(*)Ely Vieitez Lisboa é
romancista, contista e poetisa. Tem treze livros publicados e alguns já foram
indicados para o Prêmio Jabuti. É articulista de quatro jornais, dois em
Ribeirão Preto, um em Minas Gerais e outro em São Paulo.
É da Ely o conto abaixo:
O Retrato
Jeremias se foi assim, no tranco,
no de repente, com isquemia e infarto fulminante. Nem gritou. Desabou como um
saco vazio, na viagem
Foi um Deus nos acuda. À tarde,
Stela quis, ela mesma, preparar o corpo, vesti-lo com o melhor terno. Prometera
isso a ele. Banhou-o com carinho. Era um homem ainda bonito aos 60 anos. Não
tinha barriga e não perdera os cabelos, que usava meio de lado, na testa, o que
lhe dava certa jovialidade. Escolheu a roupa mais fina, a camisa branca
impecável, a gravata italiana, prateada, sapatos sociais, pretos, brilhantes.
No caixão, em meio aos
crisântemos brancos, ele parecia dormir. Um leve sorriso. As rugas
desapareceram? A morte rejuvenesce? As belas mãos cruzadas, um mar de flores,
coroas da maçonaria, do clube que frequentava, da Câmara Municipal. Ele fora
vereador, há alguns anos. Os amigos passando, socialmente dando os pêsames.
Alguns pareciam sinceros. De repente, ela estremeceu. Aquela ruiva opulenta, de
seios fartos, teve coragem de vir ao velório. Vadia! Dez anos atrás correra um
boato que Jeremias andara com ela. Stela lembrou-se das discussões, ameaças de
separação. Mas tudo passa e o mar encapelado serenou. A desgraçada tinha que
aparecer. Orgulhosa, Stela encarou-a, negando apertar a mão que a outra
oferecia. Puta!
Os dias se arrastaram, cuidou-se
do inventário. Graças a Deus não houve brigas; os dois filhos eram unidos e sem
muita ambição. Ela já vira famílias em guerra, na partilha de bens. Igual ao
vizinho rico que morrera há um ano. As duas filhas, antes amigas, quando o pai
se foi, começaram a se odiar. Houve até tentativa de assassinato, ao se
repartir o patrimônio. As más línguas contavam que Laila, a mais velha, mandara
alguém atropelar a irmã. Verdade? Não se sabe.
Os primeiros meses de solidão
doeram. Pior era ir para o quarto sozinha. Os dois sempre se deram bem
sexualmente. Desde a primeira noite, ele de pijama branco, de seda, ela com a
camisola rendada. A vergonha de ver o jovem marido deixando-a nua, olhando-a
com desejo e fogo, antes de deitar-se sobre ela. As descobertas deliciosas, as
posições ousadas, o sexo bom, o gozo!
O presente volta e a agride como
um tapa. Surge o grande problema. Precisam de um retrato de Jeremias para o
túmulo da família. Completar a galeria dos mortos. Stela passa a tarde procurando,
examina gavetas, fotos recentes e antigas. Acha tudo, menos a foto. Até o maço
de cartas amarelecidas que lhe escrevera quando noivos. Relê algumas,
enternecida. Quando o fogo da paixão arrefecera? Aos poucos virara aquele
sentimento doce de parceria, cumplicidade. As noites de sexo rarearam.
Acha uma foto de dez anos atrás.
Ela e o marido. Todos se escandalizam. Como colocar a foto dos dois, no túmulo,
Ela ainda viva? Stela, corajosa, desafia. Um dia não vou para lá? Usaremos a
foto do casal. E assim se fez.
É uma tarde de abril, fresca e
agradável. Dali alguns minutos fecham o cemitério. Pouca gente visitando os
túmulos. Vivos melancólicos choram por seus mortos. Stela vem todos os sábados.
Senta-se sobre a lápide de mármore, medita, recorda, reza um pouco. Já se vai
retirar, quando sente nas costas o cano do revólver.
− É um assalto! Vai passando a
bolsa, dona!
Coração aos sobressaltos. De onde
vem, de repente, a ousadia? Vira-se, olhando de frente, o ladrão. Ele não tem
vinte anos, usa camiseta, um bermudão e tênis velhos. Stela amacia a voz.
_ Ah, querido, quando era viva
tinha dinheiro... E era mais jovem. Olhe, olhe meu retrato...
Surpreso, lívido, o rapaz quer
retrucar. Velha besta!
Stela continua, já sentindo certa
firmeza.
− Que bom aparecer alguém para
conversar, ficar comigo... Veja, queirido, como eu era bonita.
O jovem salta para trás, quase
perdendo o equilíbrio, após verificar o retrato no túmulo. Era ela! Maldição!
Stela se entusiasma. É uma atriz!
Abre os braços e dá um passo em direção ao rapaz.
O ladrão cambaleia e ainda
segurando o revólver, objeto inútil, corre desnorteado. Salta entre os túmulos,
derruba vasos de flores. O zelador do cemitério nem vê direito sua fisionomia,
quando ele atravessa a porta central. Voa para a rua e quase é atropelado por
um carro.
Stela olha o retrato com calma e
sorri. Logo à frente, no túmulo da quadra 12, à direita, rosas vermelhas em um
vaso de cobre enfeitam o mármore negro da família Silva Batista.
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