O peso da gravata, de Menalton Braff
CONTO AFORA busca divulgar e celebrar o gênero e seus
artistas e ao longo de várias temporadas vamos trazer contistas de todo o
Brasil. A primeira temporada começa
agora e vai reunir dez escritores.
Para estrear o CONTO
AFORA, um texto inédito do premiado
escritor gaúcho Menalton Braff.
A todos, uma boa viagem conto afora!
As três notas curtas e uma longa, da Quinta: torpedo.
Gonçalo segura o volante com a mão esquerda, liberando a direita para ver que
porra de mensagem é esta agora: não esquecer a recepção logo mais às cinco.
Joga o aparelho no banco do carona e bate com a mão espalmada na testa: droga,
droga, droga! Mais de uma hora pajeando o diretor da Região Sul no aeroporto.
É a terceira vez que manuseia o celular no trajeto curto até
o escritório. O aniversário da filha, não se atrasar. A menina em crise,
Gonçalo, qualquer hora escapa do controle. Desde quando esta náusea por ouvir a
voz da mulher? Depois a secretária. O pessoal da Espanha, doutor Gonçalo, na
sala da recepção olhando para o relógio. Muito sérios estes espanhóis, com suas
pestanas bastas e as caras de toureiros. Não, medo não, mas eles disseram que
embarcam ainda hoje, o senhor está entendendo, doutor Gonçalo? Ainda hoje, e
não param de olhar para seus relógios suíços.
Não esquecer a recepção logo mais às cinco.
A tarde foge rápida e quente deixando as marcas de suas
patas largas sobre a cidade. Gonçalo pega do porta-luvas a caixa de lenços de
papel para limpar o suor da testa. E amanhã? Começava o dia estudando as
propostas de revisão dos preços. Depois o discurso na Câmara do Comércio. À
noite. Redigir quando, senão quando os outros seres humanos dormem? E o
restante do dia, na agenda da secretária, déspota pouco esclarecida na
distribuição de seus minutos.
O farol fecha e os pneus guincham. Gonçalo bate com as duas
mãos no volante. No final do mês: os objetivos estavam superdimensionados, não
acham? Olha ao redor. A cidade parada à espera da vida. A vida parada à espera
da morte. Não pode abrir o vidro, mas o calor entra por seus olhos. Seus olhos
parados à espera do nada.
Às cinco.
São três e quarenta e cinco. Há três espanhóis vestidos de
toureiros sentados nas poltronas macias na sala da recepção. Pelo menos o ar
condicionado. Antes das cinco. Uma nuvem, por um momento, esconde o sol e o
semáforo aproveita para ficar verde.
Há quantos séculos paga o clube sem poder usufruir?
A avenida se move, primeiro lenta, então acelerando aos
poucos. Há carros na frente e atrás. Na faixa da esquerda, como na direita,
passam carros, ônibus e caminhões transportando seus rugidos à vista e seus
passageiros suados, que sonham com um destino. Todos têm pressa de chegar.
Cancelar não, que a família. Principalmente o Júnior. Melhor
do que ficar puxando fumo. Hoje em dia.
A avenida corta o parque e Gonçalo enche-se de verde. Então
respira fundo, examinando atento seus pulmões desabituados. Ah, sim. Hoje em
dia.
Não esquecer a recepção logo mais às cinco.
O celular chama-lhe a atenção. Alguém vai dizer alguma coisa
sobre seu rumo, seu caminho, sua vida. Gonçalo chega a soltar a mão direita,
que volta a segurar rudemente o volante. Não, ainda não. Tenta manter-se
consciente para anular os gestos reflexos. Olha-se no retrovisor. O telefone
insiste. Está com ar de muito cansado. O telefone insiste. Estas manchas roxas
por baixo dos olhos podem significar alguma coisa. Brusco, desaperta o nó da
gravata e desabotoa o colarinho. Sente-se vivo e cheio das sombras do parque.
Está decidido a não atender a porra do celular. Que toque o resto do dia, que
berre o resto da vida, que desembeste a gritar histérico, não vai mais comandar
sua vida com suas exigências ridículas.
