sábado, 4 de fevereiro de 2012

NOITE (2)

NO PARQUE

O Desconhecido quase foi atropelado ao atravessar uma rua, estava amedrontado por não entender o mecanismo urbano.
Pág. 5 - "Dentro do parque sentiu-se liberto da cidade, embora ainda prisioneiro da noite. Andou vagueando sem rumo, e durante esses minutos seu espírito, espelo morto, refletiu passivamente o que seus olhos entreviam; o vulto das árvores, os largos tabuleiros de relva com zonas de sombra e luz e, dum lado e outro da alameda, os globos ilumminados na extremidade dos postes."

(...)
"Sem que ele próprio soubesse por que, abandonou a alameda e enfiou por um bosquete de acácias e pôs-se a andar dentro dele c om alguma dificuldade, pois ali a escuridão era quase competa e ele tinha de avançar devagar com os braços estendidos como um cego, a fim de não esbarrar nos troncos."
Ele parece estar reaprendendo a vida.
Pág. 6 - "Chegou-lhe aos ouvidos um rascar de passos. Entesou o busto, moveu a cabeça dum lado para outro, alarmado. Um homem e uma mulher passaram abraçados, sem lhe lançaremn sequer o mais  rápido olhar. Ah! Decerto ainda não sabiam. Talvez ninguém ainda soubesse. Poderia andar impunemente pelas ruas até ... até quê?"

Minutos antes, o Desconhecido encontrou vários objetos nos bolsos, descobriu-se com um  relógio de ouro. Não identificou nada daquilo e pensou que tivesse roubado tudo. Mas não sabia quando nem como.

Pág. 6 - "Tirou do bolso a carteira e tornou a examinar-lhe o conteúdo. Muito dinheiro, muitíssimo dinheiro, uma fortuna... Teve medo de contar as cédulas, uma por uma. Guardou a carteira e ficou olhando para o chão. Decerto tinha roubado. Mas como, se não era ladrão?"
Pág. 7 - "Veio-lhe de novo aquela aflição, aquele medo, a sensação de que o Parque estava cheio de sombras que o procuravam. (...) ...agora compreendia que o perigo estava no Parque: era imperioso sair dali o quanto antes.
(...)
"O Desconhecido jogou fora o cigarro, precipitou-se declive abaixo e só foi parar além dos chorões, onde a lomba terminava e grandes canteiros se recortavam no chão coberto de flores."

EV é um autor regionalista, em alguns de seus livros isso é mais evidente. Em outros, como neste caso de Noite, o autor trata de questões universais, mas emprega uma linguagem em que transparecem sintática e lexicamente usos linguísticos de sua região. Eis aí a palavra lomba a comprovar. Mas o que se deve observar é que escritor nenhum foge dos usos de alguma região, seja esta Rio de Janeiro, São Paulo, ou qualquer outra.

Pág. 7 - "Só então o Desconhecido percebeu, pelos contornos da silhueta, que estava diante duma mulher, e duma mulher completamente nua. Numa súbita indignação vociferou: 'Cadela indedente!' Deu mais alguns passos, agressivo. A mulher continuava impassível. O Desconhecido saltou para cima da pedra onde ela se achava, enlaçou-lhe o busto, apertou o corpo inteiro da criatura contra o seu, sentindo-lhe a dureza dos seios, das nádegas, das coxas, e desatou a rir como uma criança porque estava abraçando uma estátua, uma estátua de pedra, nua, sim - e acariciava os seios - completamente nua - beijavaplhe a nuca - ali sozinha no Parque, olhando para o céu - e fazia a mão espalmada descer p0elo ventre côncavo, pelas coxas - não oferecia perigo nenhum, nenhum, nenhum... Ria e ao mesmo tempo chorava, as lágrimas lhe rolavam pelas faces, e ele tornou a beijar a nuca da figura de pedra, cujo corpo tinha uma tepidez humana. E como seu peito estivesse colado ao dorso da estátua, pareceu-lhe que era o coração dela e não o seu que batia. Saltou para o chão, recuou alguns passos e olhou o monumento. Representava uma índia com o rosto erguido, os braços estendidos, as palmas das mãos voltadas para cima, como a pedir alguma coisa ao céu."

Essa cena éextremamente significativa porque já nos remete para o final, com as explicações do mistério que envolve o Desconhecido.

Pág. 7 - "... passou-lhe pela mente a tênue e esquiva sombra duma lembrança. (Onde? Quando? Quem?) Mas a sombra passou, ficou de novo o vazio cinzento e foi nesse instante que ele avistou o lago, a poucos metros de onde estava."
(...)
Doíam-lhe as costas e as pernas. O melhor era não pensar, mas dormir, dormir..."

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