sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

CONTOS CORRENTES

Como esta coluna abriu uma exceção e publicou uma crônica, comete agora outra exceção e publica o capítulo abaixo de um romance.



Lembranças vivas (das DesMemórias volume I)
                                                                                                                 

Márcia Denser

Tenho vívidas lembranças daquele sobrado da Rua Victor Hugo: tínhamos um porão mofado lotado de sacos de estopa cheios de retalhos (lá deviam desaguar todas as tapeçarias do Canindé, eu suponho) e ratos! A casa também era repleta de portas e janelas envidraçadas com a massa dos vidros soltando da moldura e, quando chovia, o telhado vazava como peneira, cobrindo o assoalho rangente de tábuas com bacias e panelas, ocasiões em que mamãe xingava e se lamentava minuciosamente: que mal eu fiz a Deus, que mal, Senhor?

O mais incrível é a descoberta dos odores da existência aos seis anos de idade (como um pequeno deus eu estava totalmente mergulhada nos fenômenos do mundo), deixando suas lembranças vivas e precisas – como marcas na pele –  até hoje, sessenta anos depois. Os cheiros de mofo, de chuva, de suor, de flores mortuárias, de massa de vidraceiro, de incenso, de fumaça, do nevoeiro ao amanhecer, e o mais imperioso - do mar, pois se fazia acompanhar do mormaço e do som ameaçador, do rumor, uma aproximação imensa, um horizonte, um pressentimento, uma excitação vertiginosa  a envolver corpo e alma para sempre.


Minha mãe soluçando nas escadas certa noite, os cabelos castanho-avermelhados se agitando sobre os degraus de mármore:
o telefone chamara tarde da noite na vizinha, meu tio Álvaro, irmão de papai - o tio Max do romance Caim - acabara de morrer do coração aos 39 anos, deixando duas filhas da mesma idade que eu e Teréca: por isso ela chorava, sofria, sentia profundamente. Tinha apenas 26 anos, seu belo rosto em lágrimas.

E haviam as malditas aulas de piano que malditamente minha mãe cismou de nos botar, a mim e Teréca, que ambas maldizíamos cada segundo a partir do maldito momento que entrávamos no sobradão da Dona Rina, uma senhora italiana muito magra, muito pálida, de voz rugosa como papel.

Lembro dos corredores escuros, do odor de temperos, duma suave velhinha gorducha com um coque de prata, da sala do piano em mogno negro e, imprevistamente, daquelas cortinas rendadas filtrando a luz das 9 da manhã com o desenho de Diana, deusa da caça, retesando uma guia cheia de cães saltadores – eu podia sonhar horas ali sem que nenhuma nota se fizesse ouvir do maldito piano francês com som de lata.

Eu e Teréca tínhamos um método oceânico de brincar, estendendo subterraneamente nosso pequeno universo de brinquedos, alheio à vida dos adultos lá em cima, evoluindo num enredo de historinhas que mergulhava sob a mesa, emergindo em direção ao corredor que atravessávamos rente às paredes até alcançar a sala, contornar sofás e poltronas, esgueirar-se por entre consoles e mesinhas e infiltrar-se novamente na fonte irradiadora da fantasia em nosso quarto, em torno da casinha e copinha onde dormitavam nossas bonecas.

Preferíamos sempre as quebradas, as caolhas, as marcadas pelo sal das abordagens e piratarias de alto bordo. Felizes os meses que precederam a escola, depois fodeu.
                                     

(Agora que o fluxo corre solto e desimpedido, adotei a disciplina de escrever diariamente cerca de seis a oito horas, começando pelas 11h até 17h, como quem vai trabalhar. Esta disciplina é fundamental para uma produção continuada: porém, não escrever mais do que uma página (1.500 caracteres), sempre deixar coisas por dizer na sessão seguinte. Mais: burilar o já escrito, não largar construções defeituosas, inconclusas, imprecisas ou mancas por reescrever, senão terá que retroceder demais caso tenha avançado em excesso. Lembrar: escrever é pensar, escrever é se comprometer. Sempre. Estas memórias não são ficção, mas – e como – literatura.)

   

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