Eu não sabia o que era ser adolescente, naquele tempo. E era
um. Também não sabia que o Brasil era o país do carnaval nem onde ficava a
Bahia, da qual sabia apenas o nome da capital, Salvador, e seu adjetivo
gentílico – soteropolitano. Coisas que a escola nos obrigava a decorar e que o
tempo vai preenchendo com significados. No já extinto Colégio Ruy Barbosa, de
Porto Alegre, vivíamos de sonhos, cerveja e literatura. Foi o tempo em que me
tornei frequentador assíduo da Livraria Globo, na rua da Praia. Sentava num dos
corredores que havia entre as altas estantes de livros e lia orelhas e
contracapas com zelo e método de um beneditino. Um dia, uma daquelas estantes
me jogou nas mãos uma capa estranha, de Clóvis Graciano, e me fez ler uma
orelha mais estranha ainda, falando de um Brasil diferente do meu (paradisíaco,
naquela idade), enfim, dizendo umas coisas que a princípio me assustaram. Não
consegui sair da livraria, naquela distante manhã, sem levar comigo O País do
Carnaval, da Editora Martins.
Depois do primeiro, tive de ler todos. Com a voracidade de
quem acaba de descobrir as cores do mundo. Eu estava tomado, confuso,
assustado, perplexo. Mas então é assim, a gente pode escrever estas coisas
todas, sobre gente com a nossa cara, sobre cidade com a cara da nossa, sobre um
Brasil muito mais real do que aquele com que nos entopem nas escolas? Na medida
em que devorava os livros de Jorge Amado, aumentava o deslumbramento, a paixão,
que por fim explodiram numa certeza: – Eu vou ser escritor, foi o que disse
quando um dia cheguei em casa. Ninguém riu, nem talvez tenha acreditado. Era
tido então, senão até hoje, como um tipo meio desajustado, desses que não devem
ser levados muito a sério.
Velho conhecido de
Machado de Assis, José de Alencar, e outros autores do passado, aquele baiano
ainda vivo que me deslumbrava me abriu as portas para Graciliano Ramos, José
Lins do Rego e outras paixões que fui tendo no correr da vida. Ele, o Jorge
Amado, a quem tomei por segundo pai inteiramente à traição, jamais soube de
minha existência.
Jamais talvez seja
exagero. Um dia, um colega chegou ao Ruy com a notícia: O Jorge Amado acaba de
desembarcar no aeroporto. Veio dar uma palestra no auditório da Rádio
Farroupilha. Juntei da carteira o material, esperei a primeira troca de
professores e, com cinco passos, estava pulando o muro. Naquele tempo eu tinha
pernas com diversas habilidades que hoje só existem na memória.
Foi uma das grandes
emoções de minha vida. Eu estava ali sentado (e me beliscava para ter certeza
de que não era sonho) e lá, sobre o palco, um escritor de verdade, vivinho da
silva como um ser humano. Enquanto ele dizia nóish, sotaque inteiramente
desconhecido para um porto-alegrense, enquanto ele falava manso e mole, como
ele falava, eu não conseguia conter a baba, que escorria dos dois lados.
No fim da
palestra/entrevista, ele desceu do palco e veio pelo corredor, na direção em
que eu estava. Quando se aproximou, não tive dúvida, saltei em sua frente com o
livro de latim aberto e pedi um autógrafo. Foi a única vez em que tietei dessa
maneira desavergonhada na vida. Foi o único autógrafo que o adolescente guardou
por muitos anos. A vida me roubou o livro de latim, mas não me roubou o prazer
de ter apertado a mão de meu ídolo. Nunca mais nos cruzamos.
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