sexta-feira, 20 de julho de 2018

CONTOS CORRENTES

O TRAVO AMARGO DA DERROTA*       

 (Hugo Rodrigues)

Chamava-se Ambrósio. Todos, porém, chamavam-no Ambrosão. O superlativo fazia-o sentir-se mais importante. Largo de ombros e de espírito, ia vivendo "como Deus é servido". Sua pele queimada de sol, quando suado pelo esforço despendido  em brandir o machado, assemelhava-se à cor e ao brilho do cobre. Era necessário derrubar o mais rápido possível toda aquela capoeira. Precisava transformá-la em carvão vegetal e este, em dinheiro. Há muito namorava uma espingarda de cartuchos, cano duplo, que vira em dia de feira em Camaçari. Era só o que faltava para a sua completa satisfação e sua alegria. A espingarda, ademais, dar-lhe-ia mais importância junto aos outros agregados da fazenda, carvoeiros como ele. Ajudaria, ainda, na alimentação dos inchadinhos, quando a caça fosse bem sucedida, e caça era o que abundava por toda vargem por onde o Rio Jacuípe serpenteava. Codorna, perdiz, nambu, paca, até lontra tem! Gostoso é descer o rio em noite de escuro, canoa levada apenas pela leve corrente, silêncio profundo, remo na popa servindo de leme e archote na proa atraindo a capivara! Bendito rio! Não fora ele e toda aquela gente já teria desaparecido de fome. Enquanto os homens, de sol a sol, ocupavam-se em transformar a riqueza florestal do lugar em lenha de metro e carvão vegetal, as mulheres, com suas redes feitas de barbante, mariscavam em busca dos camarões. As linhas postas nos poços mais piscosos do rio, de quando em vez traziam,
presos aos anzóis, bonitos crumatás, traíras ou curimãs. Neste dia, era só roubar um coco no quintal da casa grande e a moqueca estaria pronta. Amanhã seria outro dia.
Ecoava ao longe o grito característico de Ambrósio, anunciando a queda de mais um pau. Podia-se ouvir, também, de mistura aos trinados dos pássaros e guinchos dos sagüins, por sobre a galharia verde e frondosa da mata, o rítmico choque do machado ferindo a madeira. Depois de asserado, para que o fogo do roçado não passasse para o resto da mata, era chegada a vez de transformar as árvores em toros de 10 palmos. Estes, depois de arrumados, numa altura também de 10 palmos, eram presos por espeques laterais fincados no chão e amarrados na sua parte superior por cipós, evitando que os toros rolassem.
– Seu Luiz, pode mandar o caixeiro dar uma olhada no serviço? Humilde e na expectativa Ambrósio falava ao patrão. – Preciso de cachaça e feijoada para os colegas me ajudarem a arrodear e cobrir a cova. Depois é só botar fogo.
– Senta ali no banco da paciência que eu lhe atendo já. Ambrósio saiu do armazém e sentou-se num toro de biriba, chanfrado de dois lados, cujas extremidades apoiavam-se sobre duas pedras grandes e chatas, à sombra de um abacateiro, junto à cerca do quintal da casa grande. Era o banco da paciência. Sentavam-se ali os carvoeiros que não tinham serviço executado, à espera de que o português, dono da fazenda e do armazém, e de tudo, adiantasse alguma coisa por conta do trabalho por fazer.
– Peste! Portuga desgraçado. Resmungava Ambrósio, enquanto cortava o fumo de corda com um canivete, tendo presa aos lábios a mortalha de papel para cigarro que seria, pacientemente, preparado. – Ele sabe muito bem que trabalho há mais de um mês no roçado e, até hoje, não lhe pedi nada fiado! Vá ver que está aporrinhado porque vou tirar um saldo grande, se Deus quiser... e tocou com a mão direita a aba do chapéu de palha, em sinal de respeito ao nome sagrado.
– Ambrosão, vem cá. Só posso lhe adiantar uns CR$.500,00 em mercadorias... cachaça, farinha, fumo, feijão, jabá, sal, toucinho e alguns temperos. Serve?
– Serve, seu Luiz, e muito obrigado por sua confiança. Mesmo que passe dos CR$.500,00 eu queria levar também mortalha, fósforos, querosene e uns tamancos novos para ajudar na puxada do carvão quente.
