UM PROBLEMA DE IDENTIDADE
Noite é uma novela de Erico Verissimo publicada em 1954. E para que não se confunda, é bom que se explique: em estudos literários, a novela é uma forma do gênero narrativo, assim como o romance e o conto. Sua característica (me parece que a melhor definição é aquela da Profa. Dra. Nelly Novaes Coelho, da USP), é que as células dramáticas de que é composta, a novela, são apenas justapostas, sem que a primeira implique a segunda, e essa não tem como consequência necessária a terceira. E assim por diante. Uma cena não tem necessidade da anterior nem da posterior. Como, por exemplo, acontece no Dom Quixote.
A edição que vamos usar é a12ª, da Editora Globo, Porto Alegre, em 1980.
Para que se possa sentir com maior intensidade o drama da personagem principal, é bom que se leia o prefácio (apenas o parágrafo inicial) de Flávio Loureiro Chaves.
Pág. IX -"No asfalto das ciedades partiram-se os últimos vínculos que ligavam o homem ao mundo natural; precisamente ali perdeu-se a dimensão épica da existência tal como a expressou uma personagem de André Malraux - l'homme est ce qu'il fait. Na vida urbana, impessoal e mecanizada, o homem já não pode ser aquilo que ele faz; é aquilo que ele encontra feito na sequência das coisas acabadas e uniformizadas que ele consome, tornando-se um objeto amorfo entre outros objetos amorfos. A aspiração de um mundo a ser contruído substiuu-se pela certeza de que as coisas estão prontas e imutáveis diante de qualquer gesto transformador.
Essa intuição da inutilidade é a medida da nossa existência burguesa numa sociedade industrial."
E entramos finalmente na leitura da novela.
Pág. 1 - "NINGUÉM lhe prestou maior atenção, pois naquele local e hora - uma esquina da avenida principal da cidade: oito da noite - ele era apenas uma das muitas centenas de criaturas humanas que se moviam nas calçadas. À primeira vista sua aparência nada revelava deextraordinário. Era um homem de estatura mediana, teria quando muito trinta anos, trajava roupa de tropical gris e estava sem chapéu. Quem, entretanto, lhe examinasse o rosto mais de perto, notaria algo de anormal naqueles olhos cujas pupilas ora se esvaziavam, como as de certos loucos, ora se animavam dum atônito fulgor de medo, como as dum animal acuado."
(...)
"... pareceu que ia entrar pela porta duma casa de apartamentos, mas recuou e, depois de colidir com dois ou três passantes, estacou à beira da calçpada, moveu a cabeça dum lado para outro, como quem procura orientar-se, e deu um brusco passo à frente..."
(...)
"Olhou em torno e não reconheceu nada nem ninguém. Estava perdido numa cidade que jamais vira."
Pág. 2 - "Era como um homem que, despertando em quarto escuro, procurasse às cegas num terror quase pânico, uma janela para o ar livre, para a luz."
(...)
"Com o rosto colado ao poste, o Desconhecido escutava os ruídos da noite: o tropel e as vozes indistintas dos transeuntes na calçada; a surda trovoada do tráfego riscada pelo trombetear das buzinas e, a intervalos regulares, pelo tilintar das campainhas das sinaleiras."
Pág. 3 - "Alguém lhe deu um encontrão e ele se pôs a caminhar sem saber por que nem para onde."
Pág. 5 - "Abriu os olhos e se surpreendeu de novo em meio da multidão. Deixou-se levar aos empurrões, as pernas meio frouxas, a garganta seca e ardida, o coração a pulsar descompassado - até que atingiu a outra calçada. Foi enttão que avistou o Parque e lhe veio a ideia de que, se o alcançasse, estaria salvo."
Erico Verissimo é um autor da chamada Geração de 30 ou 2ª Geração do Modernismo brasileiro. A questão social, a circunstância do homem em sociedade são os temas que vão caracterizar uma época em que tudo converge para a 2ª Guerra Mundial. Note-se que o discurso do Erico é claro, direto, com uso parcimonioso de recrusos de retórica, que, entretanto acontecem como "trovoada do tráfego", "trombetear das buzinas".
Segundo Sartre, em seu Qu'est que ce litterature?, as palavras na literatura são coloridas, chamando para si a primeira atenção, só depois permitindo a visão do que lhes está além. Em termos da linguística, o significante sobrepuja o significado. Pois bem, usando-se a metáfora sartreana, pode-se dizer que a Geração de 30 procurou descolorir um pouco a palavra para que o que lhe está além apareça melhor.
