sexta-feira, 19 de julho de 2019

CONTOS CORRENTES


Esta coluna reúne contos de outros autores.

DIES IRAE                                                                                                                   

(Ronaldo Cagiano*)

Que coisa é esta que
assoma o animal em nós?
(Ésio Macedo Ribeiro

...naquele dia eu estava tomado por um sentimento que verdadeiramente era o acúmulo desses anos todos pilotando os teares. Você não sabe o que é aguentar todo dia o contramestre na sua cabeça ferroando, ferroando, feito uma britadeira na sua cabeça,  a produção tá caindo, as encomendas tão chegando, e vocês aí, como se nada tivesse acontecendo, o sangue subiu mais do que devia, o Nestor era carne de pescoço, um ponta-de-aterro na nossa cola, unha-e-carne com os patrões, ninguém suportava mais tanta opressão.
No final das contas, quando você sai do turno, não passa de um monte de ossos coberto de pó, resto de algodão pelo corpo, aquela fuligem toda do salão grudada em você, onde as máquinas martelam como bate-estacas, e isso não muda nunca, é aquela maratona de engrenagens, lançadeiras que vão e vêm, fios se entremeando, o tecido saindo lá na frente feito uma língua de fogo e os rolos se amontoando e as carretas da transportadora engolindo um por um e saindo direto para a estrada, e
você ali, um fantoche num moedor de carne e no outro dia a mesma coisa, você pode estar dormindo o sono mais profundo, e aquela chaminé expelindo seus apitos e você levantando da cama, o sono desfeito, a bicicleta encostada no muro, entra dia, entra mês, chega  ano e rompe ano, a mesma rotina, a mesma repetição. Sei que eu estava no pior de mim, quase trinta anos e ele me encavalando com reclamações, eu peguei a primeira ferramenta que estava ao meu alcance e fiz a merda. Não deu tempo pra mais nada, o sangue já foi logo se espalhando no chão, uma mistura de poeira e líquido vermelho, aquela gosma de vingança e ódio lambuzando o chão da companhia, que ia fazendo uma pasta nojenta, tão nojenta como aquele sujeito velhaco e puxa-saco dos patrões. Não segurei, olhei para o céu e não tive dúvidas, preferi o risco, pagar o preço, mas ali não dava mais pra continuar. Ali, não. Qualquer lugar do mundo era melhor. A Manufatex era minha vida, sim, era, mas aquele merda ali me enchendo o saco o dia todo, ah, isso não, eu não podia mais. No fim, eu ouvi um dia da Juraci, a gente sempre acaba no olho da rua, eles não têm misericórdia de nada, de ninguém. Lembrei do Vandico, lutou tanto no sindicato pela gente e levou um cartão vermelho. Tá marcado na cidade, não encontra colocação em outra fábrica, pois a família Furtado controlava tudo. Então vim parar aqui, doutor, é isso: eu não sou barata, o sangue ferveu, eu perdi o juízo, não deu pra segurar, né, e aquele mingau vermelho no chão da estamparia, eu aqui vendo o sol nascer quadrado, não sei o que é pior, num sabe. O senhor pode colocar aí, que eu assino, vou cumprir o que devo pra justiça, seja o que Deus e os jurados quiserem... Mas desaforo eu nunca mais vou levar pra casa.

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(*) Autor, dentre outros, de “Eles não moram mais aqui”(Contos, Ed. Patuá, SP – Prêmio Jabuti 2016), reside em Lisboa






Um comentário:

  1. Grande conto. A gente perde o controle com puxas sacos. E demais. Por onde andas Ronaldo?

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