sexta-feira, 26 de junho de 2015

CONTOS CORRENTES

BIOGRAFIA

Nasceu em 15 de janeiro de 1953, em Inhapim, Minas Gerais, zona da Mata. Veio para Brasília em 1968, onde fez o segundo grau no CIEM – Centro Integrado de Ensino Médio, considerado, na época, uma experiência pioneira da Universidade de Brasília.
Recém-formada, participou do Programa para Graduados Latino-americanos na Universidade de Navarra, em Pamplona, Espanha, onde viveu por seis meses. Obteve o título de Mestre em Comunicação na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Trabalhou em diversos Órgãos do Ministério da Educação, incluindo-se o extinto Conselho Nacional de Direito Autoral. Transferiu-se para o Ministério da Cultura, onde assessorou o ex-Ministro Celso Furtado.Em 1991 mudou-se para Salvador, Bahia. Fez concurso para professora da Faculdade de Comunicação da Universidade Federal da Bahia e para o Curso de Publicidade da Faculdade Católica do Salvador. Lecionou em ambas as instituições e formou-se em Direito nesta última. No final de 1998 retornou a Brasília, transferindo-se para a Faculdade de Comunicação da Universidade de Brasília. Atualmente, leciona as disciplinas Oficina de Textos e Oficina Avançada de Narrativas, além de coordenar os projetos experimentais, que correspondem a dissertações de Graduação. É filiada à Ordem dos Advogados do Brasil, OAB, e membro da Associação Nacional de Escritores.



 A infância no interior de Minas foi determinante para o seu trabalho, como escritora. Lá aprendeu a escrever cartas e, a pedido das amigas, tornou-se a redatora oficial das cartas para os seus namorados, que estudavam na capital. Considera esse o período mais marcante de sua vida, quando tudo começou, isto é, quando foi mordida pelo “inseto literário”. Como na cidade não havia livrarias, os livros, emprestados, passavam de mão em mão até se transformarem em objetos despedaçados, faltando páginas. Um de seus traumas literários mais relevantes foi o fato de não ter sabido, na época, o final de “Orgulho e preconceito”, de Jane Austen, livro que adora. Adulta, comprou vários exemplares, para não correr mais riscos.
Embora escreva desde menina, transformou-se em escritora publicada em 1990, com “Véspera de lua”, romance classificado em primeiro lugar no “Prêmio Nacional de Literatura Editora UFMG 1988”. O primeiro livro que escreveu, contudo, foi “Rio das Pedras”, classificado entre os dez finalistas da 4a. Bienal Nestlé de Literatura Brasileira, tendo recebido, também, Menção Especial no Prêmio Graciliano Ramos, conferida pela União Brasileira de Escritores, em 1990. Este texto só foi publicado em 2002, após ter obtido o primeiro lugar, na categoria novela, da “Bolsa Brasília de Produção Literária 2001”, concurso promovido pela Secretaria de Cultura do Distrito Federal. 


Escolha foi o conto que a Rosângela nos enviou:

