Que coisa é esta que
assoma o animal em nós?
(Ésio Macedo Ribeiro
...naquele dia eu estava tomado por um sentimento que verdadeiramente era o acúmulo desses anos todos pilotando os teares. Você não sabe o que é aguentar todo dia o contramestre na sua cabeça ferroando, ferroando, feito uma britadeira na sua cabeça, a produção tá caindo, as encomendas tão chegando, e vocês aí, como se nada tivesse acontecendo, o sangue subiu mais do que devia, o Nestor era carne de pescoço, um ponta-de-aterro na nossa cola, unha-e-carne com os patrões, ninguém suportava mais tanta opressão.
você ali, um fantoche num moedor de carne e no outro dia a mesma coisa, você pode estar dormindo o sono mais profundo, e aquela chaminé expelindo seus apitos e você levantando da cama, o sono desfeito, a bicicleta encostada no muro, entra dia, entra mês, chega ano e rompe ano, a mesma rotina, a mesma repetição. Sei que eu estava no pior de mim, quase trinta anos e ele me encavalando com reclamações, eu peguei a primeira ferramenta que estava ao meu alcance e fiz a merda. Não deu tempo pra mais nada, o sangue já foi logo se espalhando no chão, uma mistura de poeira e líquido vermelho, aquela gosma de vingança e ódio lambuzando o chão da companhia, que ia fazendo uma pasta nojenta, tão nojenta como aquele sujeito velhaco e puxa-saco dos patrões. Não segurei, olhei para o céu e não tive dúvidas, preferi o risco, pagar o preço, mas ali não dava mais pra continuar. Ali, não. Qualquer lugar do mundo era melhor. A Manufatex era minha vida, sim, era, mas aquele merda ali me enchendo o saco o dia todo, ah, isso não, eu não podia mais. No fim, eu ouvi um dia da Juraci, a gente sempre acaba no olho da rua, eles não têm misericórdia de nada, de ninguém. Lembrei do Vandico, lutou tanto no sindicato pela gente e levou um cartão vermelho. Tá marcado na cidade, não encontra colocação em outra fábrica, pois a família Furtado controlava tudo. Então vim parar aqui, doutor, é isso: eu não sou barata, o sangue ferveu, eu perdi o juízo, não deu pra segurar, né, e aquele mingau vermelho no chão da estamparia, eu aqui vendo o sol nascer quadrado, não sei o que é pior, num sabe. O senhor pode colocar aí, que eu assino, vou cumprir o que devo pra justiça, seja o que Deus e os jurados quiserem... Mas desaforo eu nunca mais vou levar pra casa.
__
(*) Autor, dentre outros, de “Eles não moram mais aqui”(Contos, Ed. Patuá, SP – Prêmio Jabuti 2016), reside em Lisboa
Grande conto. A gente perde o controle com puxas sacos. E demais. Por onde andas Ronaldo?
ResponderExcluir