– Está bem Ambrosão, mas vê se come menos e trabalha mais.
Montado em seu jumento Parrudo, lá se ia Ambrosão convidar os companheiros para, no sábado, ajudá-lo na cobertura da cova. Cova grande aquela! Nunca antes fizera uma tão grande! Mas era preciso que fosse grande. Tinha que tirar saldo. Não podia deixar de comprar aquela espingarda. E se desse uma chuvarada, com vento forte? Poderia perder todo o seu trabalho. Tinha visto diversas covas serem destruídas pelo fogo, lavrando solto, depois do vento, sempre à noite, arrancar o capote de terra que as cobre. Não há de ser nada... dormiria junto à cova, enquanto não assasse de todo. Socá-la-ia, de quando em quando, para que o fogo queimasse abafado, assando a madeira vagarosamente. A madeira é toda boa; só tem sucupira e biriba. O carvão vai ser graúdo e forte. É pena só ter Parrudo para transportar da cova para o ponto de apanha do caminhão do Portuga. Tangendo Parrudo com dois caçuás, carregaria um saco na sua própria cabeça. Eu agüento e os meninos ajudam. O pior mesmo é socar a cova. Sebastião perdeu os dois pés quando socava uma cova. O capote cedeu e seus pés penetraram no inferno de brasas. Teve sorte não ter morrido. A mulher estava perto e o socorreu. Boa mulher a do Bastião; deita com os companheiros para sustentá-lo.
– Ei, pessoal, o serviço está chamando! Só bebe quem trabalhar – gritava Ambrosão, arrancando enormes talhões de terra com a enxada de cabo curto, própria para aquele tipo de serviço. Três cortes firmes no chão, longe dos tocos das árvores tombadas, no quarto golpe, o talhão de terra cheio de finas raízes, com o manejo apropriado no cabo da ferramenta, subia na enxada para depois ser arrumado em torno da cova. À medida que o trabalho progredia, mais difícil se tornava, pois a enxada tinha que ser levada, carregando o talhão, à altura da cabeça. Quando um talhão se perdia, a gozação era geral no desgraçado que deixava cair a enxada.
– Tu nunca pariu não, infeliz?
– Estou com sede. Só molhando a goela! E lá se ia a garrafa de cachaça, passando de mão em mão, bebida pelo gargalo.
– Tira um samba, Ambrosão – gritou Valentim. Temperando a garganta, Ambrosão abriu o peito:
– "Eu não sou daqui - Sou do lado de lá
    Quem não tem  esprito -  Favor não cantá"
Estava dado início ao desafio, samba de improviso sem viola, com que Ambrosão e os demais carvoeiros faziam do trabalho o melhor dos divertimentos.
– "Eu tenho esprito - E vou lhe prová
    Que sua mãe me mande - A cueca que deixei lá"
A resposta de Valentim fez com que estourassem gargalhadas de gozação para cima do Ambrosão. E o samba prosseguiu animando o trabalho solidário.
Mulheres e filhos dos carvoeiros vinham chegando, saindo de todos os pontos da mata derredor do roçado, carregando palmas de ouricurí, que arrumadas sobre a cova de madeira, seriam cobertas de terra jogada de pá, para formar o capote. Furos laterais eram simetricamente deixados na cova para servirem de respiros. Posto fogo, agora era só esperar assar para depois puxar o carvão. Mas esperar de barriga vazia não dá jeito. Saco vazio não se põe em pé. O jeito é sentar no banco da paciência e apelar para o Portuga. Cova grande como aquela leva mais de uma semana para assar direito.
– Tu come demais, Ambrosão!
– A família é grande, seu Luiz.
– Deixa de fazer filho, seu besta.
– É a única diversão que tenho, seu Luiz.
A fria madrugada daquele dia ansiosamente esperado, encontrou Ambrosão, gadanho em punho, nu da cintura para cima, chapéu de palha, calçando tamancos novos, puxando da cova bem mais baixa, o carvão ainda em brasa. Sua mulher incumbia-se de borrifar água sobre as esparsas brasas espalhadas no enorme terreiro, adredemente preparado. Dois filhos pequenos carregavam água do Jacuípe próximo. Dois outros mais taludos cobriam com fina camada de areia, jogada com pequenas pás, os pedaços de carvão, para apagar renitentes labaredas. Apesar do grande cabo do gadanho, que o deixava a mais de 4 metros da boca da cova, era impossível evitar o terrível calor. E com a poeira quente a lhe queimar os olhos e pulmões, suando em bicas, Ambrosão pensava e trabalhava. Trabalhava e pensava.
