segunda-feira, 5 de março de 2012

UM CONTO NA CARTA CAPITAL

Galeria de pedrosimoes7/Flickr
AQUELE PRIMEIRO DIA, QUASE NOITE

Conto publicado na revista CARTA CAPITAL


Por Menalton Braff*

O filho não acordou em janeiro de manhã, agora, quando o calor torna-se mais intenso. E o modo roxo como apertava os lábios um contra o outro podia não significar coisa alguma, mas a mãe acertadamente interpretou como sendo a recusa. A despeito de muda, e inexplicável, uma recusa. E exatamente de sua túmida teta materna.

Paciente e concentrada recolheu o seio para o interior de seus trapos e sem cansaço foi abrir a janela, como se estivesse acabando de criar o mundo. O sol entrou circular, reparando, mas era um signo exageradamente genérico para que ela chegasse a qualquer conclusão sensata. Debruçou-se no parapeito, para cumprir o rito, talvez até um pouco avidamente, atraída pela claridade da paisagem ainda úmida do útero noturno, e sentiu a vazão do próprio leite que o peso do corpo começava a ofertar. Uma vazão lenta e silenciosa como uma urina: o prazer do alívio. Então seus olhos maravilhados mediram aquelas duas manchas redondas no alto de seu peito: a alegria.


Sem saber ao certo o que sentir, na seqüência, depois de abrir a janela e debruçar-se no parapeito, toda aquela paisagem cabendo em seus dois olhos miúdos, a mãe lambeu com insistência os próprios lábios, que durante a noite haviam ressecado. Não tinham chegado a rachar, coisa que só acontecia no inverno mais frio, quando muitas vezes chegava a passar fome. Mas soube com a ponta da língua que tinham estado secos. Olhou novamente as duas manchas redondas e suas narinas se dilataram felizes.

Foi-se chegando sorrateira, devagar sediciosa, a entrar sem ser notada, até que lá dentro, de uma só feita, o volume vazio da fome. E então a mãe soube no instante que estava com bastante fome. Um saber do corpo só, corporal, que a mente pendia para um sentir mais obtuso: seu organismo.

No alto da paisagem azul e verde, bem no alto, acima, já lá na banda azul, a mulher viu um gavião de bico recurvo e olhos rapinosos tremulando as asas. Um gavião parado suspenso no ar azul. Ela viu de gosto, com gozo. A extensão de sua visão, cá embaixo. De repente ele estridulou seu grito guerreiro antecipando a vitória – o viver diário  e a mãe afastou-se em susto da janela, o coração batendo aos pulos fortes, e, com o corpo curvo arqueado, sacudia a cabeça, as pálpebras coladas sobre os olhos. Sacudia a cabeça e sacudia como se tivesse esquecido alguma coisa. E girava o corpo rodando como se tentasse fugir. E sacudia ainda mais, sem conseguir lembrar-se. Uma coisa importante, talvez, talvez desagradável.

Sentou-se apressada no catre, aquela impressão de um peso pesando ainda por sobre, seus olhos de sombra parados tentando pensar. Sentou-se com o peso ao lado do filho, olhando a loucura do mundo transformado em carrossel. Mas foi só um instante: o necessário.

Muito mulher, a mulher, como sempre em todos seus dias, desde que ali viera abrigar-se, trazida, levantou-se e pegou a sacola para buscar a comida nas casas, mas voltou a sentar-se por causa daquele seu filho que parecia não querer acordar nunca mais. Ao olhar para o pedaço iluminado de estrada por onde deveria sair com a sacola presa na mão, um pedaço de estrada que vinha rastejante até ali a porta, tudo voltou a ser o primeiro dia, quase noite, aquele primeiro dia, fugindo para a frente, o mundo todo, desde sempre e de longe, o medo, as árvores, os pássaros. E o fogo da fome roendo suas entranhas.