Noite é uma novela de Erico Verissimo publicada em 1954. E para que não se confunda, é bom que se explique: em estudos literários, a novela é uma forma do gênero narrativo, assim como o romance e o conto. Sua característica (me parece que a melhor definição é aquela da Profa. Dra. Nelly Novaes Coelho, da USP), é que as células dramáticas de que é composta, a novela, são apenas justapostas, sem que a primeira implique a segunda, e essa não tem como consequência necessária a terceira. E assim por diante. Uma cena não tem necessidade da anterior nem da posterior. Como, por exemplo, acontece no Dom Quixote.
A edição que vamos usar é a12ª, da Editora Globo, Porto Alegre, em 1980.
Para que se possa sentir com maior intensidade o drama da personagem principal, é bom que se leia o prefácio (apenas o parágrafo inicial) de Flávio Loureiro Chaves.
Pág. IX -"No asfalto das ciedades partiram-se os últimos vínculos que ligavam o homem ao mundo natural; precisamente ali perdeu-se a dimensão épica da existência tal como a expressou uma personagem de André Malraux - l'homme est ce qu'il fait. Na vida urbana, impessoal e mecanizada, o homem já não pode ser aquilo que ele faz; é aquilo que ele encontra feito na sequência das coisas acabadas e uniformizadas que ele consome, tornando-se um objeto amorfo entre outros objetos amorfos. A aspiração de um mundo a ser contruído substiuu-se pela certeza de que as coisas estão prontas e imutáveis diante de qualquer gesto transformador.
Essa intuição da inutilidade é a medida da nossa existência burguesa numa sociedade industrial."
E entramos finalmente na leitura da novela.
Pág. 1 - "NINGUÉM lhe prestou maior atenção, pois naquele local e hora - uma esquina da avenida principal da cidade: oito da noite - ele era apenas uma das muitas centenas de criaturas humanas que se moviam nas calçadas. À primeira vista sua aparência nada revelava deextraordinário. Era um homem de estatura mediana, teria quando muito trinta anos, trajava roupa de tropical gris e estava sem chapéu. Quem, entretanto, lhe examinasse o rosto mais de perto, notaria algo de anormal naqueles olhos cujas pupilas ora se esvaziavam, como as de certos loucos, ora se animavam dum atônito fulgor de medo, como as dum animal acuado."
(...)
"... pareceu que ia entrar pela porta duma casa de apartamentos, mas recuou e, depois de colidir com dois ou três passantes, estacou à beira da calçpada, moveu a cabeça dum lado para outro, como quem procura orientar-se, e deu um brusco passo à frente..."
(...)
"Olhou em torno e não reconheceu nada nem ninguém. Estava perdido numa cidade que jamais vira."
Pág. 2 - "Era como um homem que, despertando em quarto escuro, procurasse às cegas num terror quase pânico, uma janela para o ar livre, para a luz."
(...)
"Com o rosto colado ao poste, o Desconhecido escutava os ruídos da noite: o tropel e as vozes indistintas dos transeuntes na calçada; a surda trovoada do tráfego riscada pelo trombetear das buzinas e, a intervalos regulares, pelo tilintar das campainhas das sinaleiras."
Pág. 3 - "Alguém lhe deu um encontrão e ele se pôs a caminhar sem saber por que nem para onde."
Pág. 5 - "Abriu os olhos e se surpreendeu de novo em meio da multidão. Deixou-se levar aos empurrões, as pernas meio frouxas, a garganta seca e ardida, o coração a pulsar descompassado - até que atingiu a outra calçada. Foi enttão que avistou o Parque e lhe veio a ideia de que, se o alcançasse, estaria salvo."
Erico Verissimo é um autor da chamada Geração de 30 ou 2ª Geração do Modernismo brasileiro. A questão social, a circunstância do homem em sociedade são os temas que vão caracterizar uma época em que tudo converge para a 2ª Guerra Mundial. Note-se que o discurso do Erico é claro, direto, com uso parcimonioso de recrusos de retórica, que, entretanto acontecem como "trovoada do tráfego", "trombetear das buzinas".
Segundo Sartre, em seu Qu'est que ce litterature?, as palavras na literatura são coloridas, chamando para si a primeira atenção, só depois permitindo a visão do que lhes está além. Em termos da linguística, o significante sobrepuja o significado. Pois bem, usando-se a metáfora sartreana, pode-se dizer que a Geração de 30 procurou descolorir um pouco a palavra para que o que lhe está além apareça melhor.
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