no nome. A terra recobrira pele e osso. Se as chuvas viessem, ali plantaria um ingazeiro. Beberia do sumo de Rudnei.

O olho inunda e chove. Chuva, apenas nos olhos. O sol continuava a pino. Os músculos da face, dormentes e dolentes, colando couro ao osso. O sorriso murcha na pele sem viço. O nariz ainda resfolega, reclama e clama com uma urgência de meter medo, mas resiste bravamente, deixando escapar apenas algumas gotas d’água.

Relembra do pai que, ao findar das tardes achegava a casa, sempre soturno, vez ou outra um tanto de farinha, outro de açúcar, um punhado de feijão e outro de fumo de corda. E a garrafa da pinguinha. Sem ela não podia sustentar a dor. Alquebrado, extenuado, disperso de si, renitente passageiro do além, esperando o perene. A desgraça certa; no seu caso em particular, jamais desventura, mas consolo. Ela calada, sentada à soleira, consumindo-se em dores de adulto, esquecendo-se da puerilidade da sua infância, divagando em solidões e medos e derrotas e desesperanças; ou esperando as ocorrências de um cotidiano com gosto de azinhavre. De água parada, de comida amanhecida. De tapioca murcha, dura e ressequida.

O pai placidez, servidão e mansidão. Enganava a todos. Menos ao próprio! Menos ao músculo que pulsava e coordenava as fronteiras do ir e vir das veias. Esse era seu. A ele poderia decantar todas as vicissitudes. Chegava calado num silêncio tão impenetrável, tão seu. Um refúgio interno, um dique pronto para explodir se tocado. Ninguém ousava. A mãe calada, os nove irmãos absortos em roncos de barriga olhavam apenas às mãos do pai. Teriam algo pra cobrir parte da dor que profanava os corpos magros, mirrados, raquíticos em suas mortalhas humanas? Exceto ela. Ela media seus olhos. Chorariam? Exibiriam as lágrimas naquele rosto chupado e macambúzio? Mas ele, imóvel imaginando – confessara-lhe tempo depois, se pudesse a sua história recomeçar, se um dia houvesse nova chance. Praquela vida, mais nenhuma disposição.

Ainda sob o efeito daquele silêncio, mas ao mesmo tempo querendo solapar todo o momento, pergunta: Pai, quer sentar? E ele cuspia um não. Torto como o sorriso enviesado e rude. Quero morrer! Em sua sabedoria havia o entendimento de que sua morte não alteraria a permanência das coisas, mas alijaria de si toda a dificuldade. Olho de esguelha contemplava o horizonte, o casebre de madeira carcomida e de vácuos preenchidos com argila. De picumã no telhado, lenha no fogão, de bocas murchas, barrigas vazias, olhos fundos, cabelos ressequidos e sem vida. Como a vida deles se esvaindo feito nuvens no céu. Ele era de anil.

Voltava o olhar alhures e nada mais parecia lhe render a atenção. Nas noites em que suas mãos algo continham, acocoravam-se em círculo: correção de formigas com começo, meio e fim. Pratos limpos, lambiam as migalhas que ainda resistiam nas mãos pra deleite: manter na boca o gosto bom do sal, da farinha, da vida.

O pai no terreiro, sugando cada tragada, expelia fumaça elíptica do fumo de corda, espirais mais densas que a força da cerração nas manhãs orvalhadas. A fumaça atenuava sua expressão condescendida de pensamentos retomados com nenhuma urgência.
Definhar: verbete de luta inglória, de resultado sempre lúgubre. A fome seguia murchando vidas, bulindo sonhos num inferno que não poderia ser pior que o vivido.

* Sada Ali nasceu em Barretos. Escritora desde sempre, concebeu Helena e Vitória (de sua
obra bipartite “Perfume dos Laranjais”) por 10 anos. Lançou “Perfume” em Barretos, Ribeirão Preto, Uberaba e São João del-Rei/MG (vencedora de edital da UFSJ), além das Feiras do Livro Caminhos da Leitura e da Fliporto, em Olinda/PE. Ainda lançou em Florianópolis (Livraria Catarinense) e em São Paulo (Bienal, Livraria Cultura e Casa das Rosas). No exterior, sua obra esteve na 107 Foire de Paris, na França e London Book Fair (Londres, Inglaterra), além de lançamentos em Portugal. Pelo Ministério da Cultura, Sada esteve presente no Espaço Evasion e nas Festas Consulares de 2013, em Lyon. Comanda canal on-line de entrevistas com autores independentes, o Ponto de Leitura TeVeLê. Coordena essa antologia solidária.

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