– Que não chova, meu Deus – solta o gadanho e toca com a mão direita a aba do chapéu de palha – se chover facilita o trabalho, apagam-se as brasas, mas estraga o pulmão. E se as crianças se constiparem? Raras as que escapam, nesta região, de uma doença mais complicada. O velho Nascimento vive de fazer caixões e cangalhas. Mais caixões que cangalhas! A maioria, de anjos. Todo branco com alças de metal. Minha espingarda. Mais comida. Quem come não adoece. Toca para frente. Quem bota pobre para frente é topada. Valentim, negro gaiato. Antes do fim da tarde, o carvão em pequenas e separadas pilhas. Se queimar vai-se apenas pequena parte. Brasa escondida sob a pilha desgraça a vida de qualquer um!
Extenuado Ambrosão senta-se por pouco tempo na palhoça, onde dormira mais que uma semana, acompanhando de perto a enorme cova assar. Um trago de cachaça "para matar o bicho", um naco de jabá assado na brasa e um punhado de farinha no prato de barro. Água do abençoado rio sacia-lhe a sede depois do almoço. Restabelecida a força, montado em Parrudo, Ambrosão dirige-se para a casa grande. A preocupação lhe acompanha:
– Tenho que pegar a sacaria. Uma barrica, quatro latas. Duas barricas, um caçuá. Um caçuá, um saco. Um saco, CR$50,00. Porreta! Parrudo carrega dois caçuás de carvão, seco ou molhado, sem grande esforço e ainda sobrecarga ou um dos meninos entre os paus da cangalha. Jegue retado, bom de trabalho está ali! E tem mais. Para ele não tem tempo ruim. Come de tudo. Cascas de frutas, folhas verdes, folhas secas, capim, papel, o diabo! Valentim andou espalhando por aí que Parrudo tinha óculos feitos de arame e dois fundos de garrafas verdes. Quando o jegue estava de óculos, comia até as roupas das comadres estendidas nos coradouros na beirada do rio. Negro invejoso por causa da formosura do jegue! Depois da mulher e dos filhos, a maior fortuna era o jegue. Só tem um defeito: quando amua e se deita não tem cipó ou chicote que o faça levantar. Nem acendendo papel nas partes, ele se levanta! Mas também a gente tem que entender a veneta dos amigos. Paciência. Banco da paciência. Meu saldo. Minha espingarda.
– Quantos sacos vai levar, Ambrosão? – perguntava o português por trás do balcão ao ver o carvoeiro amarrando o cabresto do jegue numa das estacas da cerca do quintal da casa grande, dirigindo-se logo após para o armazém.
– Aí por volta de uns 180, seu Luiz – respondeu o atarefado trabalhador.
– Mas isto é a carga total do caminhão, Ambrósio – admirou-se o outro. – Desta vez você botou para quebrar!
– Vou pegar da sacaria guardada no depósito – avisou Ambrósio, movimentando-se para sair do armazém.
– Espera aí, rapaz. Aquela sacaria está velha, rompendo-se à-toa – argumentava o dono da fazenda.– É preferível que você leve a mais nova. Foi usada para embalar jabá. É de boa aniagem e mais resistente por causa da gordura entranhada.
Cumprida a árdua e cansativa tarefa de transportar e colocar, boca costurada com embira todos 180 sacos de carvão no terreiro, em frente ao armazém, local de apanha, era chegada a hora do acerto de contas. Botar a mão no saldo de CR$3.500,00.
– Hoje, cachaça e tira-gosto por minha conta – gritou feliz Ambrosão para todos no armazém.
Enquanto a cachaça corria solta, Ambrosão, abonado como estava, cuidou de comprar e colocar a farinha, carne, fumo, sal e a garrafa de querosene na mochila, entregando-a ao filho mais velho, para que, em companhia dos outros menores, fossem para casa. Adiantar a zorra do pirão, como costumava dizer.
