sexta-feira, 16 de novembro de 2018

CONTOS CORRENTES

Este conto foipublicado originalmente na Antologia Solidária Barretos.


Arranhaço, Arrranhisso


(Luiz Felipe Nunes)

Ao que parece, não se sabe como se raspa esse verniz da normalidade que nos atira a limites nunca antes excedidos (nem deveriam). Sabe-se mais ou menos quando, mais ou menos por quê. Do prosaico simples, nos tornamos chama intensa da euforia e do desalento, fulgurando com força, sem vetor, até que, no olhar, a chama se apaga.

É o que consigo pensar no momento. Registrar é eternizar; logo eu, que não me lembro do que almocei.

Os olhos. A amoreira. As micróglias. A voz. Meu tio. Os outros. Eu mesmo. Essas poesias em forma de aranha. Vontade de morrer, de sumir; agora já não sinto mais, mas não encadeio o pensamento. Não sei o que veio antes – do estava falando. Sei que queria muito fazer algo. Era essencial. Vital. Mas o quê, Deus?

Para as bactérias do meu corpo, eu sou Deus. Talvez em algum tipo tosco de autodestruição. Mas divino, o todo pra elas.


Sempre me voltam à cabeça aquelas poesias, era isso que queria lembrar. Eu começava a faculdade – sim, era isso. Tentava entender o que a Literatura fazia comigo: cada descoberta me iluminava as vontades de um tanto que fazia derreter as horas, a compostura e, mesmo entre os olhares plurais dos colegas universitários, aquilo tudo parecia demasiado. Toda essa explosão da descoberta me fazia cair em períodos – rápidos quão extremos – de sonolência, depressão. Como a ressaca química de meu companheiro de casa, restava a mim olhos injetados e um ódio do mundo que vou te falar.

Mas ao ver a aranha – na poesia sobre guerra do cubista Apollinaire – em um momento esse salto dado aos 22 anos pareceu ter sentido: de alguma forma o olho, a amoreira, as micróglias, a voz, meu tio, os outros e eu tínhamos algum significado. Meu medo se tornou real; quer dizer, essa medida para mim é turva agora.

O francês falava sobre a guerra em seu poema cubista, imagino. Meu interesse levou à poetisa Salette Tavares, que havia lançado, décadas atrás, Aranha: aquelas patas formadas por arre, arre, arre... os versos desmoronando, saindo da linha e afundando num tipo de escuridão. Aquilo não saía mais de minha cabeça. Arre, arrre, arre. Arranhaço, arrranhisso. Foi a primeira noite em claro. Depois veio a segunda, a terceira – e me encontraram na rua, após dias desaparecido. Pelo menos foi o que me disseram – não sei se confio nas pessoas, nas vozes que, por vezes, não ligo mais às feições.

Fui parar numa sarjeta qualquer? Sei ter saído em busca de algo; não parece ter muito sentido agora, mas o que me lembro é que parti atrás de uma amoreira. A amoreira de meu tio, Otávio.

Otávio fulgurava na família. Lépido, atencioso, olhava sempre no fundo dos seus olhos e, nos dele, eu vislumbrava um brilho; os raios caramelo como veias do universo, relutando em apenas se prostrar em sua íris esverdeada. Ele dizia que eram os olhos que nos ensinavam tudo. E tinha razão: são eles que, desde o útero, disparam informações e estímulos para nosso cérebro se formar em relação a nossa realidade.

Ele também estava certo sobre sua amoreira: uma poda correta daria mais frutos, deixaria a árvore mais bela – e a cada florada ela jazia, espetacular, sobre nosso quintal, para o deleite de maritacas, pessoas e seres noturnos que sugavam o doce-azedo das nossas frutinhas.

O olho é o universo. Nós, deuses de outros seres, como as bactérias de nosso corpo, ou o mosquitinho que coloca sua curta vida à mercê de um tapão do nosso ego incomodado. Esse era o entendimento do tio, quando ele se apagou: aos 30 e poucos anos, em algum caminho se perdeu, algum fio se revoltou do circuito; a fala engraçada, com suingue e profundidade sedutora, se tornou hesitante, tétrica. Tiotávio recolheu-se em histórias fabulosas, perseguições horrendas. Esquivo, escondeu-se atrás da mãe, que comprava suas confusões e tentava entender onde havia se escondido a joia da família 
dentro daquele homem transtornado, sem condições mais de trabalhar: às vezes precisando de ajuda para tomar banho, senão eram dias sem sentir qualquer necessidade.

Pego comendo lixo, respondeu com um olhar vago: ele não podia estar ali. Após a morte de minha avó, foi mandado a uma clínica; aquele rompimento com minha adolescência me fez tomar parte de meu tempo para buscar saber, trilhar o caminho que o conduzira a um mundo sombrio, a uma prisão que triturava, célula a célula, sua psique. 

Não foi difícil encontrar respostas – e ainda me vêm à mente por vezes. A Ciência traz luz ao que se sucede: meu tio, personagem tacanho, contraste do que foi antes. Ele mesmo tentava, no início, explicar a si mesmo porque estava se ausentando, partindo num trem que desce uma serra longa, sem volta, vendo de longe o balouçar do lenço da sanidade; a cada dia, imagem que esmaece.

Tiotávio explicava a si mesmo – eu, criança, ouvia com atenção: Eu podo o pé de amoras para ele florescer, viver. E ele vive. Na minha cabeça, elas podam, podam, podam, para que minha mente floresça. Mas estão errando na dose: estou apodrecendo.

Elas? Ninguém dava atenção, mas aquelas palavras ainda soam na brisa do quintal da vó, onde ele morava. O balanço, diversão de tantos anos e abandonado num canto, range seus tentáculos pela ação do vento; agora estou aqui e estou bem, olhando para a amoreira que me parece caótica, desgovernada pela ausência das podas.

