domingo, 26 de fevereiro de 2017

PARA LER NO CARNAVAL 1


De hoje até terça, publicaremos contos de Menalton Braff para você ler durante o carnaval. O de hoje foi extraído do livro "A coleira no pescoço", editado pela Bertrand Brasil.

Homens magros


 Os olhos abertos de Serafim investigavam os silêncios da longa noite. Olhos parados, sem pestanejar, abertos até às lágrimas. Experimentou afastar-se das fartas carnes de Alzira e percebeu que o inverno finalmente havia chegado. Então era inverno, como já sabiam suas pernas finas e treinadas. Mesmo assim manteve-se distante, disposto ao sofrimento. Precisava agora ter certeza de que sobreviveria sem o calor da mulher. Era o que vinha pensando ultimamente porque a vida com tantas manchas escuras a contornar ia-se tornando uma tormenta, sem muito prazer. E o passado não se deixava apagar. Por mais que esfregasse, não desaparecia, cicatriz que se carrega para sempre.
A seu lado, solta redonda em todo o peso, Alzira ressonava as profundezas da vida. Serafim, por um instante, pensou tê-la ouvido falar: aquela respiração forte e sonora. Apurou seu ouvido no vazio, o nada. Com que sonhos dormia Alzira para que dormisse tão completamente? Esperou mais algum tempo, inteiro aberto, em silêncio, o pigarro a custo engolido. Ergueu a cabeça pouco mais de meio palmo, investigativo. Ela não se manifestava como um ser que vive, um ente. Era ali apenas um volume, peso e altura com a respiração forte e sonora.  

A ele somente competiam as asperezas da insônia. Somente a ele, que um dia pensara no passado como escura mancha que esponja e água fazem desaparecer. Foi o que disse para Alzira, naquela noite, à beira de uma grande paixão. Teu passado não me interessa. A vida para nós dois começa agora, neste quarto de bordel. Visivelmente abraçados. Desde então o sono de Alzira veio engordando, tranqüilo e pesado, protegido por um homem a quem podia dedicar exclusividade.  
Recostou novamente a cabeça no travesseiro, pedra sobre pedra, enquanto as pernas magras, pressentindo cãibras, tratavam de se achegar às coxas mornas e macias. Calor é vida, concluiu sem muita certeza. Um café bem quente na cozinha, chegou a pensar, o corpo colado ao da mulher. Desistiu, contudo, ao lembrar-se de que o café é excitante. Talvez não sonhasse com nada, ela, o corpo apaziguado  finalmente, mortas as labaredas que a tornaram a rainha da zona. Era agora uma senhora na cama com seu marido. Meses depois daquela longínqua primeira noite, de casa montada, casados, Alzira confessou-lhe que nunca perdera a esperança: um dia havia de aparecer-lhe um príncipe, alguém que a tirasse dali. Viveria então tempos de paz e sossego, o passado escondido por trás de grossas nuvens, aqueles flocos brancos.  
O ódio chegou aos poucos e tão sutilmente que nem foi percebido nos primeiros anos.
Uma noite, à frente da televisão, depois do jantar, de repente Alzira suspirou. Só então Serafim notou que a esposa tornara-se consumidora compulsiva de chocolate. Aquele suspiro ocupou-lhe a mente durante algumas horas. No dia seguinte ela suspirou novamente e Serafim descobriu que ela tinha conta na bombonière da avenida, onde se abastecia diariamente. A raiva durou pouco mais de uma semana. Acenou com viagens, cinema, passeios. Ela não se animava, prisioneira de uma saudade opressiva que não poderia confessar. Serafim acostumou-se aos suspiros, como era melhor para a paz doméstica.
Sem ocupação para seus olhos noturnos ou para os membros encolhidos sobre a cama, sem espaço onde vaguear, confinado no escuro, ocupava o tempo, cada centímetro daquelas noites sem fim, com a lembrança de gestos antigos e desbotados. Sentiu-se novamente tentado a dispensar o calor de Alzira quando se lembrou de um domingo em que assistiam a um programa de auditório. No fundo do palco, sem nunca parar, um bando de garotas de sorriso, gestos e roupa idênticos faziam evoluções que tentavam desesperadamente parecer sensuais. Serafim comentou a falta de jeito das meninas, o grotesco daquelas máscaras infantis imitando um quadro erótico. Eram tantas que só existiam como repetições especulares: individualidades anuladas.
- Você não acha?
Alzira não suspirou nem respondeu. Ela não existia mais para o que se passava em redor. Seus olhos tristes tinham-se apagado para a televisão, para o marido, tinham abandonado a sala mal iluminada e viajavam por outros tempos. Por onde?, Serafim perguntou.
Uma infinidade de vezes Serafim perguntou por onde andavam os pensamentos da mulher. No início ela se trancava por dentro, ninguém com ela no quarto escuro da memória. No início. Expulso assim, o marido, deixou que lhe medrasse o rancor. Sentiu-se ridículo com tamanha insistência, então calou. Para sempre, ele pensava, uns restos de sangue levando-lhe calor até a cabeça. Aquelas ausências de Alzira tornavam-se freqüentes. O rancor de Serafim tornava-se cada vez maior.
Pairava no céu, todos os dias, um corvo de asas imensas, que voava em círculos lentos, muito lentos, sem deixar espaço para o ar.
Cansada de seus próprios silêncios, um dia Alzira falou ao fim de um imenso bocejo:
- Sempre tive preferência por homens magros.
E o que fora uma afirmação distraída, entre um fim de almoço e a sesta regulamentar, tornou-se um hábito quase diário. Alzira melhorava de humor, tornando-se faladeira, desbocada, risonha. Tudo o que durante muito tempo Serafim vinha pedindo a Deus.
Por homens magros. Não tinha queixas contra o presente de Alzira. Talvez um pouco de exagero em sua alegria, mas respeitada pelo que lhes restava de família e admirada na vizinhança, onde se tornara conselheira. Poderia ser feliz, não fosse a naturalidade com que ela agora dera para comentar a vida em que a tinha encontrado um dia.
Quantos?, Serafim queria saber, mas a noite não respondia. Inventava cenas em que Alzira, a rainha, dançava nua sobre a mesa coberta de garrafas e cercada de admiradores.  Depois exigia que fizessem fila à porta de seu quarto. Na frente os magros, ordenava. Os pensamentos voejavam trêmulos pelo escuro do quarto como morcegos silenciosos. Era impossível apagar o passado. O marido sentia-se mergulhado nas dobras da gordura da esposa, quase sufocado, como ficara chorando muitas vezes, nestes últimos tempos, a cabeça entre os seios maternais de Alzira. Nem as lágrimas removiam aquelas manchas. 
Virou-se de costas para a mulher, com todo o cuidado, esperou um momento para ver se ela se mexia, então sentou-se na cama, as pernas penduradas no inverno. Quantos? Todas as noites dos anos todos, aquela preferência por homens magros. Suas carícias, suas babas, as gosmas com que a conspurcavam. Levantou-se tremendo e, sem acender a luz, foi para a cozinha. Precisava de um café bem quente, alguma coisa que o invadisse devolvendo-lhe o calor. O passado não existe, afirmava insistente e com raiva. É ficção que a gente se inventa pra dar ao presente a ilusão de realidade. Não existe, repetia ainda no corredor, não existe. E avançava resoluto pelo oco da noite. 
  Quando, de manhã, chegaram os policiais, encontraram Serafim vestido e a mala pronta. Constou do boletim de ocorrência que o réu aparentava extraordinária tranqüilidade. 

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