sexta-feira, 27 de fevereiro de 2015

CONTOS CORRENTES

A Vanessa Maranha tem experiência em jornalismo diário , ensino de idiomas e Psicologia (psicoterapia, perícia e avaliação psicológica, RH). Exerce, paralelamente, atividades literárias.
Currículo Literário, Publicações e Premiações:
-Venceu o Prêmio Barueri de Literatura 2013/2014, com o livro de contos “Oitocentos e Sete Dias”, Editora Multifoco.
 -Venceu o Prêmio Ufes de Literatura da Universidade Federal do Espírito Santo
2013/2014, com o livro de contos “Quando não somos mais”.
- Foi uma das vencedoras do Prêmio OFF FLIP 2012 na categoria contos.
 -Recebeu menção honrosa pelo conto “Ceias” no Prêmio Escriba de Literatura 2013
 -Foi selecionada e participou da Oficina Literária da FLIP 2011, com o tema Crítica Literária.
 -Foi selecionada e participou da Oficina Literária da FLIP 2010, com o tema Jornalismo Literário.
 -Teve o texto “Klaus” selecionado para compor antologia do Prêmio SESC de Contos Machado de Assis -2010.
 -Foi classificada, em 2009, para integrar coletânea do Projeto “Vamos Ler o Mundo”, no Prêmio Literário Cidade de Porto Seguro-2009.
 -Recebeu em 2007 menção honrosa no Concurso de Cuentos Infantiles Los Niños del Mercosur, Argentina, pelo texto “A Azeitona Fujona”.
- Em julho de 2004 venceu concurso de contos da Universidade Federal de São João Del Rei (MG), nesse mesmo ano, foi laureada pelo Prêmio FEUC de Literatura.
 -Em 2005 teve um conto publicado no livro “+30 Mulheres que Estão Fazendo a Nova Literatura Brasileira”, org. por Luiz Ruffato e editado pela Record.
 -Em 2003 publicou o livro de fragmentos Cadernos Vermelhos, Ribeirão Gráfica.
 -Foi finalista no Prêmio Guimarães Rosa da Radio France Internationale, em 2001.
 -Foi classificada em primeiro lugar no concurso de contos Realismo Fantástico ‘Locos de Atar’, na Argentina, em 1999.
 -Em 1998 participou de cursos relativos à escrita escrita literária (Approaches to Shakespeare e Creative Writing) na Birkbeck College de Londres.

(Fonte: Linkedin)

Seu conto escolhido para publicação de hoje:


Pássara
                                               Vanessa Maranha

Suas penas vermelhas longas, rajadas de turquesa.                                                
 Olhos pretos, brilhantes, havia iniquidade neles.                                                
 No todo, assim: a blusa espalhafatosa e olhos de desnudar, ela tomava a cabeceira da mesa e decidia o entorno, seguia além do aceitável, mas era a minha mãe, que duas vezes por ano ressurgia de algum inferno, vinha toda, muito enérgica, resolutiva, desdenhosa de quem estivesse ao meu lado.                                               
- Apagadinha demais, definira assim a Clara e, dizê-lo, após todos os sinais de rejeição que deixava muito claros, era o quanto bastava para eu imediatamente desgostar de quem quer que estivesse ali.  
                                                                      
