Currículo Literário, Publicações e Premiações:
-Venceu o Prêmio Barueri de Literatura 2013/2014, com o livro de contos “Oitocentos e Sete Dias”, Editora Multifoco.
-Venceu o Prêmio Ufes de Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo
2013/2014, com o livro de contos “Quando não somos mais”.
- Foi uma das vencedoras do Prêmio OFF FLIP 2012 na categoria contos.
-Recebeu menção honrosa pelo conto “Ceias” no Prêmio Escriba de Literatura 2013
-Foi selecionada e participou da Oficina Literária da FLIP 2011, com o tema Crítica Literária.
-Foi selecionada e participou da Oficina Literária da FLIP 2010, com o tema Jornalismo Literário.
-Teve o texto “Klaus” selecionado para compor antologia do Prêmio SESC de Contos Machado de Assis -2010.
-Foi classificada, em 2009, para integrar coletânea do Projeto “Vamos Ler o Mundo”, no Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro-2009.
-Recebeu em 2007 menção honrosa no Concurso de Cuentos Infantiles Los Niños del Mercosur, Argentina, pelo texto “A Azeitona Fujona”.
- Em julho de 2004 venceu concurso de contos da Universidade Federal de São João Del Rei (MG), nesse mesmo ano, foi laureada pelo Prêmio FEUC de Literatura.
-Em 2005 teve um conto publicado no livro “+30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira”, org. por Luiz Ruffato e editado pela Record.
-Em 2003 publicou o livro de fragmentos Cadernos Vermelhos, Ribeirão Gráfica.
-Foi finalista no Prêmio Guimarães Rosa da Radio France Internationale, em 2001.
-Foi classificada em primeiro lugar no concurso de contos Realismo Fantástico ‘Locos de Atar’, na Argentina, em 1999.
-Em 1998 participou de cursos relativos à escrita escrita literária (Approaches to Shakespeare e Creative Writing) na Birkbeck College de Londres.
(Fonte: Linkedin)
Seu conto escolhido para publicação de hoje:
Pássara
Vanessa
Maranha
Suas penas vermelhas longas,
rajadas de turquesa.
Olhos pretos, brilhantes,
havia iniquidade
neles.
No todo, assim: a blusa
espalhafatosa e olhos de desnudar, ela tomava a cabeceira da mesa e decidia o
entorno, seguia além do aceitável, mas era a minha mãe, que duas vezes por ano
ressurgia de algum inferno, vinha toda, muito enérgica, resolutiva, desdenhosa
de quem estivesse ao meu
lado.
- Apagadinha demais, definira
assim a Clara e, dizê-lo, após todos os sinais de rejeição que deixava muito
claros, era o quanto bastava para eu imediatamente desgostar de quem quer que
estivesse
ali.
Mamãe não chegava a tocá-la,
sequer a considerava, mas sempre a palavra definitiva. Regrava que eu não me
envolvesse em política e que essa minha profissão de médico era desperdício de
energia. Reservava-me adiante a glória, o herdeiro da sua riqueza de ente
imortal, lamentando a minha mortalidade, defeito de engenharia, justo em mim, o
seu único filho.
Era a mais poderosa de
todas, seus ardis eu conhecia bem, mas Lígia interveio de um modo sem controle,
chegou num dos hiatos em que a grande mulher dos penachos transmudados em
blusa, a mulher-pássaro, enfim, essa minha mãe, seguia longe, ocupada com
o que eu nunca
soube.
Lígia deitou-se, paciente, no meu
divã de psiquiatra. Tinha uma fragilidade rara, o desamparo pulsado pelo
silêncio. Nenhum penacho visível, mas era eu mirar dentro rumo ao mais fundo
dos seus olhos para neles me afundar, a moça cândida, algo de incorrupto e
incorruptível nela. Contara-me: no mais delicado da percepção, fora um fruto
sujo, caído no chão. A pele machucada, mas apetecível ainda se abraçada por
algum desejo, era ela. Torta jogada no mundo, torta seguira vida adiante no seu
sem-lugar que desaguara, afinal, nalgum lugar
precário.