No centro de um grande círculo gramado, a estátua de bronze
não se move. Gonçalo diminui a velocidade e entra por uma rua marginal de pouco
trânsito. Por fim ele pisa no breque com uma urgência desconhecida porque o
coração pulsa-lhe muito cabrito na caixa do peito. Como é que passando por este
mesmo caminho quase todos os dias nunca tinha visto aquela índia de bronze,
uiraçaba pendente do ombro e arazóia presa na cintura? Ah, que vida!, ele
suspira.
Fora do carro o calor é agressivo e forte, robusto, e
Gonçalo de Azevedo Rodrigues saca o paletó com alívio. Duas meninas passando
dão risadas por causa do gesto irresponsável do homem jogando um paletó sobre a
grama.
De dentro de automóveis invejosos, os motoristas ainda não
reparam muito em Gonçalo porque ele é, por enquanto, apenas um homem sem camisa
e pele muito alva. Quando começa a abrir a braguilha, um casal de velhos,
vexados com o gesto livre de qualquer pudor, olha para outro lado, temendo que
ele mije ali mesmo à vista de todos e à beira de uma avenida movimentada. O
rosto de Gonçalo resplandece por causa da alegria concentrada que durante
tantos anos vinha recalcando.
Algumas pessoas param em meia-lua observando a coragem
daquele homem, até onde é que ela vai. Eles querem saber. E conversam entre si
com muitas risadas de entremeio, pois não é cena de ver-se todo dia, um homem
que traz a pele muito clara por baixo da roupa, dando pulos em volta de
Iracema, só de cuecas.
Quando a polícia chega com seus cassetetes à mostra, o povo
abre espaço e deixa que o sargento junte a roupa do doutor. Ele, o doutor
Gonçalo, já está de pé sobre o pedestal, no mesmo nível da índia. Ela ainda
reluta, tanta gente assistindo, mas Gonçalo já a enlaça pela cintura para
retirar-lhe a arazóia.
O povo aplaude. Os guardas exigem que o povo se disperse,
mas exigem cheios de convicção de que é uma exigência inútil. Cada vez que
empurram para fora do gramado uma ala, a outra torna a invadir o espaço mais
próximo da cena. Ouvem-se brecadas e arrancadas barulhentas, as buzinas
incendeiam o ar. Até pode um desastre, grita o sargento, os braços ocupados em
proteger aquela roupa cara do doutor.
– Ninguém vai calar a boca desta merda de celular?!, berra o
comandante.
Por fim, sob vaias, o sargento aproxima-se do monumento e
grita para que o doutor desça daí. Mas Gonçalo acaba de empurrar para os pés
sua cueca e olha com malícia para o policial. Nem às cinco nem nunca mais, ele
canta, o braço direito erguido como um tenor no auge da euforia.
Desça já daí, ruge novamente o sargento, para alegria do
povo, que se esmera em apupos e risadas.
Então, para o pasmo de todos, Gonçalo e Iracema, abraçados e
felizes, pulam do pedestal e começam a dançar. Ninguém se move, ninguém comenta
nada. As fisionomias começam a inventar uma inveja pura, uma saudade de viver,
mas tão indefinida que chega a escurecer o céu.
Com passo leve, talvez uma valsa, Gonçalo e sua amante
invadem a avenida parando totalmente o trânsito. Entre os carros atônitos, eles
seguem valsando até perderem-se no horizonte.
Este conto de Menalton Braff integra seu livro inédito O
peso da gravata.
Menalton Braff nasceu no Rio Grande do Sul, fez
pós-graduação (lato sensu) em Literatura Brasileira, na Universidade São Judas
Tadeu, de São Paulo. Tem vinte e um livros publicados e um no prelo. Sua
coletânea de contos À sombra do cipreste conquistou o Jabuti 2000 (livro do ano
– ficção) e já foi finalista de vários prêmios, como o Jabuti (diversas vezes),
Prêmio São Paulo de Literatura e Prêmio Portugal Telecom. Vive na região de
Ribeirão Preto desde 1987, onde se dedica exclusivamente à literatura.
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