Conto publicado na revista CARTA CAPITAL
Por Menalton Braff*
O filho não acordou em janeiro de manhã, agora, quando o
calor torna-se mais intenso. E o modo roxo como apertava os lábios um contra o
outro podia não significar coisa alguma, mas a mãe acertadamente interpretou
como sendo a recusa. A despeito de muda, e inexplicável, uma recusa. E
exatamente de sua túmida teta materna.
Paciente e concentrada recolheu o seio para o interior de
seus trapos e sem cansaço foi abrir a janela, como se estivesse acabando de
criar o mundo. O sol entrou circular, reparando, mas era um signo
exageradamente genérico para que ela chegasse a qualquer conclusão sensata.
Debruçou-se no parapeito, para cumprir o rito, talvez até um pouco avidamente,
atraída pela claridade da paisagem ainda úmida do útero noturno, e sentiu a
vazão do próprio leite que o peso do corpo começava a ofertar. Uma vazão lenta
e silenciosa como uma urina: o prazer do alívio. Então seus olhos maravilhados
mediram aquelas duas manchas redondas no alto de seu peito: a alegria.
Sem saber ao certo o que sentir, na seqüência, depois de
abrir a janela e debruçar-se no parapeito, toda aquela paisagem cabendo em seus
dois olhos miúdos, a mãe lambeu com insistência os próprios lábios, que durante
a noite haviam ressecado. Não tinham chegado a rachar, coisa que só acontecia
no inverno mais frio, quando muitas vezes chegava a passar fome. Mas soube com
a ponta da língua que tinham estado secos. Olhou novamente as duas manchas
redondas e suas narinas se dilataram felizes.
Foi-se chegando sorrateira, devagar sediciosa, a entrar sem
ser notada, até que lá dentro, de uma só feita, o volume vazio da fome. E então
a mãe soube no instante que estava com bastante fome. Um saber do corpo só,
corporal, que a mente pendia para um sentir mais obtuso: seu organismo.
No alto da paisagem azul e verde, bem no alto, acima, já lá
na banda azul, a mulher viu um gavião de bico recurvo e olhos rapinosos
tremulando as asas. Um gavião parado suspenso no ar azul. Ela viu de gosto, com
gozo. A extensão de sua visão, cá embaixo. De repente ele estridulou seu grito
guerreiro antecipando a vitória – o viver diário e a mãe afastou-se em susto
da janela, o coração batendo aos pulos fortes, e, com o corpo curvo arqueado,
sacudia a cabeça, as pálpebras coladas sobre os olhos. Sacudia a cabeça e
sacudia como se tivesse esquecido alguma coisa. E girava o corpo rodando como
se tentasse fugir. E sacudia ainda mais, sem conseguir lembrar-se. Uma coisa
importante, talvez, talvez desagradável.
Sentou-se apressada no catre, aquela impressão de um peso
pesando ainda por sobre, seus olhos de sombra parados tentando pensar.
Sentou-se com o peso ao lado do filho, olhando a loucura do mundo transformado
em carrossel. Mas foi só um instante: o necessário.
Muito mulher, a mulher, como sempre em todos seus dias,
desde que ali viera abrigar-se, trazida, levantou-se e pegou a sacola para
buscar a comida nas casas, mas voltou a sentar-se por causa daquele seu filho
que parecia não querer acordar nunca mais. Ao olhar para o pedaço iluminado de
estrada por onde deveria sair com a sacola presa na mão, um pedaço de estrada
que vinha rastejante até ali a porta, tudo voltou a ser o primeiro dia, quase
noite, aquele primeiro dia, fugindo para a frente, o mundo todo, desde sempre e
de longe, o medo, as árvores, os pássaros. E o fogo da fome roendo suas
entranhas.
As paredes de taipa não tinham como evitar os riscos de sol:
o entrevero de lanças. Em sua defesa, naquele primeiro dia, mãos e pés, os
machucados, entre susto e espanto, as pausas, cansaço e espasmos, além de unhas
e dentes, as marcas deixadas na pele de homem de um homem. O entrevero. Seus
gritos ricocheteavam nas nuvens, mas seres humanos moravam longe de mais. Sua
dor.
Então seus olhos pararam parados num ponto de luz com os
brilhos, o balaio dependurado no espaço, sustido no gancho, na altura, em ponta
de arame, onde o esforço maior dos ratos não pudesse prejudicar. Suas mãos um
pouco também se aquietaram: aquilo uma expectativa, um acontecimento prestes a
existir. Primeiro a mãe fungou um ronco desconfiado e depois levantou-se com
pouca pressa, os passos por dar, para finalmente descobrir dentro do balaio
apenas um pedaço de pão seco de tão esquecido.
Assim, ela ficou sentada, roendo o pão, cheia de um medo que
porejava um suor fino em seu rosto. Medo de que o primeiro dia fosse agora,
outro dia – o gavião e seu grito acima das nuvens e ela tivesse de voltar
para a estrada, em fuga, o sangue descendo-lhe pelas coxas, secando em suas
pernas apressadas, enquanto a semente de um filho começava a germinar. O sol
continuava entrando por todos os furos da casa: o entrevero.
O filho imóvel, enfim, era uma proibição, e a mãe não teve
mais vontade de pôr-se a caminho. Com olhos um pouco murchos contemplou o
filho, o que tinha carregado no ventre todas as vezes em que saía pela estrada
para buscar comida nas casas: o peso. Foi ajeitando o corpo, enrodilhando-se em
arco, o aconchego, até deitar-se a seu lado para oferecer-lhe a teta túmida,
quem sabe, ou para dormirem juntos.
No conto “AQUELE PRIMEIRO DIA, QUASE NOITE”, se me permite: o senhor anuncia algo sombrio. Coloca-nos sentados diante à janela e, em seguida, vai nos mostrar um quadro lindo de um dia formidável, uma pintura de dia. No entanto o tempo vai passando e o senhor nos mantém sentados admirando a paisagem, a fisiologia materna, a nascente láctea, o bico recurvo do gavião. Deixa o pior suspenso no ar. Mas pro fim, ai de nós! Ai de mim que sou um sentimental! Assim como Portinari, acredito que a dor humana suprema é a da mãe que perde um filho. Mestre, estou maravilhado com seus modos de enfeitiçar.
ResponderExcluirE, em seguindo, adentro “GENTE É GENTE – FELICIDADE SUPREMA”. Sou tomado de surpresa pela memória de uma figura que eu nem sabia que residia a casa de minhas memórias. Vejo uma senhora morena, magra, miúda como uma criança desnutrida, que vez em sempre aparecia de barriga nas imediações de minha casa da infância, aparecia com uma sacola e uma panelinha de pedir. Era uma miséria de entristecer a miséria que se acha digna do título de miséria. Mas eu nunca cheguei tão perto dela ao ponto de sentir a dor contida naquela procriação e compartilhamento de miséria que não me pareciam fazer o menor sentido. É. Senhor autor, eu nunca havia chegado tão próximo dela quanto cheguei hoje ao ler mais um pouco de seus olhos, mestre. Obrigado! Aceite um fraterno abraço, Mestre Menalton!
Jeferson, meu caro. São duas as coisas que me fazem escrever: as que me encantam e as que me espantam. A mkiséria humana, todo tipo de sofrimento, a tragédia em que pode ser transformado o ato de viver me batem muito fundo. Esta mãe, quase mãe de um Smerdiakov, existe. Estas mães existem. E sofro pensando que a humanidade anda indiferente ante tais misérias. Muito obrigado pelas palavras generosas e um abraço.
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