terça-feira, 27 de setembro de 2016

EX-ALUNA FAZ ESTUDO ACADÊMICO SOBRE "CASTELOS DE PAPEL"

O livro "Castelos de papel" foi o escolhido por Marília Martins Ferreira, ex-aluna de literatura de Menalton Braff, para ser analisado em estudo acadêmico na Universidade Federal do Triângulo Mineiro.

Publicamos, a seguir, um artigo no qual Marília justifica sua escolha.

Paixão antiga x Paixão recente                                          
(Marília Martins Ferreira*)

“Se há um elemento do histórico em toda poesia, há um elemento da poesia em cada relato histórico do mundo” – Fernando Pessoa

Resumo

A ligação entre Literatura e História acontece por vários motivos. Alguns afirmam que elas se unem porque ambas são parte das Ciências Humanas. Outros defendem a tese de que História e a Literatura são uma mesma coisa. Outros tantos acreditam que a Literatura e a História têm como objeto e inspiração, o homem. Se a História é a ciência “farejadora de homens” como muito bem afirmou Marc Bloch, a Literatura é a farejadora da forma que as palavras assumirão para traduzir as ações e os sentimentos desse mesmo homem. Ademais, ambas se utilizam da escrita para transmitir o que desejam, mesmo que as técnicas usadas por elas sejam distintas.

Palavras-chaves: Literatura, História, discurso.

Talvez eu devesse começar esse ensaio justificando minha paixão recente – a História, mesmo sabendo que paixões apenas surgem sem justificativa, de repente amor. Entretanto, na posição de apaixonada, sinto que se eu fizer isso, vou trair uma paixão antiga, um amor que me arrebata e me faz suspirar – a Literatura. Logo, sendo parte e pivô desse triângulo amoroso, sinto-me obrigada à fidelidade a essas duas paixões que tanto se encontram e se pertencem. Ademais, para não trair o tempo de relacionamento que tenho com cada uma, obedecerei à ordem cronológica dos amores começando pela minha paixão decenária.

Embora eu seja enamorada, há mais de dez anos, pela Literatura, meu relato ficaria incompleto se, ao contar minha história de amor com ela, eu não contasse também minha relação com o autor que escolhi como objeto de pesquisa - Menalton Braff. Ambos os relacionamentos começaram juntos, contudo, sei que não escolhi esse autor e essa área do conhecimento, mas eles me escolheram. Nisso acredito porque, para mim, Literatura e encantamento por autores vão além de escolhas pessoais ou motivos concretos, é mesmo como uma relação de amor: ama-se mesmo que existam milhares de motivos para não amar. Literatura é coisa de pele, lágrimas e falta de ar; é se descobrir nos livros e se reconhecer nos personagens; é ter a certeza de que a vida não basta.

Essa relação primeira começou no Ensino Médio período no qual eu tive aulas com o Menalton. As aulas de Literatura que ele ministrava foram me absorvendo até que eu me vi totalmente presa. E, conforme ela me arrebatava, eu descobria autores que me provocavam as mais diversas sensações. Destarte, amei Lispector como louca. Gabriel Garcia Marques me excitou e me provoca. Kafka me descascou e me intriga. Machado me destruiu e me constrói novamente. Alencar me mostrou as mulheres que foram e a mulher que eu sou. Menalton eu olhei nos olhos e escutei o tom da voz.
Assim, mesmo que os autores tidos como clássicos fizessem minha existência ter ainda menos sentido por oferecer tantos sentidos, Braff dava sentido ás minhas leituras e me empurrava para elas. A vibração que eu sentia a cada nova descoberta oferecida pela Literatura era compartilhada com ele que foi educador, incentivador e amigo. Quando comecei a ler seus livros, deixei de viver a Literatura que ele me mostrava para ler a Literatura que ele criava. As metáforas bem construídas, os personagens intrigantes que me deixavam sem sono, o captar de momentos ímpares da vida de seres humanos que poderiam ser qualquer um ou nenhum de nós eram esculpidos por ele de uma forma única. Tudo isso era absorvido por mim e exalado para ele em uma troca mútua de vivência e experiência na qual leitor e autor se faziam conhecer.