A escolha
Rosângela Vieira Rocha

Se essa coisa não estivesse grudada na minha traqueia, se esse tubo me permitisse falar, eu queria lhe pedir, Luciana, que não chorasse mais. Não, não chore, olhe, não paga a pena, falta pouco, eu sei, mas é melhor que seja assim mesmo. Mesmo se pudesse, eu não sei se falaria, é difícil dizer certas coisas a uma filha, sempre fiz cerimônia com vocês duas, mas diga à Lúcia, se puder, que não precisa chorar mais por mim, eu não quero, chega.
Eu sabia dos riscos, nunca fui inocente, os médicos me avisaram, mas eu não podia ouvir. Não sei se é fácil entender, talvez você não seja capaz de entender, ainda mais que só me vê como pai, nem sei se é possível que alguém entenda, se eu continuasse naquele caminho é quase certo que estivesse vivo agora, mas um vivo morto, para quê?
 Você era muito pequena quando a doença me pegou pela primeira vez e Lúcia, menor ainda. Há dezoito anos. Muito tempo, não acha? Tudo era diferente, eu estava casado com sua mãe, nossa rotina estabelecida, a vida mais ou menos organizada, duas meninas para criar, muito serviço, eu dava aula em três escolas, todos os turnos ocupados, precisava de dinheiro, pagava supermercado, roupas, mensalidades escolares, conta de luz, telefone, condomínio, ah, uma lista muito comprida. Um só para dar conta de quatro. Eu não podia morrer.
Começou devagar, como quem não quer nada, ardência, dificuldade para urinar, uma sensação de peso. Depois exames, biópsia, o tumor ainda não era grande, operável, mas com a retirada total da próstata. E os remédios para controlar a doença, tomados diariamente, doses de horror, foram provocando impotência, até que sua mãe e eu desistimos. Ela nunca disse nada, nem uma palavra, fingindo naturalidade. Mulher elegante, a Beatriz. Não reclamou, não quis conversa, não discutiu, não comentou com ninguém, que eu soubesse. Continuou a me tratar como sempre. Eu, seu marido há tantos anos, passei a amigo, pai, irmão. Talvez seja esse mesmo o destino dos casamentos com o passar do tempo, mas no nosso caso tudo se transformou de uma só vez.
Continuamos juntos como se nunca tivéssemos sido amantes, sempre próximos, dois irmãos siameses, ou quase isso, evitando as zonas de perigo, contornando as passagens onde adivinhávamos tensões, escapulindo dos terrenos arenosos em que intuíamos confronto, fugindo das várzeas alagadas onde o perigo de atolar nos espreitava, buscando sempre as vias pavimentadas, por vezes pegando estradas vicinais, cada qual cumprindo a sua parte no acordo nunca dito, jamais expresso por nenhum de nós, mas nem por isso menos forte, que valia mais que contrato passado em cartório, com testemunhas e firma reconhecida.
Sou muito grato a Beatriz, vivemos juntos tantos anos, lado a lado, à medida que o tempo passava ela se esmerava mais na educação de vocês, como se investisse toda a sua energia, que certamente tinha de sobra, nas duas crias, fingindo que nunca houve problema, fazendo de conta que era muito natural ser casada com um homem que diariamente ingeria poções controladoras da doença que poderia levá-lo à morte, mas que ao mesmo tempo impediam o seu desempenho como homem. Efeito colateral, disse o médico. E que efeito!
Na contramão da lógica, o chamado para Beatriz veio primeiro e eu, Otaviano, fui deixado em banho-maria. Até hoje está muito presente para mim o espanto da família, as pessoas perguntando umas às outras e nem mesmo se preocupando em esconder o que pensavam, como que é que a morte preferiu levar Beatriz, deixando de lado quem estava por um fio? Ninguém sabia, nem ela, só nos contaram meses antes de sua morte, quando ela se inscreveu como doadora de sangue, que tinha o mal de Chagas, provavelmente adquirido durante a sua infância na roça, naquela região infestada por barbeiros.
Li tudo que encontrei sobre esses insetos, você sabe que eu sempre me aprofundo, para conhecer melhor o potencial diabólico desses seres abomináveis, que mordem animais infectados e depois transmitem a doença, deixando sua marca sinistra nas pessoas, geralmente enquanto dormem. Passei noites pensando em como teria sido a contaminação de Beatriz, em que momento ocorreu a condenação, e o porquê de ninguém tê-la descoberto enquanto havia tempo.
Depois que ela se foi, passei catorze anos dedicados à criação de vocês, compenetrado da condição de viúvo. Percebi que não aguentaria mais outra perda como a de Beatriz, e fugi de todas as mulheres que apareceram. Que não eram muitas, pois a minha cara amarrada, construída deliberadamente, afastava as pessoas que tentavam se aproximar. Eu era o viúvo de Beatriz, para todos os efeitos, e não queria ser mais nada.
