(Raquel Naveira*)
Uma história
de adultério abalou minha família de imigrantes portugueses, os Figueira, em
terras selvagens do sul de Mato Grosso, no início do século XX. Foi com meu tio
Joaquim, o alfaiate, o infeliz marido. Tudo aconteceu enquanto ele costurava
calças e paletós, tão franzino, olhos verdinhos, mãos alisando sedas. Tio
Joaquim casara-se com Jaci, uma paraguaia de
longos cabelos negros. Ela lembrava a índia de uma antiga canção: “Índia
seus cabelos nos ombros caídos/ negros como a noite que não tem luar/ seus
lábios de rosa para mim sorrindo/ e a doce meiguice desse seu olhar”. Jaci era
índia de pele morena, paraguaia da fronteira, filha da nação tupi. Tio Joaquim
foi o branco de coração apaixonado que guardou toda vida o seu rosto
fotografado no peito. Jaci significa
Lua. Jaci herdou da lua o comportamento estranho, caprichoso, cheio de
fantasia. O aluamento. Os tons de prata na face iluminada. A mania de se
esconder. Tiveram duas filhas: Maura e
Maria Luísa. Franzinas e aluadas. Maura, a filha mais velha, de vinte anos,
casara-se com Helinho, filho do dono do cartório do município de Amambai, moço
rico e educado. Tinham um filhinho, na época com menos de dois anos.
Como minha
tia Jaci insinuou-se para o genro Helinho? Terá sido na calada da noite, quando
a casa estava silenciosa e todos dormiam? Terá usado um roupão branco, cruzado
as pernas e mostrado as
carnes rijas e claras como pedaços de lua? Afastou dos
olhos escuros a negra cortina de cabelos?
Ou terá sido
meio no ar, para preencher o vazio, dar colorido a uma rotina miúda, o marido
sempre absorto sobre a máquina de costura? Terá sido por sonho de aventura,
futilidade, vontade de ser desejada, de entrar no terreno proibido, onde se
desnudam véus e rolam cabeças em bandejas?
Não sei. O
certo é que, desde menina, ouço essa história, muitas vezes sussurrada atrás
das portas, entre gemidos e lágrimas. Jaci e Helinho fugiram levando junto o
filhinho de Maura. Tio Joaquim ficou prostrado, perdido, enlouquecido, cheio de
tiques. Maura foi embora para o Rio de Janeiro, onde mais tarde fez uma nova
família e nunca mais voltou a Mato Grosso. Maria Luísa, com apenas quinze anos,
isolou-se nos fundos da casa da rua 13 de maio, numa edícula, onde chovia e
ventava muito.
Jaci e
Helinho, uma década mais tarde, morreram num acidente de carro na estrada que
ia de Dourados a Campo Grande. Dizem que
estavam correndo a duzentos por hora. Sangue e destroços.
Jaci:
satélite e bólido.
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Maria Luísa
estava sempre alegre. Mesmo sozinha morando naquela edícula, atrás da casa da
rua 13 de maio, onde chovia e ventava muito. Parecia olhar para as situações
difíceis e dizer: “Se não consigo passar por cima de você, vou passar pelo
lado; se não conseguir passar por baixo, vou atravessar você ”. Nunca falava palavras
de desencorajamento, de preocupação ou de derrota. Talvez tenha compreendido
que para ter força sobrenatural para viver, depois daquele golpe que sofrera,
era preciso estar relacionada com Deus. E, além do mais, era engraçada, gostava
de contar casos, piadas de portugueses, com um modo expressivo de falar e
gesticular, a gargalhada fácil, o sorriso largo, a cabeça balançando os cabelos
negros e lisos.
Teve uma
vida de ascensão: casou-se com um jovem estudante que se formou médico. Estava
sempre ao lado dele. Era uma espécie de secretária, enfermeira, gerente.
Comprava, construía, reformava, decorava, diligente em mil tarefas. Mãe
dedicada de dois filhos que tratou sempre com mão de ferro e orientação segura.
O marido admirava sua Maria, não concebia a vida sem ela.
De repente,
ficou séria. Fez questão de me mostrar o seu álbum de casamento, onde eu estava
tão elegante num vestido xadrez de preto e branco com flores vermelhas no
decote. “_Lembra-se desse vestido?”, perguntou. “_Guarde essa foto naqueles
seus álbuns da antiga Lusitânia” e riu. Sabia que eu era uma espécie de guardiã
das lembranças da família.
Ficou séria
outra vez. O tom de sua voz era de grave confissão: “_Lembra do que aconteceu
com minha mãe, Jaci, que fugiu com o genro, levando o neto? Você acha que ela
foi corajosa? Meu pai e minha irmã transtornados, enlouquecidos. Coitadinha da
Maura. Acabou que eu quis morar sozinha, naquela edícula da casa da rua 13 de
maio, onde chovia e ventava. Você ia sempre lá me visitar com seus avós. Os
titios me deram muito carinho, muito apoio. Foram um esteio para mim. Você
lembra?”
Maria Luísa
nunca tocara naquele assunto comigo. Não assim, tão claramente, com detalhes, a
voz confessando, sussurrando, uma lágrima escorrendo pelo canto do olho.
Riu, sacudiu
os ombros, nem sabia porque estava me dizendo tudo aquilo, tantos anos já
passados. Abriu a cortina, olhou a lua. “_ Jaci significa lua, sabia? Minha mãe
se chamava Lua. Anoiteceu tão depressa.”
* RAQUEL
NAVEIRA nasceu em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, no dia 23 de setembro de
1957. Formou-se em Direito e em Letras pela Universidade Católica Dom Bosco,
onde deu aulas no Departamento de Letras por 19 anos. É Mestre em Comunicação e
Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Dá palestras e assessoria
pedagógica sobre o ensino da Literatura em todo o país. É colunista do jornal
Correio do Estado. Comunicadora, apresentadora do programa literário "Café,
flores e livros". Tem vários livros publicados, sendo os mais recentes:
"Jardim Fechado: uma Antologia Poética", "Quarto de
Artista" (ensaios) e "O Avião Invisível" (crônicas poéticas).
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