As paredes de taipa não tinham como evitar os riscos de sol: o entrevero de lanças. Em sua defesa, naquele primeiro dia, mãos e pés, os machucados, entre susto e espanto, as pausas, cansaço e espasmos, além de unhas e dentes, as marcas deixadas na pele de homem de um homem. O entrevero. Seus gritos ricocheteavam nas nuvens, mas seres humanos moravam longe de mais. Sua dor.

Então seus olhos pararam parados num ponto de luz com os brilhos, o balaio dependurado no espaço, sustido no gancho, na altura, em ponta de arame, onde o esforço maior dos ratos não pudesse prejudicar. Suas mãos um pouco também se aquietaram: aquilo uma expectativa, um acontecimento prestes a existir. Primeiro a mãe fungou um ronco desconfiado e depois levantou-se com pouca pressa, os passos por dar, para finalmente descobrir dentro do balaio apenas um pedaço de pão seco de tão esquecido.

Assim, ela ficou sentada, roendo o pão, cheia de um medo que porejava um suor fino em seu rosto. Medo de que o primeiro dia fosse agora, outro dia – o gavião e seu grito acima das nuvens  e ela tivesse de voltar para a estrada, em fuga, o sangue descendo-lhe pelas coxas, secando em suas pernas apressadas, enquanto a semente de um filho começava a germinar. O sol continuava entrando por todos os furos da casa: o entrevero.

O filho imóvel, enfim, era uma proibição, e a mãe não teve mais vontade de pôr-se a caminho. Com olhos um pouco murchos contemplou o filho, o que tinha carregado no ventre todas as vezes em que saía pela estrada para buscar comida nas casas: o peso. Foi ajeitando o corpo, enrodilhando-se em arco, o aconchego, até deitar-se a seu lado para oferecer-lhe a teta túmida, quem sabe, ou para dormirem juntos.

2 comentários:

  1. No conto “AQUELE PRIMEIRO DIA, QUASE NOITE”, se me permite: o senhor anuncia algo sombrio. Coloca-nos sentados diante à janela e, em seguida, vai nos mostrar um quadro lindo de um dia formidável, uma pintura de dia. No entanto o tempo vai passando e o senhor nos mantém sentados admirando a paisagem, a fisiologia materna, a nascente láctea, o bico recurvo do gavião. Deixa o pior suspenso no ar. Mas pro fim, ai de nós! Ai de mim que sou um sentimental! Assim como Portinari, acredito que a dor humana suprema é a da mãe que perde um filho. Mestre, estou maravilhado com seus modos de enfeitiçar.
    E, em seguindo, adentro “GENTE É GENTE – FELICIDADE SUPREMA”. Sou tomado de surpresa pela memória de uma figura que eu nem sabia que residia a casa de minhas memórias. Vejo uma senhora morena, magra, miúda como uma criança desnutrida, que vez em sempre aparecia de barriga nas imediações de minha casa da infância, aparecia com uma sacola e uma panelinha de pedir. Era uma miséria de entristecer a miséria que se acha digna do título de miséria. Mas eu nunca cheguei tão perto dela ao ponto de sentir a dor contida naquela procriação e compartilhamento de miséria que não me pareciam fazer o menor sentido. É. Senhor autor, eu nunca havia chegado tão próximo dela quanto cheguei hoje ao ler mais um pouco de seus olhos, mestre. Obrigado! Aceite um fraterno abraço, Mestre Menalton!

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Jeferson, meu caro. São duas as coisas que me fazem escrever: as que me encantam e as que me espantam. A mkiséria humana, todo tipo de sofrimento, a tragédia em que pode ser transformado o ato de viver me batem muito fundo. Esta mãe, quase mãe de um Smerdiakov, existe. Estas mães existem. E sofro pensando que a humanidade anda indiferente ante tais misérias. Muito obrigado pelas palavras generosas e um abraço.

      Excluir

http://twitter.com/Menalton_Braff
http://menalton.com.br
http://www.facebook.com/menalton.braff
http://www.facebook.com/menalton.braff.escritor
http://www.facebook.com/menalton.para.crianças