A Literatura e o Menalton me escolheram porque me ofereceram muito mais que linguagem conotativa, representação do “real”, ficção e deslumbramento. Eu convivi, senti o sabor do abraço e do beijo na testa, ouvi todos os meus questionamentos serem respondidos e todos os meus medos serem compreendidos. Eu era como Adão – ele me oferecia sua obra e eu ia desfrutando enquanto ele me observava e torcia pelo meu crescimento.

Ler a obra de Menalton com a formação que tenho hoje é descobrir que ele e a Literatura são faces de uma mesma moeda que valoriza nossa contemporaneidade.
Talvez hoje ele ainda não seja tão conhecido e reconhecido, mas estudar o que poucas pessoas já
estudaram é extremamente prazeroso e motivador, pois as descobertas serão minhas. Assim, quando elas virem á tona, relembrarei as novidades vividas na sala de aula  reviverei todo o meu desenvolvimento literário tendo mantida a certeza de que se eu precisar de uma resposta, uma motivação, um empurrão ou um beijo na testa, Menalton estará presente.

Entretanto, ainda que a Literatura tenha tomado meu coração e mesmo com a certeza da presença de Menalton na minha formação e na minha vida, ambos não impediram que eu me deixasse levar pelo poder de sedução da História. Essa “ciência farejadora de homens”, como bem definiu Marc Bloc, destruiu todas as minhas certezas ao mesmo tempo em que construiu perguntas incontáveis. Essa relação com a ciência do tempo começou em uma aula de “Raízes da Modernidade” na qual percebi que a linguagem, instrumento da Literatura, era igualmente responsável, na escrita da História, pela construção e manutenção de conceitos, “verdades” e determinações que eu jamais havia questionado.
Dessa forma, logo percebi que a História, assim como a Literatura, também é linguagem, discurso e construção. E essa edificação feita pela História, de acordo com Michel de Certeau, possui a capacidade de dar sentido à vida do outro, mesmo que esse sentido seja construído a partir do lugar do qual o historiador o fez.  Ademais, essa criação de sentidos é, e precisa ser embasada em técnicas próprias, em fontes e vestígios que busquem comprovar aquilo que o historiador quer afirmar. Nesse sentido, essas técnicas são amplamente diferentes daquelas usadas pela Literatura para estruturar o discurso literário, metafórico por excelência.

Contudo, mesmo sendo embasada em técnicas próprias e justamente por isso ser considerada uma ciência, a História inevitavelmente é subjetiva, parcial e qualquer coisa menos do que uma verdade posta e irreversível. Assim é, pois ela é construída por seres humanos que a escrevem de um lugar limitado, a partir de uma tradição própria e de uma vivência única que interferem na seleção daquilo que eles irão escrever e do que eles querem que seja reconhecido como parte da História. E é a presença dessa característica intrínseca, a subjetividade, que a História se assemelha á Literatura novamente.

Deste modo, a partir da percepção de que a História é um universo o qual oferece não apenas respostas, mas perguntas; não apenas acalanta, mas intriga; não somente explica, mas complica e de que consegue ser reescrita, remoldada, recontada e reinventada é que ela me ganhou. Essa possibilidade de descobrir cotidianamente algo novo me levou a dúvidas que eu jamais teria suscitado sozinha. E então, assim como acontece aos desavisados e distraídos, estava eu novamente louca de paixão. Inebriada, novamente uma ciência humana me tirava sorrisos, mas me fazia chorar; trazia-me a alegria das descobertas, mas também o desespero da incerteza; vestia-me de conhecimentos e me certificava de que eu nada sabia. E o amor, como bem definiu Camões, “é ferida que dói e não se sente”; ”é um contentamento descontente”.

Enfim, quando me vi apaixonada e conquistada por essas duas humanidades, não pude escolher apenas uma, não havia aquela que eu amasse mais e melhor. E quanto mais eu tentasse me desvencilhar de alguma delas, mais elas me escolhiam e me mostravam que poderiam conviver em harmonia. Assim sendo, não me restou outra opção além da de viver esse triângulo amoroso. Incorporei a “Dona Flor e seus dois maridos” e resolvi que viveríamos bem a convivência tripla. Para ajudar nessa missão, durante as aulas sobre a “República brasileira”, iniciei contato com várias obras literárias, que discorriam sobre o período republicano, e com diversos textos que faziam justamente a ligação entre minhas duas grandes amadas – Literatura e História. Qual não foi minha surpresa, muita gente já vivia esse maravilhoso triângulo amoroso e pude finalmente viver minha relação tripla sem peso de consciência.

Dentre os vários autores que conheci, alguns merecem destaque. Valdeci Rezende Borges, mestre em História Social, por exemplo, produziu a obra “História e Literatura: uma relação de troca e cumplicidade” na qual afirma que “História e Literatura se fundem numa relação de troca e cumplicidade. A História está contida na Literatura, e ao lermos uma, lemos a outra”. Borges alega isso, pois acredita que o texto literário acaba sendo um termômetro registrador das mudanças no imaginário social de uma sociedade em um determinado espaço e tempo. Para ele, através das narrativas literárias, é possível conhecer aspectos relacionados tanto à cultura quando ao modo organizacional de um determinado povo. Contudo, Borges deixa claro que esse tipo de texto não retrata a verdade, mas é uma representação desta que, apesar de ser altamente preocupada com a verossimilhança, nunca mostra a realidade tal como ela é ou foi de fato.

Igualmente a Borges, a autora, professora, poeta e doutora em História, Sandra Jatahy Pesavento busca, ao longo do seu texto: “O mundo como texto: leituras da História e da Literatura”, aproximar as duas áreas humanas em questão a partir do uso da Literatura como fonte histórica. Nesse trabalho, ela discute ainda questões como a ficção, a veracidade e a verossimilhança. Assim, a partir dessa perspectiva, Pesavento objetiva analisar História e Literatura a partir da certeza de que ambas nos explicam o mundo a partir do texto. De acordo com ela: (...) “as narrativas histórica e literária, entendendo-as como discursos que respondem às indagações dos homens sobre o mundo, (...) oferecem o mundo como texto”.

 Outro autor importante na análise da relação entre Literatura e História é Roger Chartier. Em sua obra “A Beira da Falésia”, o historiador francês busca a aproximação dessas áreas esclarecendo que embora ambas sejam narrativas, a ficção feita pela Literatura não é igual á narrativa histórica, visto que essa pressupõe metodologias e aparatos teóricos próprios e distintos das utilizadas por aquela. Nesse sentido, Chartier afirma que é necessário “determinar as propriedades específicas da narrativa de história em relação a todas as outras”.

Seguindo essa linha ambígua de aproximação e distanciamento entre História e Literatura é que quero continuar me inebriando. Essas duas paixões retratam como viveu, o que viveu e o que queria uma determinada sociedade em uma determinada época; elas nos escancaram o mundo utilizando o texto escrito, a linguagem e a palavra e são dependentes da narrativa. Entretanto, enquanto a História tem como objetivo a revelação de fatos reais baseados na análise de documentos e fontes, a Literatura se preocupa em representar o real de forma verossimilhante, mas se utilizando de uma linguagem obrigatoriamente metafórica.

 Todavia, o que importa não são essas semelhanças e aproximações que elas possuem, mas o estrago que elas fazem na vida daqueles que arriscam conviver com elas. Quem se entrega á Literatura e á História precisa estar disposto não apenas a viver uma vida tripla, um triângulo amoroso á moda de Jorge Amado, mas ter em mente que todas as suas certezas serão desfeitas e refeitas diariamente. Aquele que conhece essas duas áreas não consegue mais antever uma encruzilhada, há apenas um único caminho – se deixar apaixonar pelo encanto e pela sedução de cada uma delas.

Referências bibliográficas

BORGES, Valdeci R. “História e Literatura: Algumas Considerações”. Revista de Teoria da
História Ano 1, Número 3. Goiânia: UFG, junho/ 2010. Disponível em:
http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/3238135.pdf
CHARTIER, Roger. À beira da falésia. A história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre:
UFRGS, 2002.
PESAVENTO, Sandra Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.

Ministério da educação
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Curso de Licenciatura em História
U.T: Dimensões, Abordagens e Domínios da História.
Docente: Cláudia Regina Bovo
Discente: Marília Martins Ferreira

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