sexta-feira, 17 de agosto de 2018

CONTOS CORRENTES


Conto publicado na Antologia Solidária Barretos.  

ANJO OU DEMÔNIO
                 (Julia Britto)

Ana nasceu quase morta. E rejeitada. Os pais queriam um menino. Sobreviveu graças à piedade de uma vizinha, que tinha criança pequena e a amamentou. Cresceu quieta, sem incomodar. Adolescente, o pai levou um servente de pedreiro, bem mais velho, para conhecê-la. Procurava alguém para se casar, que cuidasse da casa, das roupas e da comida. E lá se foi Ana. Mudou de senhor. Continuou a servir.   

O marido não queria filhos. Sempre que o corpo apresentava mudanças, ela tomava chá de capim espinhoso, que causava hemorragia. Mesmo sem saber ler e escrever, conhecia as propriedades das plantas. Aprendera com a mãe de leite. Certa vez, demorou a perceber as mudanças e, quando tomou o chá, já era tarde. A criança veio ao mundo e o marido ficou ainda mais zangado porque era uma menina. Nunca mais se deitou com Ana.

Uma vez por semana chegava do serviço com uma mulher e ia direto para o quarto. Ana ia para a casa da mãe de leite, com a filha. Voltava para servir o jantar. Pior era quando o marido chegava bêbado. Apanhava em silêncio. Um dia, Ana foi à mercearia e um homem que jogava bilhar sorriu-lhe. O sorriso não saiu mais de sua cabeça. Alguém a notara. E algo mudou profundamente dentro dela. Já não saía mais quando o marido chegava com alguma mulher. Ficava na cozinha e deixava que a filha chorasse. Para incomodar mesmo. Sabia que depois apanhava, mas já estava acostumada.


Outras vezes viu o homem do bilhar com seu sorriso. Passou a ir mais à mercearia. E ele foi se aproximando aos poucos. Começou a seguir atrás dela té perto de sua casa. Cada vez mais próximo. Numa das vezes segurou-a pelo braço. Firme, mas com delicadeza. Encaminhou-a para uma casa abandonada. Ela se deixou levar. E se deixou seduzir. Ganhou até beijo na boca. Coisa que nunca teve do marido. Gostou do sexo com o estranho. Não sabia nem seu nome. Mas, ele fazia com que se sentisse gente, mulher. Mais vezes se encontraram na casa abandonada. Quase não falavam. Era tudo muito rápido. Um dia ele deu-lhe dinheiro.

“Pra tu comprares leite pra tua menina. Ou alguma coisinha pra ti.”

O marido nunca entregara um único centavo em sua mão. E ainda apanhava todo mês quando ele ia pagar a conta da mercearia. Dizia que ela gastava muito.

Outras vezes, o homem do bilhar presenteou-a com dinheiro. E até convidou-a a dar uma volta de ônibus à noite. Disse que o centro da cidade era lindo, todo iluminado. Ela não conhecia nada além do bairro pobre onde vivia. E a pobreza é muito feia. Nunca havia entrado em um ônibus. Sentiu uma comichão por dentro. Vontade de ir ganhando o mundo.

Certa noite, enquanto o marido roncava bêbado e a filha dormia tranquila, foi até a mercearia. Esperou na esquina e pediu que um garoto chamasse o homem do bilhar. Perguntou-lhe se não podiam passear de ônibus naquele momento.

“Pra já, madame!”

Brincando e fazendo mesuras exageradas, ele até a fez sorrir. Ela, que pensava não ter riso dentro de si. Tomaram o ônibus que passava pelo centro da cidade. As luzes e o movimento deixaram-na zonza, encantada, em estado de torpor. Em algumas esquinas, mulheres com roupas minúsculas e chamativas. Enfeitadas. Usavam colares, brincos, anéis. Muito brilho. Até batom. Coisas que ela nunca teve. Também, para usar batom precisava consertar os dentes. Nunca foram tratados. Os letreiros piscando acendiam nela o fogo da curiosidade. Queria saber ler para entender tudo aquilo que piscava.

“Tá vendo essas moças bonitas nas esquinas, Ana? Tão trabalhando. Elas ganham muito dinheiro para fazer o que a gente faz na casa abandonada. Para algumas, fui eu que arrumei o serviço. Pra ajudar. Sabe como é, né? A vida é dura. Se tu precisar de serviço, posso arrumar, viu? Não se avexe de falar”.

Ana nunca pensara na possibilidade de ganhar seu próprio dinheiro. O pouco que ganhava, de vez em quando, do homem do bilhar, já era mais do que jamais pretendera. Imagine, então, poder se vestir como aquelas mulheres? Cuidar dos dentes? Aprender a ler? Usar batom?

Quando voltou para casa, deitou-se ao lado do marido e passou a noite com os olhos pregados no teto. Sonhando com uma nova vida. No dia seguinte, o marido voltou bêbado e a espancou. Então, começou a colocar em prática o que planejara ao longo do dia. Antes de deitar-se, colheu capim cicuta.

No outro dia, bem cedo, preparou o chá, que não tinha cor nem cheiro, apenas o poder da morte. Com ele, fez o café para o marido. Era domingo. Ele levantaria mais tarde. Levou a filha para a casa da mãe de leite. No caminho, foi pensando sobre o que sentia em relação à criança. Nada. Nunca a quisera, como também não fora desejada por sua própria mãe. Simplesmente a aceitara como um encargo. Sem amor, sem sentimento. Nem bom, nem mau. Uma obrigação. Nunca fora amada. Não aprendeu amar. Tinha certeza de que a filha ficaria melhor com sua mãe de leite. Ela tinha amor no coração. Sabia compartilhar e se doar.

Deu uma passadinha pela casa dos pais e preparou a mesma receita de café. E se foi. Agora poderia estudar, crescer, ser mais que Ana, simplesmente. O anjo, que por tanto tempo sobrevivera, ficara para servir o café. Tinha agora um demônio a guiá-la. Nunca mais surras, nunca mais ser ignorada. Nunca mais Ana dos Anjos. Agora, para sempre, Ana do Demônio.

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