*O conto a seguir faz parte da coletânea, ainda inédita, "O peso da gravata" e outros contos.
As três notas curtas e uma longa,
da Quinta: torpedo. Gonçalo segura o volante com a mão esquerda, liberando a
direita para ver que porra de mensagem é esta agora: não esquecer a recepção
logo mais às cinco. Joga o aparelho no banco do carona e bate com a mão espalmada
na testa: droga, droga, droga! Mais de uma hora pajeando o diretor da Região
Sul no aeroporto.
O peso da gravata
É a terceira vez que manuseia o
celular no trajeto curto até o escritório. O aniversário da filha, não se
atrasar. A menina em crise, Gonçalo, qualquer hora escapa do controle. Desde
quando esta náusea por ouvir a voz da mulher? Depois a secretária. O pessoal da
Espanha, doutor Gonçalo, na sala da recepção olhando para o relógio. Muito
sérios estes espanhóis, com suas pestanas bastas e as caras de toureiros. Não,
medo não, mas eles disseram que embarcam ainda hoje, o senhor está entendendo,
doutor Gonçalo? Ainda hoje, e não param de olhar para seus relógios suíços.
Não esquecer a recepção logo mais
às cinco.
A tarde foge rápida e quente
deixando as marcas de suas patas largas sobre a cidade. Gonçalo pega do
porta-luvas a caixa de lenços de papel para limpar o suor da testa. E amanhã?
Começava o dia estudando as propostas de revisão dos preços. Depois o discurso
na Câmara do Comércio. À noite. Redigir quando, senão quando os outros seres
humanos dormem? E o restante do dia, na agenda da secretária, déspota pouco
esclarecida na distribuição de seus minutos.
O farol fecha e os pneus guincham.
Gonçalo bate com as duas mãos no volante. No final do mês: os objetivos estavam
superdimensionados, não acham? Olha ao redor. A cidade parada à espera da vida.
A vida parada à espera da morte. Não pode abrir o vidro, mas o calor entra por
seus olhos. Seus olhos parados à espera do nada.
Às cinco.
São três e quarenta e cinco. Há
três espanhóis vestidos de toureiros sentados nas poltronas macias na sala da
recepção. Pelo menos o ar condicionado. Antes das cinco. Uma nuvem, por um
momento, esconde o sol e o semáforo aproveita para ficar verde.
Há quantos séculos paga o clube
sem poder usufruir?
A avenida se move, primeiro lenta,
então acelerando aos poucos. Há carros na frente e atrás. Na faixa da esquerda,
como na direita, passam carros, ônibus e caminhões transportando seus rugidos à
vista e seus passageiros suados, que sonham com um destino. Todos têm pressa de
chegar.
Cancelar não, que a família.
Principalmente o Júnior. Melhor do que ficar puxando fumo. Hoje em dia.
A avenida corta o parque e Gonçalo
enche-se de verde. Então respira fundo, examinando atento seus pulmões
desabituados. Ah, sim. Hoje em dia.
Não esquecer a recepção logo mais
às cinco.
O celular chama-lhe a atenção.
Alguém vai dizer alguma coisa sobre seu rumo, seu caminho, sua vida. Gonçalo
chega a soltar a mão direita, que volta a segurar rudemente o volante. Não,
ainda não. Tenta manter-se consciente para anular os gestos reflexos. Olha-se
no retrovisor. O telefone insiste. Está com ar de muito cansado. O telefone insiste.
Estas manchas roxas por baixo dos olhos podem significar alguma coisa. Brusco, desaperta
o nó da gravata e desabotoa o colarinho. Sente-se vivo e cheio das sombras do
parque. Está decidido a não atender a porra do celular. Que toque o resto do
dia, que berre o resto da vida, que desembeste a gritar histérico, não vai mais
comandar sua vida com suas exigências ridículas.
No centro de um grande círculo
gramado, a estátua de bronze não se move. Gonçalo diminui a velocidade e entra
por uma rua marginal de pouco trânsito. Por fim ele pisa no breque com uma
urgência desconhecida porque o coração pulsa-lhe muito cabrito na caixa do
peito. Como é que passando por este mesmo caminho quase todos os dias nunca
tinha visto aquela índia de bronze, uiraçaba pendente do ombro e arazóia presa
na cintura? Ah, que vida!, ele suspira.
Fora do carro o calor é agressivo
e forte, robusto, e Gonçalo de Azevedo Rodrigues saca o paletó com alívio. Duas
meninas passando dão risadas por causa do gesto irresponsável do homem jogando
um paletó sobre a grama.
De dentro de automóveis invejosos,
os motoristas ainda não reparam muito em Gonçalo porque ele é, por enquanto,
apenas um homem sem camisa e pele muito alva. Quando começa a abrir a
braguilha, um casal de velhos, vexados com o gesto livre de qualquer pudor,
olha para outro lado, temendo que ele mije ali mesmo à vista de todos e à beira
de uma avenida movimentada. O rosto de Gonçalo resplandece por causa da alegria
concentrada que durante tantos anos vinha recalcando.
Algumas pessoas param em meia-lua
observando a coragem daquele homem, até onde é que ela vai. Eles querem saber.
E conversam entre si com muitas risadas de entremeio, pois não é cena de ver-se
todo dia, um homem que traz a pele muito clara por baixo da roupa, dando pulos
em volta de Iracema, só de cuecas.
Quando a polícia chega com seus
cassetetes à mostra, o povo abre espaço e deixa que o sargento junte a roupa do
doutor. Ele, o doutor Gonçalo, já está de pé sobre o pedestal, no mesmo nível
da índia. Ela ainda reluta, tanta gente assistindo, mas Gonçalo já a enlaça
pela cintura para retirar-lhe a arazóia.
O povo aplaude. Os guardas exigem
que o povo se disperse, mas exigem cheios de convicção de que é uma exigência
inútil. Cada vez que empurram para fora do gramado uma ala, a outra torna a
invadir o espaço mais próximo da cena. Ouvem-se brecadas e arrancadas
barulhentas, as buzinas incendeiam o ar. Até pode um desastre, grita o sargento,
os braços ocupados em proteger aquela roupa cara do doutor.
– Ninguém vai calar a boca desta
merda de celular?!, berra o comandante.
Por fim, sob vaias, o sargento
aproxima-se do monumento e grita para que o doutor desça daí. Mas Gonçalo acaba
de empurrar para os pés sua cueca e olha com malícia para o policial. Nem às
cinco nem nunca mais, ele canta, o braço direito erguido como um tenor no auge
da euforia.
Desça já daí, ruge novamente o
sargento, para alegria do povo, que se esmera em apupos e risadas.
Então, para o pasmo de todos,
Gonçalo e Iracema, abraçados e felizes, pulam do pedestal e começam a dançar.
Ninguém se move, ninguém comenta nada. As fisionomias começam a inventar uma
inveja pura, uma saudade de viver, mas tão indefinida que chega a escurecer o
céu.
Com passo leve, talvez uma valsa,
Gonçalo e sua amante invadem a avenida parando totalmente o trânsito. Entre os
carros atônitos, eles seguem valsando até perderem-se no horizonte.
Uauuuuuuuuuu! Amei! Bem original!
ResponderExcluirObrigado, nenemritinha!
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