Como esta coluna abriu uma exceção e publicou uma crônica, comete agora outra exceção e publica o capítulo abaixo de um romance.
Lembranças
vivas (das DesMemórias volume I)
Márcia
Denser
Tenho vívidas lembranças daquele sobrado da
Rua Victor Hugo: tínhamos um porão mofado lotado de sacos de estopa cheios de
retalhos (lá deviam desaguar todas as tapeçarias do Canindé, eu suponho) e
ratos! A casa também era repleta de portas e janelas envidraçadas com a massa
dos vidros soltando da moldura e, quando chovia, o telhado vazava como peneira,
cobrindo o assoalho rangente de tábuas com bacias e panelas, ocasiões em que
mamãe xingava e se lamentava minuciosamente: que mal eu fiz a Deus, que mal,
Senhor?
O mais incrível é a descoberta dos odores da
existência aos seis anos de idade (como um pequeno deus eu estava totalmente
mergulhada nos fenômenos do mundo), deixando suas lembranças vivas e precisas –
como marcas na pele – até hoje, sessenta
anos depois. Os cheiros de mofo, de chuva, de suor, de flores mortuárias, de
massa de vidraceiro, de incenso, de fumaça, do nevoeiro ao amanhecer, e o mais
imperioso - do mar, pois se fazia acompanhar do mormaço e do som ameaçador, do
rumor, uma aproximação imensa, um horizonte, um pressentimento, uma excitação
vertiginosa a envolver corpo e alma para
sempre.
Minha mãe soluçando nas escadas certa noite,
os cabelos castanho-avermelhados se agitando sobre os degraus de mármore:
o telefone chamara tarde da noite na
vizinha, meu tio Álvaro, irmão de papai - o tio Max do romance Caim - acabara
de morrer do coração aos 39 anos, deixando duas filhas da mesma idade que eu e
Teréca: por isso ela chorava, sofria, sentia profundamente. Tinha apenas 26
anos, seu belo rosto em lágrimas.
E haviam as malditas aulas de piano que
malditamente minha mãe cismou de nos botar, a mim e Teréca, que ambas
maldizíamos cada segundo a partir do maldito momento que entrávamos no sobradão
da Dona Rina, uma senhora italiana muito magra, muito pálida, de voz rugosa
como papel.
Lembro dos corredores escuros, do odor de
temperos, duma suave velhinha gorducha com um coque de prata, da sala do piano
em mogno negro e, imprevistamente, daquelas cortinas rendadas filtrando a luz
das 9 da manhã com o desenho de Diana, deusa da caça, retesando uma guia cheia
de cães saltadores – eu podia sonhar horas ali sem que nenhuma nota se fizesse
ouvir do maldito piano francês com som de lata.
Eu e Teréca tínhamos um método oceânico de
brincar, estendendo subterraneamente nosso pequeno universo de brinquedos,
alheio à vida dos adultos lá em cima, evoluindo num enredo de historinhas que
mergulhava sob a mesa, emergindo em direção ao corredor que atravessávamos
rente às paredes até alcançar a sala, contornar sofás e poltronas, esgueirar-se
por entre consoles e mesinhas e infiltrar-se novamente na fonte irradiadora da
fantasia em nosso quarto, em torno da casinha e copinha onde dormitavam nossas
bonecas.
Preferíamos sempre as quebradas, as caolhas,
as marcadas pelo sal das abordagens e piratarias de alto bordo. Felizes os meses
que precederam a escola, depois fodeu.
(Agora que o fluxo corre solto e
desimpedido, adotei a disciplina de escrever diariamente cerca de seis a oito
horas, começando pelas 11h até 17h, como quem vai trabalhar. Esta disciplina é
fundamental para uma produção continuada: porém, não escrever mais do que uma
página (1.500 caracteres), sempre deixar coisas por dizer na sessão seguinte.
Mais: burilar o já escrito, não largar construções defeituosas, inconclusas,
imprecisas ou mancas por reescrever, senão terá que retroceder demais caso
tenha avançado em excesso. Lembrar: escrever é pensar, escrever é se
comprometer. Sempre. Estas memórias não são ficção, mas – e como – literatura.)
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