Sintetizando objetivamente,
germinada fora; apanhada então por quem não pudera ter filhos e dela resolvera
fazer filha. Acalentada até que, magicamente, caminho aberto, tal casal que a
adotara pudesse ter o próprio filho. Era então ser abandonada e renegada pela
segunda vez, tão criança ainda para existir sozinha assim. Uma borralheira
desde que o irmão anunciou chegada. Quiseram mesmo, secretamente, devolvê-la,
jogá-la de volta ao chão duro de onde viera, mas havia a Lei e os olhos dos
outros.
Às pedras e terreno árido, de
pequena construiu–se, sem outro modo, aparte e além. Umas anestesias poderosas
fundadas na crença de que tal gente não a merecia, essa gente amalgamada no (e
só nele) rebento branco que muito gritão chegava ao mundo. Nos alicerces dessa
superioridade forjada, contudo, sentia-se mínima, trazendo, à deriva dessa
não-gente, a vocação ao exílio, trancafiada compulsoriamente no seu
quarto-mundo desde pequena e dele saindo somente para comer, ir à escola,
ajudar nas tarefas da casa e ser espectadora da familiazinha alheia em arrulhos
de uma felicidade não-estendida para entender que absolutamente àquilo não
tinha direito.
***
Não espere longo, meu doutor.
Vou contar já de entrada o modo
como voltei ao grau zero, existindo assim nele. Grau zero é o antes da coisa,
ponto de partida, onde tudo é nada
ainda.
Tive pais adotivos. Cedo eu soube
que à mãe não faria feliz: experimentava modos de ser para agradá-la, mas, de
volta, sempre, algum rancor atemporal. Nesse pai, havia, inominada, mas, o
tempo todo premente, a acusação.
Entre rancor e acusação,
sobrevivi, me esgueirando. Muito fora do lugar, fazendo então do deslocamento
uma posição, um jeito de estar no mundo, em débito, a me desculpar por delito
presumido, em busca de algum brilho com que haver.
Mas, era inútil. A cisma me
precedia e me envolvia em rótulo: não há pior forma de entrada no mundo que
pela via do sem-vontade. Não me queriam por aqui, embora eu tivesse brotado
assim mesmo.
Insistir tem sido o meu modo.
Penetra na festa alheia, espectante, outsider. Você facilmente repete tal
experiência de rejeição e desamparo vida afora, ainda que as terapias, mesmo
que o conhecimento, porque é intenso e muito maior que qualquer racionalização:
timbrada nesse lugar conhecido que é o não-lugar.
A infância envolta por segredo, ela, aquela
menina, sabia que algo não lhe havia sido dito e, assim sabendo, sem saber ao
certo, aos vinte e cinco confusos anos, perguntou, para muito desértica
refazer-se nalgum
sentido.
Foi em jorro agressivo que a mãe deixou vir
a verdade. Escrever imaginariamente foi uma defesa que aprendi aos sete ou oito
anos, porque ali pouco se dizia. Escrever como uma arma, com a qual eu
contornaria a vida inteira, obsessivamente, tais questões, metaforizando-as,
até, enfim, despejá-las. Fazendo-me circularmente a acusação de uma imensa
mentira, mal estruturada muito aparte, o real entrado no fantasiado, lembro-me
que devia expiar culpa. Um entorno horroroso, me punha em fuga sobre patins
imaginando formas de acabar, eu própria, extinguir-me, morrer, enfim, as quais,
não se desenhando claramente, me impulsionavam à destruição: mastigava os
braços e as pernas das minhas bonecas. Era absolutamente esquiva.
Escrever me salvou da infância
dolorida, à contenda muito biliosa com o irmão que legitimava aquele casal. O
que me restava, nesse tempo, era gerir com os olhos essa precariedade, eu um
fruto não-deles. Perscrutava-lhes, como uma pequena maníaca, cada gesto e,
nunca, em tempo algum, o gesto espontâneo, nenhum abraço, sequer aprovação. Eu
toda a vergonhosa dimensão, eu era, ainda, o erro.
