terça-feira, 29 de julho de 2014

QUESTÕES DE ESTÉTICA DA LITERATURA (106)

Pág. 231 - 3.6.3. Variabilidade diacrónica da relevância do emissor

Numa perspectiva diacrónica, a relevância do emissor no processo da comunicação literária apresenta-se como bastante variável, em estreita conexão com os códigos culturais e, mais particularmente, com o código literário prevalecente nos diversos períodos históricos.

Na literatura medieval, sobretudo na literatura anterior ao século XII, o emissor usufrui de uma débil relevância e a própria noção de autor, como observa Paul Zumthor, parece, por vezes, diluir-se, ou até perder-se, num processo de produção literária em que a tradição funciona como 'verdadeiro a priori da realidade poética' e em que a impositividade do código literário apaga as marcas da origem da enunciação, constituindo-se os textos como realizações sucessivas de um 'modelo nuclear' ou de um 'número limitado de modelos' e privilegiando-se assim um continuum técnico-formal, sémico (p.232) e ideológico.
Por outro lado, preceitos religiosos e morais atinentes aos pecados do orgulho, da ambição e da uanitas terrestris e à virtude da humildade podem reforçar esta tendência - endógena ao código literário medieval - para esbater, senão apagar, as marcas pessoais da autoria. Paradoxalmente, na cultura medieval o problema da autoria assume extrema importância nos textos não-literários - nos textos médicos, jurídicos, filosóficos, teológicos, etc. -, pois que, nestes domínios do saber, o autor é o fundamento primordial da auctoritas de que os mencionados textos aparecem investidos e que efetivamente exercem quer no plano teórico e doutrinário, quer no plano pragmático.
Na literatura do humanismo renascentista, quando os conceitos de nobilitas, dignitas e uirtus hominis caracterizam, como traços paradigmáticos supra-estruturais, o ideal antropológico de uma sociedade burguesa, capitalista e individualista em fase de desenvolvimento incoativo, o conceito de autor como (p.233) criador e progenitor de obras literárias adquire nova dimensão, tanto sob os auspícios de uma poética de raiz neoplatónica que exalta o furor poeticus, como sob o signo de uma poética aristotélico-horaciana que valoriza o poeta artifex. Quando Sá de Miranda (1481-1551), referindo-se aos seus versos, afirma: 'Os meus, se nunca acabo de os lamber,/ como ussa os filhos mal proporcionados',  não se limita a salientar hiperbolicamente o labor contínuo com que emenda e reescreve os seus poemas, mas exprime também, em termos metafóricos, o vínculo de maternidade, assumido com amor e sofrimento, que faz dos seus poemas autênticas criaturas suas. Por outro lado, o início da formação da 'galáxia de Gutemberg', com a invenção da imprensa e a difusão progressiva de textos impressos, contribui fortemente para individualizar e responsabilizar o emissor/autor."

(CONTINUA)

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