segunda-feira, 20 de maio de 2019

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff inéditas ou publicadas originalmente em revistas.

 Que mundo é esse?


Entrei no armazém do Serafim pra comprar a farinha da minha futura farofa, porque farofa sem farinha eu já tentei, não dá certo, e dou de cara com o Adamastor. Sentado em cima de um saco de batatas, o copo de cerveja equilibrado nas caixas de bacalhau, lá estava ele discutindo furioso com o filho do delegado, que a gente chama de moderno porque faz ma faculdade por aí.

Na hora me lembrei da Dolly. Não porque estivessem discutindo clonagem, mas porque naquela época o clima emocional da população era semelhante: o céu ou o inferno, a salvação ou a perdição. Me lembro de ter escrito então alguma coisa, reflexões sem peso ou medida, vagas considerações sobre este ser enigmático a que chamamos de humano.

Quanta tendência a fixar-se nos extremos! O equilíbrio é difícil, é instável, exige esforço permanente. O equilíbrio exige revisão a toda hora, atenção em tudo. Se a gente joga uma vassoura a um canto, lá ela fica, imóvel, em repouso absoluto. Mantê-la equilibrada na ponta do dedo, caramba, quanto esforço.

O filho do delegado, à maneira daquele Daniel, de “As pupilas do senhor reitor”, causando os maiores escândalos conceptuais, informava que o homem agora era seu próprio deus. Descoberto o código genético e sua seqüência, nada mais nos separava do ato da criação. A criação de seres perfeitos, planejados em laboratório, eternos. Porque, dizia ele, descoberto o código da célula causadora do envelhecimento, é só trocá-la e não se envelhece mais. Assim, quando um ser atinge
uma idade, digamos, ideal, altera algumas células de seu organismo e pelos séculos dos séculos vai manter a mesma idade física. Eu me lembrei de um livro da Simone de Beauvoir. A grande tragédia do personagem era não conseguir morrer. Estava condenado à vida eterna e, como já tivesse feito de tudo, já tivesse experimentado de tudo, vivia mergulhado em tédio tão grande que só não o matava porque ele era imortal. Bem, mas isso foi apenas uma lembrança casual.

O Adamastor sorria nervoso. Coisa nenhuma, ele repetia. Coisa nenhuma! Cada vez mais nervoso. Isso aí não vai prestar é pra nada. E se o homem mexer naquilo que Deus criou, o castigo vai ser terrível. Se o homem se meter a besta e ficar fossando onde não deve, isso é o próprio fim da humanidade.

Ontem conversei com um professor de Biologia que via no Projeto Genoma e suas descobertas um avanço científico como poucos na história das ciências. O futuro, opinião do professor, vai conhecer coisas gloriosas a respeito do corpo humano. A medicina vai sair de sua Idade Média para entrar na Idade da Tecnologia. O câncer, por exemplo, vai passar para a história antiga da humanidade. Muitas doenças vão desaparecer.

Voltei pra casa entre eufórico e preocupado com o futuro. Recursos para não haver mais fome sobre a face da Terra já existem, nem por isso a fome desapareceu. A esta altura, quanto grande laboratório já não está com as chaves do Projeto nas mãos para abrir as portas da saúde apenas àqueles que poderão multiplicar seus lucros?

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