Calção sem bolsos, feito de saco de farinha de trigo, sem camisa, sem mochila, cansado e levemente embriagado, Ambrosão era só alegria em meio aos amigos, apertando na mão direita as quatro notas de CR$500,00, remanescentes das compras e da merecida e justificada farra, reservadas para a sonhada espingarda. Tão sujas e amarrotadas estavam as cédulas que o negro Valentim comparou-as com "dinheiro de cego na porta de igreja". Negro atrevido!
Ambrosão tomou a "saideira", escarrou o catarro negro que lhe brotou dos brônquios e, antes de se despedir da turma, acendeu um charuto, regalia de balaio, saindo para o terreiro, onde estava Parrudo, amarrado na cerca ao lado do armazém. Soltando o cabresto, ao tentar montá-lo, a cangalha cedeu ao peso de seu corpo e quase Ambrosão leva um tombo. Notou, então, que a cilha estava folgada, por isso a cangalha correu. Retornou a cangalha para sua posição ideal no dorso do animal e tratou de soltar, de uma vez, a cilha de couro.Com a tira de couro numa das mãos, charuto à boca, foi obrigado a colocar as cédulas suadas e amassadas sobre um dos sacos de carvão, abaixando-se em seguida para pegar, sob o jegue, a outra ponta da cilha, com fivela, a fim de apertar a cangalha.
Babujando cascas de frutas e pequenos tufos de capim, cheirando a sacaria, indiferente ao arrocho da cilha que, com esforço, Ambrosão parecia dividir a barriga do jegue em duas, Parrudo abocanhou as cédulas e passou a mastigá-las.
– Ambrosão, o jegue está comendo o seu dinheiro – gritaram a uma só voz os estarrecidos carvoeiros.
– Meu Deus – espantou-se Ambrosão sem se lembrar de levar a mão ao chapéu, na reverência habitual quando pronunciava aquele santo nome. Segurou firmemente com a mão esquerda a orelha de Parrudo, batendo com a direita fechada sobre o osso duro e largo da testa do animal. Rodopiando ferozmente, arrastando Ambrosão pelo terreiro, derrubando sacos de carvão empilhados, animal e homem, em luta desesperada, levantavam imensa poeira. Luta desigual, numa reviravolta mais violenta, Ambrósio foi jogado contra a cerca e as farpas do arame laceraram-lhe as carnes e com a dor, escapuliu-lhe a orelha de Parrudo, que desembestou porteira afora com a cangalha entre as pernas, na direção do pasto, caminho do rio.
Da porta do armazém, o negro Valentim berrava:
– Parrudo virou Caixa Econômica! Êta jegue retado!
As gargalhadas dos carvoeiros, insensíveis à má sorte do companheiro, feriram mais fundo que o arame farpado!
Apoiando-se na estaca da cerca, sangrando nos braços e pernas, mão inchada de esmurrar o jegue, Ambrosão levantou-se lentamente do chão, onde momentos antes estivera esparramado, sentando-se no banco da paciência e, quase chorando, balbuciava:
– Meu Deus, que faço agora?
A galhofa implacável continuava:
– Dê um purgante de sal grosso para o jegue, Ambrosão, que ele bota trocadinho o que engoliu inteiro – arrematava Valentim, fazendo sucesso.
Travo amargo de derrota na boca, imagem viva da frustração, Ambrósio pensou:
– Ainda mato esse negro!


*Conto premiado em 3º lugar no concurso de contos da Petrobrás, em 1978.




3 comentários:

  1. Que benção , que surpresa agradável, que alegria, que saudade. Nos temos esse 1o. Best Seler do nosso querido amigo e irmão que agora é nosso intercessor. Grande abraço com gosto de presença viva. Bjs Walquiria e Indio

    ResponderExcluir
  2. Fiquei muito feliz e orgulhosa, de Sylvia ter colocado o conto que Hugo escreveu, no blog do Menalton, que agradeço a gentileza de ter aberto espaço para isso acontecer. Estou emocionada.

    ResponderExcluir
  3. Conheci Sr. Hugo Rodrigues perto de seu desencarne celestial. No pouco tempo que tivemos juntos percebi inteligência impar e um ser humano generoso. Marco Antônio

    ResponderExcluir

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças