O livro "Castelos de papel" foi o escolhido por Marília Martins Ferreira, ex-aluna de literatura de Menalton Braff, para ser analisado em estudo acadêmico na Universidade Federal do Triângulo Mineiro.
Publicamos, a seguir, um artigo no qual Marília justifica sua escolha.
Paixão antiga x Paixão recente
Publicamos, a seguir, um artigo no qual Marília justifica sua escolha.
Paixão antiga x Paixão recente
(Marília Martins Ferreira*)
“Se há um elemento do
histórico em toda poesia, há um elemento da poesia em cada relato histórico do
mundo” – Fernando Pessoa
Resumo
A ligação entre Literatura e
História acontece por vários motivos. Alguns afirmam que elas se unem porque ambas
são parte das Ciências Humanas. Outros defendem a tese de que História e a
Literatura são uma mesma coisa. Outros tantos acreditam que a Literatura e a
História têm como objeto e inspiração, o homem. Se a História é a ciência
“farejadora de homens” como muito bem afirmou Marc Bloch, a Literatura é a
farejadora da forma que as palavras assumirão para traduzir as ações e os
sentimentos desse mesmo homem. Ademais, ambas se utilizam da escrita para
transmitir o que desejam, mesmo que as técnicas usadas por elas sejam
distintas.
Palavras-chaves:
Literatura, História, discurso.
Talvez eu devesse
começar esse ensaio justificando minha paixão recente – a História, mesmo
sabendo que paixões apenas surgem sem justificativa, de repente amor.
Entretanto, na posição de apaixonada, sinto que se eu fizer isso, vou trair uma
paixão antiga, um amor que me arrebata e me faz suspirar – a Literatura. Logo,
sendo parte e pivô desse triângulo amoroso, sinto-me obrigada à fidelidade a
essas duas paixões que tanto se encontram e se pertencem. Ademais, para não
trair o tempo de relacionamento que tenho com cada uma, obedecerei à ordem cronológica
dos amores começando pela minha paixão decenária.
Embora eu seja
enamorada, há mais de dez anos, pela Literatura, meu relato ficaria incompleto
se, ao contar minha história de amor com ela, eu não contasse também minha
relação com o autor que escolhi como objeto de pesquisa - Menalton Braff. Ambos
os relacionamentos começaram juntos, contudo, sei que não escolhi esse autor e
essa área do conhecimento, mas eles me escolheram. Nisso acredito porque, para
mim, Literatura e encantamento por autores vão além de escolhas pessoais ou
motivos concretos, é mesmo como uma relação de amor: ama-se mesmo que existam
milhares de motivos para não amar. Literatura é coisa de pele, lágrimas e falta
de ar; é se descobrir nos livros e se reconhecer nos personagens; é ter a
certeza de que a vida não basta.
Essa relação primeira
começou no Ensino Médio período no qual eu tive aulas com o Menalton. As aulas
de Literatura que ele ministrava foram me absorvendo até que eu me vi
totalmente presa. E, conforme ela me arrebatava, eu descobria autores que me
provocavam as mais diversas sensações. Destarte, amei Lispector como louca.
Gabriel Garcia Marques me excitou e me provoca. Kafka me descascou e me
intriga. Machado me destruiu e me constrói novamente. Alencar me mostrou as
mulheres que foram e a mulher que eu sou. Menalton eu olhei nos olhos e escutei
o tom da voz.
Assim, mesmo que os
autores tidos como clássicos fizessem minha existência ter ainda menos sentido
por oferecer tantos sentidos, Braff dava sentido ás minhas leituras e me
empurrava para elas. A vibração que eu sentia a cada nova descoberta oferecida
pela Literatura era compartilhada com ele que foi educador, incentivador e
amigo. Quando comecei a ler seus livros, deixei de viver a Literatura que ele
me mostrava para ler a Literatura que ele criava. As metáforas bem construídas,
os personagens intrigantes que me deixavam sem sono, o captar de momentos
ímpares da vida de seres humanos que poderiam ser qualquer um ou nenhum de nós
eram esculpidos por ele de uma forma única. Tudo isso era absorvido por mim e
exalado para ele em uma troca mútua de vivência e experiência na qual leitor e
autor se faziam conhecer.
A Literatura e o
Menalton me escolheram porque me ofereceram muito mais que linguagem
conotativa, representação do “real”, ficção e deslumbramento. Eu convivi, senti
o sabor do abraço e do beijo na testa, ouvi todos os meus questionamentos serem
respondidos e todos os meus medos serem compreendidos. Eu era como Adão – ele
me oferecia sua obra e eu ia desfrutando enquanto ele me observava e torcia
pelo meu crescimento.
Ler a obra de Menalton
com a formação que tenho hoje é descobrir que ele e a Literatura são faces de
uma mesma moeda que valoriza nossa contemporaneidade.
Talvez hoje ele ainda não
seja tão conhecido e reconhecido, mas estudar o que poucas pessoas jáestudaram é extremamente prazeroso e motivador, pois as descobertas serão minhas. Assim, quando elas virem á tona, relembrarei as novidades vividas na sala de aula reviverei todo o meu desenvolvimento literário tendo mantida a certeza de que se eu precisar de uma resposta, uma motivação, um empurrão ou um beijo na testa, Menalton estará presente.
Entretanto, ainda que a
Literatura tenha tomado meu coração e mesmo com a certeza da presença de
Menalton na minha formação e na minha vida, ambos não impediram que eu me
deixasse levar pelo poder de sedução da História. Essa “ciência farejadora de
homens”, como bem definiu Marc Bloc, destruiu todas as minhas certezas ao mesmo
tempo em que construiu perguntas incontáveis. Essa relação com a ciência do
tempo começou em uma aula de “Raízes da Modernidade” na qual percebi que a
linguagem, instrumento da Literatura, era igualmente responsável, na escrita da
História, pela construção e manutenção de conceitos, “verdades” e determinações
que eu jamais havia questionado.
Dessa forma, logo
percebi que a História, assim como a Literatura, também é linguagem, discurso e
construção. E essa edificação feita pela História, de acordo com Michel de
Certeau, possui a capacidade de dar sentido à vida do outro, mesmo que esse
sentido seja construído a partir do lugar do qual o historiador o fez. Ademais, essa criação de sentidos é, e
precisa ser embasada em técnicas próprias, em fontes e vestígios que busquem
comprovar aquilo que o historiador quer afirmar. Nesse sentido, essas técnicas
são amplamente diferentes daquelas usadas pela Literatura para estruturar o
discurso literário, metafórico por excelência.
Contudo, mesmo sendo
embasada em técnicas próprias e justamente por isso ser considerada uma
ciência, a História inevitavelmente é subjetiva, parcial e qualquer coisa menos
do que uma verdade posta e irreversível. Assim é, pois ela é construída por
seres humanos que a escrevem de um lugar limitado, a partir de uma tradição
própria e de uma vivência única que interferem na seleção daquilo que eles irão
escrever e do que eles querem que seja reconhecido como parte da História. E é
a presença dessa característica intrínseca, a subjetividade, que a História se
assemelha á Literatura novamente.
Deste modo, a partir da
percepção de que a História é um universo o qual oferece não apenas respostas,
mas perguntas; não apenas acalanta, mas intriga; não somente explica, mas
complica e de que consegue ser reescrita, remoldada, recontada e reinventada é
que ela me ganhou. Essa possibilidade de descobrir cotidianamente algo novo me
levou a dúvidas que eu jamais teria suscitado sozinha. E então, assim como
acontece aos desavisados e distraídos, estava eu novamente louca de paixão.
Inebriada, novamente uma ciência humana me tirava sorrisos, mas me fazia chorar;
trazia-me a alegria das descobertas, mas também o desespero da incerteza;
vestia-me de conhecimentos e me certificava de que eu nada sabia. E o amor,
como bem definiu Camões, “é ferida que dói e não se sente”; ”é um contentamento
descontente”.
Enfim, quando me vi
apaixonada e conquistada por essas duas humanidades, não pude escolher apenas
uma, não havia aquela que eu amasse mais e melhor. E quanto mais eu tentasse me
desvencilhar de alguma delas, mais elas me escolhiam e me mostravam que
poderiam conviver em harmonia. Assim sendo, não me restou outra opção além da
de viver esse triângulo amoroso. Incorporei a “Dona Flor e seus dois maridos” e
resolvi que viveríamos bem a convivência tripla. Para ajudar nessa missão,
durante as aulas sobre a “República brasileira”, iniciei contato com várias
obras literárias, que discorriam sobre o período republicano, e com diversos
textos que faziam justamente a ligação entre minhas duas grandes amadas –
Literatura e História. Qual não foi minha surpresa, muita gente já vivia esse
maravilhoso triângulo amoroso e pude finalmente viver minha relação tripla sem
peso de consciência.
Dentre os vários autores que
conheci, alguns merecem destaque. Valdeci Rezende Borges, mestre em História
Social, por exemplo, produziu a obra “História e Literatura: uma relação de
troca e cumplicidade” na qual afirma que “História e Literatura se fundem numa
relação de troca e cumplicidade. A História está contida na Literatura, e ao
lermos uma, lemos a outra”. Borges alega isso, pois acredita que o texto
literário acaba sendo um termômetro registrador das mudanças no imaginário
social de uma sociedade em um determinado espaço e tempo. Para ele, através das
narrativas literárias, é possível conhecer aspectos relacionados tanto à cultura
quando ao modo organizacional de um determinado povo. Contudo, Borges deixa
claro que esse tipo de texto não retrata a verdade, mas é uma representação
desta que, apesar de ser altamente preocupada com a verossimilhança, nunca
mostra a realidade tal como ela é ou foi de fato.
Igualmente a Borges, a autora,
professora, poeta e doutora em História, Sandra Jatahy Pesavento busca, ao
longo do seu texto: “O mundo como texto: leituras da História e da Literatura”,
aproximar as duas áreas humanas em questão a partir do uso da Literatura como
fonte histórica. Nesse trabalho, ela discute ainda questões como a ficção, a
veracidade e a verossimilhança. Assim, a partir dessa perspectiva, Pesavento
objetiva analisar História e Literatura a partir da certeza de que ambas nos
explicam o mundo a partir do texto. De acordo com ela: (...) “as narrativas
histórica e literária, entendendo-as como discursos que respondem às indagações
dos homens sobre o mundo, (...) oferecem o mundo como texto”.
Outro autor importante na análise da relação
entre Literatura e História é Roger Chartier. Em sua obra “A Beira da Falésia”,
o historiador francês busca a aproximação dessas áreas esclarecendo que embora
ambas sejam narrativas, a ficção feita pela Literatura não é igual á narrativa
histórica, visto que essa pressupõe metodologias e aparatos teóricos próprios e
distintos das utilizadas por aquela. Nesse sentido, Chartier afirma que é
necessário “determinar as propriedades específicas da narrativa de história em
relação a todas as outras”.
Seguindo essa linha ambígua de
aproximação e distanciamento entre História e Literatura é que quero continuar
me inebriando. Essas duas paixões retratam como viveu, o que viveu e o que
queria uma determinada sociedade em uma determinada época; elas nos escancaram
o mundo utilizando o texto escrito, a linguagem e a palavra e são dependentes
da narrativa. Entretanto, enquanto a História tem como objetivo a revelação de
fatos reais baseados na análise de documentos e fontes, a Literatura se
preocupa em representar o real de forma verossimilhante, mas se utilizando de
uma linguagem obrigatoriamente metafórica.
Todavia, o que importa não são essas
semelhanças e aproximações que elas possuem, mas o estrago que elas fazem na
vida daqueles que arriscam conviver com elas. Quem se entrega á Literatura e á
História precisa estar disposto não apenas a viver uma vida tripla, um
triângulo amoroso á moda de Jorge Amado, mas ter em mente que todas as suas
certezas serão desfeitas e refeitas diariamente. Aquele que conhece essas duas
áreas não consegue mais antever uma encruzilhada, há apenas um único caminho –
se deixar apaixonar pelo encanto e pela sedução de cada uma delas.
Referências
bibliográficas
BORGES, Valdeci R.
“História e Literatura: Algumas Considerações”. Revista de Teoria da
História Ano 1, Número
3. Goiânia: UFG, junho/ 2010. Disponível em:
http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/3238135.pdf
CHARTIER, Roger. À
beira da falésia. A história entre incertezas e inquietude. Porto Alegre:
UFRGS, 2002.
PESAVENTO, Sandra
Jatahy. História e História Cultural. Belo Horizonte: Autêntica, 2003.
*
Ministério da educação
Universidade Federal do Triângulo Mineiro
Curso de Licenciatura em História
U.T: Dimensões, Abordagens e Domínios da História.
Docente: Cláudia Regina Bovo
Discente: Marília Martins Ferreira
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