segunda-feira, 30 de abril de 2012

MAIS UM CONTO

De cima de seu muro

Um dia Teodoro sentou em cima do muro de sua casa e ficou com as duas pernas tão penduradas que parecia um desconsolo. Primeiro ele começou a observar o movimento da rua. Seus olhos atentos subiam e desciam a ladeira, a cabeça girando um pouco sobre o pescoço.  Tarde da noite, quando nada mais acontecia na escuridão, além da passagem de gatos esporádicos e cachorros vagabundos, Teodoro entrou para dormir, maravilhado com suas descobertas.


Passada a primeira semana, como não revelasse coisa alguma sobre suas razões, a família reuniu-se na porta e ficou esperando que ele se recolhesse. A barreira humana impedia sua entrada, por isso Teodoro ficou parado, com as sobrancelhas de muita admiração. Então, foi só o que ele disse, parece que temos aqui um complô?! O filho mais velho, o único a exibir um discreto bigode, acendeu a luz e se adiantou.

- Nós todos aqui, meu pai - e apontou o semicírculo compacto - estamos muito curiosos, querendo saber o que o senhor faz o dia todo trepado naquele muro.

Teodoro era muito sensato e não costumava inventar histórias, principalmente se fossem falsas. Ele tinha um grande amor pela verdade, um amor que muitas vezes beirava o fanatismo. Então disse apenas o que sabia a respeito de ficar o dia todo trepado naquele muro. Ergueu ainda mais as sobrancelhas, esticou o lábio inferior, suspendeu os dois ombros ao mesmo tempo para dizer que, na verdade, era só o desejo de ver, só isso, saber como é tudo.  

A mulher e os filhos sabiam muito bem que era verdade o que ele dizia, então apagaram a luz da sala e foram dormir sorridentes e satisfeitos, alguns deles dando tapinhas nas costas do pai, que também sorria.

Não era apenas das pessoas daquela rua, seus dramas e costumes, que, do alto de seu muro, Teodoro inteirava-se. Em poucos meses foi tido como especialista em meteorologia. Dos quarteirões vizinhos chegavam pessoas querendo saber se nas próximas horas faria frio ou calor, se era necessário sair de guarda-chuva ou não. Mesmo de outros bairros começaram a chegar muitos fiéis ansiosos por notícias. Suas respostas eram cotejadas com as previsões dadas por meteorologistas na televisão. Em caso de divergência, era em Teodoro que se acreditava. Quando suas previsões saíam erradas, culpava-se o tempo com afirmações vagas sobre o descontrole da natureza, que ultimamente deixara de agir com a lógica dos outros séculos do mundo.

No primeiro dia de chuva, Teodoro teve de arcar com sua própria imprevidência, amargando com a roupa molhada durante várias horas. Espiando pela janela, a esposa disse que aquilo não podia fazer bem.

- Isso não pode fazer bem - disse a esposa soltando a cortina e voltando-se para a filha, parada sobre seus pés no meio da sala.

O guarda-chuva que lhe compraram era azul-marinho, pontilhado de estrelas muito brilhantes. Então, quando voltou a chover, Teodoro cobriu-se com sua noite e não se molhou mais. De inconveniente, nos dias chuvosos, apenas o fato de que as pessoas passavam sem olhar para cima, deixando de cumprimentá-lo. Eram dias de muita solidão.

Quando chegou o verão, e isso não aconteceu de repente, como se crê, começaram a alternar-se dias de chuva com dias de sol pesado. Foi então que o guarda-chuva tornou-se a parte de cima de Teodoro, por cima, e ninguém mais se lembrou de sua natureza anterior. A falta de uma fotografia que registrasse os primeiros momentos de Teodoro sobre seu muro era uma falha que ninguém percebia. Por isso, também, as pessoas não notavam as pequenas transformações que iam acontecendo. Um homem sentado sobre seu muro debaixo de uma noite era coisa que parecia sempre haver existido naquela rua.

Seu cabelo já descia até os ombros, um pouco mais escuro do que a barba, e ninguém se lembrava de que nem sempre fora assim. Além disso, aquele seu olhar cada dia mais branco começava a embaçar-se por um véu de tristeza, um véu diáfano de puro desencanto.

Na época em que os dias tornavam-se mais e mais curtos, Teodoro já sabia todos os horários dos moradores de sua rua, conhecia os hábitos de cada um deles. Nesse tempo, a descoberta que o animou por algumas semanas foi a de que a mulher gorda do 818 não tinha apenas um vestido. Simplesmente, por amar a natureza, todos os seus vestidos eram iguais: fundo verde com ramos de diversas tonalidades da mesma cor e cachos de bananas amarelas, maçãs vermelhas, cerejas arroxeadas. Foi uma descoberta casual, quando um dia o furgão da lavanderia parou e dois funcionários descarregaram uma arara com dezenas de vestidos verdes exatamente iguais.

Ao primeiro repórter que o procurou perguntando o que era aquilo - estar em cima de um muro - qual suas razões, Teodoro, com o olhar ainda mais triste que de costume, respondeu que precisava saber os sentidos da vida, por isso resolvera debruçar-se um pouco sobre seus mistérios. Com alguma raiva injustificada, o repórter voltou a perguntar:

- E então, o que é que o senhor descobriu?

Teodoro apertou as pálpebras sobre os próprios olhos e fechou a boca de lábios secos e duros, recusando-se a dar qualquer resposta. Cansado de esperar, o repórter deu-lhe as costas sem ao menos perceber que duas lágrimas verteram dos olhos fechados para sumirem na barba grisalha.

A partir desse dia, cansado de contemplar a humanidade de sua rua, Teodoro passou a vigiar os automóveis que subiam e desciam aquela rua. No início pareciam indiferenciados, com suas rodas pretas, o vidro das janelas e do pára-brisa, com seus pára-choques e paralamas. A distinção entre eles começou aos poucos, à medida em que se familiarizava com formas e cores e aprendia a identificar-lhes a voz.

Quando o verão finalmente retornou por cima de seu guarda-chuva, Teodoro já identificava ano de fabricação, marca e valor. Já era capaz de enumerar as virtudes da cada um assim como apontar-lhes todos os defeitos. Agora, além de consultas a respeito da meteorologia, era assediado por vizinhos que tencionavam trocar de automóvel ou comprar um. Ninguém os conhecia como ele, ninguém aconselhava com tamanha competência.

De quase todos os automóveis que lhe passavam perante os olhos, Teodoro conhecia os hábitos: hora em que desciam e hora em que subiam a ladeira, quantas pessoas transportavam, a pressa com que buscavam seu destino. Alguns, contudo, ele percebeu que passavam para cima ou para baixo e nunca mais voltavam. Assim foi que nasceu a segunda dor em seu coração. Vendo um automóvel que passava pela rua pela primeira vez, completamente estranho, Teodoro já sentia saudade e punha-se a imaginar aonde se dirigia, que estranho destino poderia tomar na vida.

A idéia de que o mundo era vasto e de que existiam dores e alegrias muito além do alcance de sua vista ia-se tornando insuportável. Saber que havia lugares desconhecidos com seres sobre os quais jamais saberia o mínimo que fosse, isso era a causa de uma angústia terrível. Teodoro então fechou os olhos e não quis mais olhar para nada.

Uma noite, Teodoro não se recolheu, como era seu costume. A esposa e os filhos, então,  vieram certificar-se do que acontecia. Sobre o muro, contudo, não encontraram mais ninguém, como se ele nunca tivesse existido.

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