Elas! Meu tio, louco que estava ficando, tinha razão. E eu preciso dizer isso, passar pra frente, porque venho esquecendo esse caminho. Depois esqueço outro e me dá uma raiva, um ódio que me faz dormir por dias. Depois corro, corro, até me perder – não sei se em minha mente ou pelas ruas. Percebo que preciso de ajuda para voltar para casa. Agora, de novo: sem amoreira, sem quintal, numa rua estranha, num depósito não sei de quê.

Mas isso importa menos do que deixar essa mensagem a você – guarde para mim, pois é importante: elas! Dentro da cabeça, nosso sistema imunológico faz uma autêntica limpeza de corpos estranhos, restos celulares inúteis. Mais que isso, nas regiões onde transmitimos informações ao cérebro, em nossas sinapses (elos entre os neurônios), há estruturas que podam essas interligações, de forma a garantir a evolução de nosso aprendizado, cognição e memória. Além de serem lixeiras do nosso cérebro, esses corpos também podam as sinapses para elas se desenvolverem mais doces-azedas, apetitosas, vigorosas. Existe, para isso, uma proteína que marca tudo que deve ser devorado por elas,
elas! As chamadas micróglias. Vêm e limpam tudo: seu almoço são esses germes, restos celulares, lixo que sobra no organismo.

Por favor, guarde essa informação para mim. Mas só não me rememorem sobre o formato dessas micróglias, por favor: elas me dão medo – são aranhas, com 8, 9, 12 tentáculos, a se enrolarem nas sinapses e devorarem pedaços da gente. 

Pra você pode estar tudo bem, mas pro meu tio há algo errado: devoraram demais, criando escuridões onde ele se esconde: o verso do espelho, donde grita e não é ouvido – quando consegue, geralmente é por ter feito algo chocante, tétrico. Ele é o verso do rio congelado, preso, sem ar, sem vida – o olhar mortiço é o que resta – e os outros, observando, penosos, pela superfície do leito; nunca deixo de entrever, nesse olhar, o dedo apontado: a culpa é sua de ser assim.

Como o universo do meu tio pode trair seu Deus? Me explica? Sabe essa proteína que marca o que tem de ser devorado? Ela vem de um cromossomo. Cromossomo 6. Seis. Provavelmente um segmento dele, um gene, cê-quatro-a, é nosso Cavalo de Troia: marca para destruição a fala, o equilíbrio, a memória. Torna uma pessoa como o tio a sua própria psicose; resta pouco para si.

Maldito Cromossomo 6. Escroto. A raiva me sobe e percebo que não estou no quintal
da vó (já tinha dito isso a você?); não vejo a amoreira; não sei onde estou. E tenho em mim,
nítida, a voz; uma menina que brincava naquele balanço de canto – não estou certo agora –
me dizendo para defecar no chão.

Faça, faça! ‘Melhor que fazer nas calças’, minha mãe dizia. 

Sei, por alguns momentos, que se fizer isso, será obsceno, de certo modo. Mas vem toda uma anestesia social que, tanto faz, tanto fez. A voz me pede, insiste, incomoda. E faço. E como não é nosso jardim, nem a amoreira, o que sucede depois são vozes, braços, mãos: tentáculos agressivos que querem me eliminar desse universo, furar os olhos foscos. Quero me livrar deles e preparo um grito de revolta, um urro que condense tudo aquilo que me toma – com tanta intensidade que me faça ser entendido. 

Sinto a ebulição da palavra em mim. Me desvencilho dos braços torpes, dos dizeres maléficos:

Arrranhisso!

É o que me lembro antes de desfalecer.

Acordo lembrando de músicas que nunca ouvi: elas chegam a despertar atenção das pessoas a minha volta. Quase não percebo que não as conheço, que não sei onde estou. Logo, o medo me toma: se sair nessa chuva, sua pele há de derreter. Foi-me avisado. Decretado.

Fecho os olhos e as gotas da chuva são as patas da aranha a me tocar, sussurar: Arranhaço! Arrranhisso!

Lembro-me então, da voz, da merda caída, da rua; antes que qualquer constrangimento me tome, meus passos me levam à amoreira: ela de novo. Como sua poda a deixa mais bonita! Como a minha poda não é doce-azeda? Aranhas, micróglias que tiram os caminhos! Discuto o assunto com a voz do balanço, que ignora a contenda e me diz: se tirar a roupa, essa garoa que se precipita não vai te rasgar a pele. 

Procuro pela calça, mas não há: apenas um avental, fácil de me livrar. Seguro pela barra e, quando vou levantá-lo, mãos me impedem. Dedos, não tentáculos. Palavras ao ouvido que tento decifrar. Meu corpo se balança e, quando percebo, os dedos não mais estão sobre mim. Seu dono parece ser o que conversa com uma mulher. Ela tem algum controle sobre ele:

- Deixe o rapaz! A vizinhança disse que ele ou um parente já morou aqui!

- Mas não é a primeira vez que ele nos incomoda, Marta!

- Calma, querido! Já estão vindo buscá-lo! Dizem que era um moço bom, mas agora está como o tio, com... sei lá!

- Pra mim, isso é falta de vergonha! Se resolve nuns tapas!

- Não, meu bem... falaram o que ele tem. Acho que ele tem... epiléptico.

NOTA: Arranhaço, Arrranhisso é poesia concreta de Salette Tavares. Nascida em 1922, em Moçambique, então uma colónia portuguesa, na cidade de Lourenço Marques (hoje, Maputo). Aos onze anos mudou-se com a sua família para Sintra, Portugal; ainda viveu em Lisboa até 1994, quando morreu aos 72 anos. Não era esquizofrênica.

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