Mamãe não chegava a tocá-la, sequer a considerava, mas sempre a palavra definitiva. Regrava que eu não me envolvesse em política e que essa minha profissão de médico era desperdício de energia. Reservava-me adiante a glória, o herdeiro da sua riqueza de ente imortal, lamentando a minha mortalidade, defeito de engenharia, justo em mim, o seu único filho.                                                                                             
  Era a mais poderosa de todas, seus ardis eu conhecia bem, mas Lígia interveio de um modo sem controle, chegou num dos hiatos em que a grande mulher dos penachos transmudados em blusa, a mulher-pássaro, enfim, essa minha mãe, seguia  longe, ocupada com o que eu nunca soube.                                                                             
Lígia deitou-se, paciente, no meu divã de psiquiatra. Tinha uma fragilidade rara, o desamparo pulsado pelo silêncio. Nenhum penacho visível, mas era eu mirar dentro rumo ao mais fundo dos seus olhos para neles me afundar, a moça cândida, algo de incorrupto e incorruptível nela. Contara-me: no mais delicado da percepção, fora um fruto sujo, caído no chão. A pele machucada, mas apetecível ainda se abraçada por algum desejo, era ela. Torta jogada no mundo, torta seguira vida adiante no seu sem-lugar que desaguara, afinal, nalgum lugar precário.                                            
Sintetizando objetivamente, germinada fora; apanhada então por quem não pudera ter filhos e dela resolvera fazer filha. Acalentada até que, magicamente, caminho aberto, tal casal que a adotara pudesse ter o próprio filho. Era então ser abandonada e renegada pela segunda vez, tão criança ainda para existir sozinha assim. Uma borralheira desde que o irmão anunciou chegada. Quiseram mesmo, secretamente, devolvê-la, jogá-la de volta ao chão duro de onde viera, mas havia a Lei e os olhos dos outros.         
Às pedras e terreno árido, de pequena construiu–se, sem outro modo, aparte e além. Umas anestesias poderosas fundadas na crença de que tal gente não a merecia, essa gente amalgamada no (e só nele) rebento branco que muito gritão chegava ao mundo. Nos alicerces dessa superioridade forjada, contudo, sentia-se mínima, trazendo, à deriva dessa não-gente, a vocação ao exílio, trancafiada compulsoriamente no seu quarto-mundo desde pequena e dele saindo somente para comer, ir à escola, ajudar nas tarefas da casa e ser espectadora da familiazinha alheia em arrulhos de uma felicidade não-estendida para entender que absolutamente àquilo não tinha direito.     
                                                                   ***
Não espere longo, meu  doutor.                                                                               
Vou contar já de entrada o modo como voltei ao grau zero, existindo assim nele. Grau zero é o antes da coisa, ponto de partida, onde tudo é nada ainda.                                                     
Tive pais adotivos. Cedo eu soube que à mãe não faria feliz: experimentava modos de ser para agradá-la, mas, de volta, sempre, algum rancor atemporal. Nesse pai, havia, inominada, mas, o tempo todo premente, a acusação.   
Entre rancor e acusação, sobrevivi, me esgueirando. Muito fora do lugar, fazendo então do deslocamento uma posição, um jeito de estar no mundo, em débito, a me desculpar por delito presumido, em busca de algum brilho com que haver. 
Mas, era inútil. A cisma me precedia e me envolvia em rótulo: não há pior forma de entrada no mundo que pela via do sem-vontade. Não me queriam por aqui, embora eu tivesse brotado assim mesmo. 
Insistir tem sido o meu modo. Penetra na festa alheia, espectante, outsider. Você facilmente repete tal experiência de rejeição e desamparo vida afora, ainda que as terapias, mesmo que o conhecimento, porque é intenso e muito maior que qualquer racionalização: timbrada nesse lugar conhecido que é o não-lugar. 
 A infância envolta por segredo, ela, aquela menina, sabia que algo não lhe havia sido dito e, assim sabendo, sem saber ao certo, aos vinte e cinco confusos anos, perguntou, para muito desértica refazer-se nalgum sentido.                                                    Foi em jorro agressivo que a mãe deixou vir a verdade. Escrever imaginariamente foi uma defesa que aprendi aos sete ou oito anos, porque ali pouco se dizia. Escrever como uma arma, com a qual eu contornaria a vida inteira, obsessivamente, tais questões, metaforizando-as, até, enfim, despejá-las. Fazendo-me circularmente a acusação de uma imensa mentira, mal estruturada muito aparte, o real entrado no fantasiado, lembro-me que devia expiar culpa. Um entorno horroroso, me punha em fuga sobre patins imaginando formas de acabar, eu própria, extinguir-me, morrer, enfim, as quais, não se desenhando claramente, me impulsionavam à destruição: mastigava os braços e as pernas das minhas bonecas. Era absolutamente esquiva.
