segunda-feira, 11 de novembro de 2019

CARTAS DO INTERIOR

Esta coluna reúne crônicas de Menalton Braff.

No fim da tarde como pardais      


Eu sei, você sabe, todos nós sabemos que andar faz bem à saúde. Como de resto faz a maioria das atividades físicas. Precisei, contudo, de uma recomendação médica para começar a fazê-lo. Não todos os dias, como exige o facultativo encarregado de me manter razoavelmente saudável, mas sempre que o trabalho e o clima me permitem. E muito a contragosto o faço eu, que desde criança julgo um tanto aborrecidas as tais atividades físicas. Mesmo assim, mal o Sol se engarrancha nos fios de luz, entre rabiolas e papagaios, se não estiver chovendo, começo a me preparar.


Nunca poderia imaginar que essas caminhadas (corpo ereto, amplo movimento de braços, ritmo marcial contínuo) poderiam transformar-se em momentos de descobertas transcendentais. Pois é no que se transformaram.


Descobri, há uns dois meses, que não sou muito dado a amizades, principalmente se o amigo é o maior amigo do homem. Há um destes seres a quem não informaram a mais conhecida característica de sua espécie e ele me agride em altos brados por trás de um portão de ferro enferrujado toda vez que passo pela calçada que fronteia seu território. E percebo, por sua expressão, quanto de ódio pode acumular-se em um só corpo. Parece o cunhado de um amigo meu.


Não pensem, contudo, que as descobertas venham invariavelmente com esse teor desagradável. Coisa de duas, três semanas atrás, descobri, quase rindo de tão contente, a esperteza de certos
prefeitos. Mandam plantar sibipirunas de pouco mais de dois metros em canteiros centrais nas avenidas com o único propósito de criarem mais empregos para seus concidadãos. Lembro-me de quando as sibipirunas foram plantadas na avenida que elegi como pista para minhas necessidades físicas. Eram umas arvorezinhas sem graça, nos primeiros dias. Seu verde escuro e brilhante chegou a andar fosco por alguns tempos. Então vieram as chuvas, o sol recolheu-se um pouco e as
sibipirunas desembestaram a crescer. Hoje elas já nos brindam com sombra fresca e flores amarelas. Ah, sim, e periodicamente exigem um batalhão de homens armados de escadas e serrotes para desbastarem suas copas que ameaçam romper os fios de telefone e de luz que passam por cima dos canteiros.


A descoberta que mais me encantou aconteceu ontem. Encoberto pelas copas das sibipirunas, eu vinha descendo a avenida em passo acelerado. Sobre a cidade, uns restos de luz que escorriam de umas nuvens cor de fogo, umas aragens finalmente frescas. Quase tropecei, tanta era a pressa, em duas meninas, duas adolescentes de uns treze anos. Por causa das sombras, não cheguei a ver direito suas expressões, mas, tão pardais elas vinham, chilreando descuidosas, tão barulhentas, que as imagino de rosto afogueado, faceiras, lábios e olhos rasgados em sorrisos. Tenho certeza de que andavam como andavam sem precisarem de recomendação médica. Andavam e eram felizes. Ou eram felizes, por isso andavam. Não importa. A vida sem passado ou futuro. A vida como aquela aragem fresca, que elas sorviam sem ao menos perceber. Parei para as ver passar. E eu vi o que há muito não via, nem pensava que ainda houvesse. Tagarelas, sorridentes, as duas iam de mãos dadas.


Voltei pra casa mais leve, mais bem disposto, prometendo a mim mesmo nunca mais esperar recomendação do médico para botar o corpo a trabalhar.

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