Até que surgiu Ana Clara. Aparentemente, nada tinha de especial, sequer era bonita. Completamente diferente de Beatriz. Mas, talvez porque tivesse pernas compridas e andasse como a pantera cor-de-rosa, percebi nela certa graça, um quê de travessura, de brincadeira, que no início não levei muito a sério, mas também não deixei de levar.
Depois veio a noite de São João, talvez você se lembre daquela festa que sua tia Elvira fez, no terreno ao lado da casa dela. Animado com as doses de quentão e de leite de onça, quis entrar na quadrilha, imagine, o velho Otaviano, duro como uma vassoura, tentando seguir o ritmo da sanfona. Ana Clara me tomou pelo braço com naturalidade, como se nunca tivesse feito outra coisa na vida, vestida de noiva do jeca. Eu, o sempre viúvo, o mais empedernido de todos até então, fui o noivo da noite. Naquela noite soube, com toda a certeza, que minha viuvez tinha terminado.
A decisão de me casar com ela foi tomada rapidamente, questão de dias. E a outra, que complementava a primeira, sem a qual eu não poderia ser candidato a marido, foi antecedida de uma visita ao médico. Levei um questionário escrito, para não me esquecer de nada. Perguntei-lhe o que poderia acontecer, se eu parasse de tomar o remédio. Meticuloso, muito consciente de suas obrigações, ele tentou dissuadir-me da ideia, explicando, com eu suspeitava, que sem a medicação o risco de contrair a doença de novo era enorme, e que provavelmente seria no mesmo local. Mas o que eu queria mesmo saber era que probabilidade havia de voltar a ser potente, como era antes de contrair a doença. Garantiu-me que eu tinha quase cem por cento de chance, se me libertasse dos efeitos colaterais da medicação de controle.
Mentiria para você, filha, se lhe dissesse que tive de refletir para me decidir pela suspensão. Tudo me parecia tão óbvio, tão claro, poucas vezes tive uma certeza cristalina como aquela. Naquela tarde joguei fora todo o estoque, três caixas ainda sem abrir. Minhas mãos não tremeram, não tive taquicardia, nem fui acometido daqueles ataques de suor que você conhecia. Quando amarrei o saco de lixo e fui até a lixeira, senti uma leveza enorme. Passei a tarde ouvindo música e tomei duas latas de cerveja.
Depois do casamento, não voltei a pensar no assunto. Foi um ano de poucas reflexões e talvez por isso mesmo de uma felicidade intensa, palpável. Quando me lembro daqueles meses eu tenho a mesma sensação que me provocavam as tangerinas quase vermelhas e sumarentas nos supermercados. Ana Clara era assim, aberta e úmida como uma fruta madura. Perto dela era-me impossível pensar, tudo me parecia irreal e destituído de importância, só ela contava, com suas saias amplas e rodadas, estampadas de florzinhas, seus imensos brincos de cigana, seu rabo de cavalo e seus tops de cores claras.
Nunca viajei tanto como naquele período. O gosto dela pela vida me contaminava. Interessava-se por tudo, até um alfinete poderia prender sua atenção, se ela vislumbrasse nele algo de diferente. O viúvo finalmente saíra de sua toca, deixara seus emaranhados de pensamentos para tomar caldo de cana nas feiras, comer couve com torresmo nos botecos, pasteis gordurosos vendidos na rua e se deixar levar por cada dia que começava. Li muito pouco, amei, dancei, bebi além da conta, talvez, e ri muito, como nunca rira.
Meses depois, os sintomas voltaram. Quando procurei novamente o médico, já tinha a convicção de que a doença retornara, agora com força total. Fui apenas confirmar o diagnóstico. Sabia que não teria uma segunda chance, não me pergunte como. Mesmo naqueles instantes de medo, quando se vai buscar o resultado de um exame importante, não senti remorso algum. Fui tomado por uma grande calma, uma certeza de que tudo estava no lugar adequado e que, afinal de contas, eu tinha sido um bom protagonista. Ana Clara certamente arranjará um novo companheiro, quando tudo estiver consumado. Mas ela não me preocupa, não creio que sua vontade de viver seja algo passível de ser perdido.
 Quanto a vocês, queridas filhas, só peço que não chorem. Não ocorreu nenhuma tragédia, olhando-se por qualquer ângulo o saldo é positivo. Não houve traições do destino ou de quem quer que seja: as cartas estavam na mesa e eu escolhi as que quis, as que julguei mais coloridas e bonitas. Se fui egoísta, se não pensei em vocês, esse julgamento não me cabe. Mas como é muito tarde para mim, peço-lhes que me julguem com alguma benevolência.


3 comentários:

  1. Seu conto é muito original, mas passível de acontecer. Como caracterizar uma escolha? Tudo depende do que se vai obter dela e, às vezes, a morte perde. É raro, mas pode perder. Uma vida feliz, um final planejado. Sabe que gostei muito do conto? A escolha foi feita com os sentidos e o coração... Não sou anônima, sou Edna.

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  2. Conto forte, marcante, que mexe com qualquer um que leia.
    Parabéns, Rosângela!

    []s!

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