Escrever me salvou da infância dolorida, à contenda muito biliosa com o irmão que legitimava aquele casal. O que me restava, nesse tempo, era gerir com os olhos essa precariedade, eu um fruto não-deles. Perscrutava-lhes, como uma pequena maníaca, cada gesto e, nunca, em tempo algum, o gesto espontâneo, nenhum abraço, sequer aprovação. Eu toda a vergonhosa dimensão, eu era, ainda, o erro.
A dona Carmelita era uma velhinha muito encurvada que morava só na rua sem saída da minha infância. Éramos amigas. Eu com oito, ela, provavelmente, oitenta. Não me lembro de nada do que falávamos, mas ela sempre me chamava à torta de limão ou aos suspiros de claras e açúcar. Às vezes, só chá.
Duas órfãs numa rua sem saída. Uma desnorteada pelo desconhecido à frente e em redor, a outra, ao cabo das coisas todas, peneirando alguma alegria restante. Ela era sorridente, eu, uma criança grave.
 Havia uma assepsia branca na casa da dama dos cabelos grisalhos sempre em coque, um permanente e longínquo cheiro de pinho. Havia um eco, ali.
                                                             ***
A compaixão que eu sentia pela Lígia, ouvindo tanta ausência e desvão, era a pena de quem já esteve em lugar semelhante, ainda que disfarçado de altivez e poder: as bruxarias grandiloquentes da minha mãe.                                                           
Estava claro que a minha fundadora desdenharia, pois se era toda ela corrupção e ilusão encarnadas, talvez até se entediasse mesmo à bondade sofrida que em Lígia jamais compreenderia por não sabê-la traduzida em nenhum pedaço de si, por viver o anverso caudaloso do bem, no mal declarado, um seu escudo ou arma, enfim. 
Que por ser avesso, houvera nela, sim, algum bem que aqui se diluíra todo, portanto, eu sabia que a mãe não aprovaria Lígia. Que do erro ela se alimentava, para então subjugar, mas, em nada Lígia me parecia errada.                     
Queria a pássara para mim algo da ordem do ímpio, em dimensões as maiores, viciosa, ela. Em breve pousaria a sua plumagem fascinante ao meu lado, eu sentia e queria-não-queria. Saudades das suas imensas asas que me faziam sombras e calor sempre difusos me guiando de volta ao seu grande ovo para ali eu me refazer noutra feição, à semelhança de sua imagem, enfim. Costumava dizer que a solidão fermentava a imbecilidade, a parvoíce estampada nos meus olhos, mas, jamais acenara algum amparo, melhor presença, qualquer constância.                                                   
Em Lígia, ainda invisível eu perscrutava a plumagem sedosa verde-azulada de colibri, jamais espalhafatosa, penas, então, num limiar muito próximo de voo. E, então, fascinado, eu a abraçava indeciso entre contê-la ou impulsioná-la.                             
Chegou o dia em que, inebriado, desenrolei os meus afetos e me desloquei do papel de médico. Não podia mais cuidar dela, no divã, se a queria tão agudamente para mim. E, mesmo não sabendo do meu passado ovo, mesmo que sequer pudesse imaginar a potência da mãe que eu não lhe havia mostrado, tive medo. Um medo que subjuguei assim, sufocado no peito, subindo à garganta, se desfazendo a cada carícia que ela me estendia.                                                                                                         
Começava a pensar na minha mãe-totem, tão ligeira e impermeável, mais imagem e desejo que realidade. A mãe que era-não-era, mas, que, tão solidamente se fazia presença em sua suntuosa ausência.                                                                               
Que mundos seriam os seus? Onde os sobrevoos? Haveria remanso? Não saber era me lançar cada vez mais próximo e arremetido ao coração de Lígia e sentir-me quase bom. Lígia não compreenderia o litígio dentro de mim, os maus tratos e explosões que os conflitos eram capazes de gerar, varrendo para longe toda a delicadeza com que eu até então a tratava e, muito sofrida, se esgueiraria numa saída furtiva, amedrontada. Donde então voltaria a brilhar a grande pássara vermelha sempre longe, eu mais uma vez sozinho.                                                                                        

A menos que em mim os penachos finalmente despontassem, intensamente vermelhos, absolutamente asas.   











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