sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

CONTOS CORRENTES

(Conto de Evandro Affonso Ferreira*)

Caminho mais uma vez pelas avenidas desta cidade apressurada, cuja atmosfera permanece suja. Possivelmente procuro tempo todo o imprevisto. Caminho - eu, a melancolia e seus apetrechos sombrios. Meu semblante, este sim, continua resignado. Acho que sou melancólico artificial. Seja como for, ainda tenho saudade dos meus joviais tempos de embriaguez absoluta. Hoje vivo assim: afeiçoado à ociosidade lírica; escrevendo feito agora numa mesa de confeitaria. Fingindo conjecturas: posando de escritor para moça sentada sozinha à minha esquerda. Não tem entusiasmante beleza. Pouco importa: juventude traz em si aspecto luzidio, reluzente. Olhei para ela duas, três vezes sem entusiasmo - já não encontro mais devassidão nem mesmo nele meu olhar. Sei que ela nunca será minha confidente: jovem demais para gastar tempo ouvindo retrospectivas lamuriosas. Eu? Tenho grande passado pela frente. Sim: tempo todo reatiçado pelas reminiscências. Envelhecer é olhar sempre para trás – mulher de Lot em tempo integral. Assim como os chineses veem as horas no olho dos gatos, também vi agora as horas no olho daquela jovem: já é muito tarde para mim.


* Evandro Affonso Ferreira é autor de vários romances, entre eles "Minha mãe se matou sem dizer adeus" (Prêmio APCA Melhor romance de 2010 e "O Mendigo que sabia de cor os adágios de Erasmo de Rotherdam" (Prêmio Jabuti Melhor romance de 2012).

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