A dona Carmelita era uma velhinha
muito encurvada que morava só na rua sem saída da minha infância. Éramos
amigas. Eu com oito, ela, provavelmente, oitenta. Não me lembro de nada do que
falávamos, mas ela sempre me chamava à torta de limão ou aos suspiros de claras
e açúcar. Às vezes, só chá.
Duas órfãs numa rua sem saída.
Uma desnorteada pelo desconhecido à frente e em redor, a outra, ao cabo das
coisas todas, peneirando alguma alegria restante. Ela era sorridente, eu, uma
criança grave.
Havia uma assepsia branca
na casa da dama dos cabelos grisalhos sempre em coque, um permanente e
longínquo cheiro de pinho. Havia um eco, ali.
***
A compaixão que eu sentia pela
Lígia, ouvindo tanta ausência e desvão, era a pena de quem já esteve em lugar
semelhante, ainda que disfarçado de altivez e poder: as bruxarias grandiloquentes
da minha mãe.
Estava claro que a minha
fundadora desdenharia, pois se era toda ela corrupção e ilusão encarnadas,
talvez até se entediasse mesmo à bondade sofrida que em Lígia jamais
compreenderia por não sabê-la traduzida em nenhum pedaço de si, por viver o anverso
caudaloso do bem, no mal declarado, um seu escudo ou arma, enfim.
Que por ser avesso, houvera nela,
sim, algum bem que aqui se diluíra todo, portanto, eu sabia que a mãe não
aprovaria Lígia. Que do erro ela se alimentava, para então subjugar, mas, em
nada Lígia me parecia
errada.
Queria a pássara para mim algo da
ordem do ímpio, em dimensões as maiores, viciosa, ela. Em breve pousaria a sua
plumagem fascinante ao meu lado, eu sentia e queria-não-queria. Saudades das
suas imensas asas que me faziam sombras e calor sempre difusos me guiando de
volta ao seu grande ovo para ali eu me refazer noutra feição, à semelhança de
sua imagem, enfim. Costumava dizer que a solidão fermentava a imbecilidade, a
parvoíce estampada nos meus olhos, mas, jamais acenara algum amparo, melhor
presença, qualquer
constância.
Em Lígia, ainda invisível eu
perscrutava a plumagem sedosa verde-azulada de colibri, jamais espalhafatosa,
penas, então, num limiar muito próximo de voo. E, então, fascinado, eu a
abraçava indeciso entre contê-la ou impulsioná-la.
Chegou o dia em que, inebriado,
desenrolei os meus afetos e me desloquei do papel de médico. Não podia mais
cuidar dela, no divã, se a queria tão agudamente para mim. E, mesmo não sabendo
do meu passado ovo, mesmo que sequer pudesse imaginar a potência da mãe que eu
não lhe havia mostrado, tive medo. Um medo que subjuguei assim, sufocado no
peito, subindo à garganta, se desfazendo a cada carícia que ela me
estendia.
Começava a pensar na minha
mãe-totem, tão ligeira e impermeável, mais imagem e desejo que realidade. A mãe
que era-não-era, mas, que, tão solidamente se fazia presença em sua suntuosa
ausência.
Que mundos seriam os seus? Onde
os sobrevoos? Haveria remanso? Não saber era me lançar cada vez mais próximo e
arremetido ao coração de Lígia e sentir-me quase bom. Lígia não compreenderia o
litígio dentro de mim, os maus tratos e explosões que os conflitos eram capazes
de gerar, varrendo para longe toda a delicadeza com que eu até então a tratava
e, muito sofrida, se esgueiraria numa saída furtiva, amedrontada. Donde então
voltaria a brilhar a grande pássara vermelha sempre longe, eu mais uma vez
sozinho.
A menos que em mim os penachos
finalmente despontassem, intensamente vermelhos, absolutamente asas.
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